Hamid Karzai |
Os ministros de Relações Exteriores da Otan reuniram-se em Bonn na segunda-feira (5) para discutir como progredir no Afeganistão. O “Spiegel” conversou com o presidente afegão, Hamid Karzai, que estará presidindo a conferência, sobre a necessidade de envolvimento externo após a retirada de 2014 e sobre sua parceria conturbada com os EUA.
Spiegel: Senhor presidente, a comunidade internacional está se reunindo em Bonn para discutir o futuro do Afeganistão. No ano passado, os ministros de Relações Exteriores reuniram-se em Cabul para uma conferência similar, e a própria localização foi vista como sinal de progresso. A sua capital é perigosa demais para sediar tal encontro?
Karzai: Essa é uma forma errada de ver a questão. A conferência de Cabul foi um símbolo de que os afegãos estavam prontos para organizar tal encontro por si mesmos e em seu próprio país. A conferência de Bonn é uma celebração de 10 anos desde a primeira conferência de Bonn. Não poderíamos realizar isso em nenhum outro lugar que não fosse Bonn. Queremos falar sobre o que alcançamos, o que fizemos de errado e o que podemos fazer melhor no futuro.
Spiegel: O foco da conferência, entre ouras questões, será a situação da segurança no Afeganistão. Nos últimos meses, a segurança não melhorou muito, como pode ser atestado pelos assassinatos de vários membros do governo, governadores e, mais recentemente, do ex-presidente Burhanuddin Rabbani.
Karzai: Todos nós esperávamos, na primeira conferência de Bonn, que a chegada da comunidade internacional traria paz e estabilidade de volta ao Afeganistão, junto com muitas outras conquistas que aguardávamos há tanto tempo. Dessas, conseguimos conquistar algumas, e foram enormes. O que ainda não temos é a segurança para o povo afegão –uma campanha de sucesso contra o terrorismo em nosso país. Esta é nossa pior limitação. Espero que alcancemos essa meta nos próximos 10 anos.
Spiegel: No Ocidente, a maior parte das conversas recentes giraram em torno da retirada das tropas, apesar da situação precária de segurança no Afeganistão. Isso o deixa inconfortável?
Karzai: Não vejo razão até agora para pedir um adiamento da retirada. Estou confiante que vamos chegar lá, de acordo com o cronograma que traçamos juntos. A partir de 2014, as forças afegãs assumirão a segurança de todo o país. Em Bonn, vou apresentar minha visão dos próximos 10 anos e de como a comunidade internacional poderá nos ajudar.
Spiegel: O que o senhor gostaria de ver acontecer?
Karzai: Não vou pedir dinheiro. O Ocidente não veio pelo Afeganistão em primeiro lugar. Eles vieram por sua própria segurança, e nós nos unimos nessa luta contra o terrorismo internacional. Nós precisávamos deles, eles precisavam de nós. Estamos e estaremos nas linhas de frente na luta contra o terrorismo e perdemos pessoas todos os dias. Somos agradecidos por toda a ajuda que recebemos dos países ocidentais, mas os esforços no Afeganistão também são uma responsabilidade partilhada. Se fracassarmos no caminho para um Afeganistão estável, os velhos tempos e a situação anterior aos terríveis ataques de 11 de setembro poderão voltar antes do que pensamos.
Spiegel: Como exatamente o senhor vê a assistência ocidental no futuro?
Karzai: A parte militar será terminada até o final de 2014. Daí por diante, acho que o Afeganistão vai depender de contribuições e da ajuda da comunidade internacional por outros 10 anos. Mas será uma parceria diferente. Vai se focar mais no treinamento e no equipamento das forças afegãs e em tornar as instituições afegãs mais eficazes. Alguma assistência econômica será necessária para ajudar o Afeganistão a andar com as próprias pernas. É o dividendo da transição. Se os EUA cortarem o nível de soldados, por exemplo, para cerca de 20.000 soldados em 2014, economizarão cerca de US$ 100 bilhões (em torno de R$ 180 bilhões) em relação aos gastos atuais. Se recebermos 5% disso, cerca de US$ 5 bilhões por ano, nós diremos que está bom. Não será a mesma quantidade de dinheiro que a comunidade internacional está pagando agora; no final, os países ocidentais economizariam muito dinheiro.
Spiegel: Muitos duvidam que os militares afegãos consigam suportar as responsabilidade de segurança sozinhos. Muitos observadores temem uma nova onda de guerra civil no país quando as tropas da Otan se retirarem. O senhor não está preocupado?
Karzai: Não concordo com essa visão, apesar de lê-la todos os dias na imprensa ocidental. As forças afegãs poderão defender o Afeganistão nesse ponto, tenho certeza disso. Os EUA ainda estarão envolvidos em uma parceria estratégica e vamos dar a eles bases. A Alemanha é nosso mais querido parceiro nisso e, se você me perguntar, os militares alemães não têm que sair do Afeganistão –podem ficar para sempre, mas essa é uma decisão alemã.
Spiegel: Sua fé na presença das tropas dos EUA é surpreendente. Por meses, o senhor criticou abertamente as operações das Forças Especiais dos EUA. Agora, o senhor disse ao grande conselho “Loya Jirga” que o senhor é a favor da presença norte-americana para além de 2014.
Karzai: As baixas provocadas pelos ataques noturnos e bombardeios são os maiores impedimentos para relações tranquilas entre nós e os EUA. Isso provocou minha revolta pública nas entrevistas e declarações –e eles melhoraram suas táticas. Foi isso que eu disse ao “Loya Jirga”.
Spiegel: Mas o número de operações aumentou recentemente, assim como o número de homicídios.
Karzai: Mas não temos mais as baixas entre civis. Os militares americanos concordaram recentemente que todas essas operações serão feitas por afegãos o mais breve possível. É um acordo entre parceiros. Se nossas demandas não forem cumpridas, o trato estará obsoleto.
Spiegel: O senhor convocou o “Loya Jirga” para lidar com as questões mais importantes em relação à parceria estratégica com os EUA, apesar de o Afeganistão ter um Parlamento democraticamente eleito. Por que o senhor não usou esse instrumento democrático?
Karzai: O reconhecimento moderno do “Jirga” está escrito na constituição do Afeganistão e estamos usando-o para decisões muitos importantes para o país.
Spiegel: De fora, parece que o parlamento não tem muito papel no que concerne as questões importantes.
Karzai: O Parlamento também terá que votar as decisões feitas. A consulta tem profundas raízes em nossa história. A democracia prêt-à-porter do Ocidente nunca será o sistema do Afeganistão. Precisamos de uma democracia que seja afegã, não para os interesses estrangeiros.
Spiegel: Há anos, o senhor vem pedindo ao Taleban que negocie com o seu governo. Mas eles continuam desinteressados. Será que não estão esperando a retirada das tropas internacionais?
Karzai: É verdade que o processo de reconciliação foi interrompido desde o assassinato de Rabbani. Precisamos de um ponto de contato com o Taleban, para conversar com eles. Nossos contatos anteriores, no final, eram homens-bomba que mataram Rabbani. Enquanto não tivermos o número de telefone ou o endereço do Taleban, termos que falar aos paquistaneses, porque eles sabem onde estão.
Spiegel: O processo de paz acabou?
Karzai: Temos que ver isso de outra forma. Milhares de talebans se uniram ao movimento por medo ou por causa dos danos que sofreram dos ataques e bombardeios noturnos das tropas internacionais. Mas essas pessoas não têm problemas ideológicos conosco. Assim que o ambiente estiver propício, elas se unirão a nós em uma sociedade pacífica.
Spiegel: E quando será isso?
Karzai: Primeiro, temos que concluir a investigação sobre os assassinos de Rabbani. O fato de o Paquistão estar participando na investigação é um passo na direção certa. Mas precisamos encontrar um representante do Taleban com quem conversar, e cabe ao Paquistão nos dizer quem. Até agora, os paquistaneses ainda têm outros objetivos que não são a paz no Afeganistão e, enquanto isso não mudar, não vejo um ambiente para negociações com o Taleban.
Spiegel: Nos últimos dois anos, milícias privadas surgiram em muitas partes do país para prover segurança local contra o Taleban. Recentemente, as denúncias vêm aumentando que essas milícias estão aterrorizando os locais.
Karzai: Todas essas milícias são ilegais. Qualquer coisa fora da supervisão do Ministério do Interior é ilegal e tem que ser removida do país. Vamos persegui-las.
Spiegel: E, ainda assim, muitas dessas milícias foram montadas com o apoio da Isaf, como aquela conhecida como Cipp, para proteger a infraestrutura.
Karzai: O que é isso? (Karzai interrompe a entrevista para ligar para o assessor de segurança, Rangin Dadfar Spanta.)
Spiegel: Muitas das milícias são, por exemplo, protegidas pelas Forças Especiais dos EUA. A justiça afegã disse que não têm poder para julgar os crimes que possam cometer.
Karzai: Aí você vê onde está o problema. Estamos dizendo aos americanos que eles têm que parar de fazer isso. Qualquer força que não esteja sob o comando do Ministério do Interior ou do Ministério da Defesa tem que ir embora. Se houver forças estrangeiras, é uma brecha na soberania afegã. Este é um ponto muito importante das tensões que temos com os americanos.
Spiegel: Ainda assim, muitos líderes de milícias receberam altos cargos no governo afegão, apesar de seu envolvimento em assassinatos e tráfico de drogas. O novo chefe de polícia em Candahar é um exemplo. Por que seu governo o nomeou?
Karzai: Esta é uma pessoa que serviu de forma muito eficaz ao governo afegão por anos, e não vi evidências até agora que esteja envolvida em crimes. Ainda mais interessante é que este comandante era muito querido pelo ex-comandante da Isaf aqui em Cabul, David Petraeus. Agora, a imprensa internacional me condena por isso. Esse chefe de polícia, como muitos outros, vem trabalhando com as forças da Otan por muito tempo e ninguém reclamou. Agora que eu o coloquei em um cargo do governo, todo mundo me culpa. Isso é um padrão duplo que eu não entendo. Mas nos levou ao ponto de não ligarmos mais para as reclamações ocidentais sobre nossas escolhas para cargos do governo.
Spiegel: Muitos de seus parceiros ocidentais acham que vocês descumpriram muitas das promessas em relação à luta contra a corrupção.
Karzai: Não é verdade. Hoje mesmo assinei a demissão de um juiz corrupto. Fizemos algum progresso na reforma das leis e na implementação de instituições modernas, mas ainda há algum trabalho a ser feito.
Spiegel: No maior escândalo financeiro do Afeganistão, a cerca do virtualmente falido Banco de Cabul, a sua família também parece estar envolvida. Vimos um documento do antigo diretor do banco central, Abdul Qadir Fitrat que, na presença do seu irmão, deixou claro que o banco era quase uma organização criminosa e estava prestes a colapsar. Ele forneceu empréstimos a empresas fictícias e laranjas. Os gerentes do banco investiram em enormes mansões em Dubai.
Por que nada aconteceu durante um ano?
Karzai: Chamamos Fitrat e perguntamos a ele; dissemos que havia denúncias de que havia algo errado, mas ele disse que não. Os americanos nunca nos contaram nada sobre isso. O banco não disse nada.
Spiegel: Mas, uma vez que os problemas se tornam aparentes, por que seu governo impediu uma auditoria do banco por especialistas estrangeiros?
Karzai: Acreditávamos que certa embaixada estava tentando criar problemas financeiros para nós. Achamos que todo o escândalo do banco foi criado por mãos estrangeiras.
Spiegel: Qual embaixada?
Karzai: Não vou entrar em detalhes.
Spiegel: O seu mandato termina em 2014, e a lei o impede de concorrer novamente. O que o senhor planeja fazer então?
Karzai: Serei um feliz cidadão aposentado. Nunca deixei o Afeganistão, nem mesmo em tempos difíceis. Não há razão para eu deixar o país.
Spiegel: Senhor presidente, obrigado por esta entrevista.
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