Raffaele Lombardo, presidente da Presidente da província de Catânia, disse que Roma deve pagar e permanecer fora da província ou enfrentará uma "guerra civil" |
Marcello Bartolotta, cirurgião da cidade de Messina, na Sicília, tirou a sorte grande. Ele acaba de assumir um assento no parlamento regional, como substituto de um parlamentar de seu partido que morreu recentemente. A assembleia entrará em recesso em outubro, antes das eleições regionais. Isso, porém, não é um problema para Bartoletta. Afinal, para participar das próximas três ou quatro sessões que restam até lá, ele vai receber cerca de 40 mil euros (em torno de R$ 100 mil), além da ajuda de custo.
Isso, porém, se a Sicília não falir antes. E há chances de isso acontecer.
Os 89 colegas legisladores de Bartolotta e seus 400 assistentes já foram informados de que seus salários de julho não serão depositados pontualmente. Os “Onorevoli”, ou “honoráveis”, como os parlamentares italianos se denominam, estão em pé de guerra diante do anúncio, e o Palazzo Reale, onde a assembleia se reúne, ecoou os gritos de “Queremos nosso dinheiro!” Ainda assim, os próprios parlamentares contribuíram significativamente para o sofrimento financeiro da Sicília.
O problema não é apenas que eles recebem mensalmente um salário líquido de 10 mil a 15 mil euros --mais do que os membros da Assembleia Nacional em Roma-- sem trabalharem muito. A assembleia raramente se reúne, e a produção em geral é bastante baixa. O fato de quase um terço dos honoráveis terem ficha criminal, estarem sendo processados ou estarem sob investigação é no máximo, uma mácula. O verdadeiro problema está no que eles vêm fazendo: a classe política na Sicília, que é semiautônoma, vem distribuindo cargos e dinheiro tão generosamente que a região está em risco de colapso financeiro.
Cargos públicos
Os políticos se provaram particularmente adeptos em criar cargos no serviço público para seus amigos. Hoje, cerca de 144 mil sicilianos recebem seus salários do Estado e um em cada oito exerce função de chefia de alguma coisa. Muitas repartições estão cheias de pessoas que não têm a menor ideia do que deveriam estar fazendo.
No que concerne à criação de empregos, os políticos sicilianos demonstraram criatividade impressionante. Cerca de 27 mil pessoas, por exemplo, protegem a escassa mata da ilha, muito mais do que a província canadense da Columbia Britânica emprega para cuidar de suas extensas florestas.
A Sicília, em teoria, tem direito a 20 bilhões de euros de financiamento da União Europeia desde 2000, mas apenas uma fração desse dinheiro foi retirada. A região não executou muitos projetos aprovados pela União Europeia, e a maior parte do dinheiro que conseguiu sacar foi perdida. Pontes sem estradas de acesso e represas sem água são testemunhos dos escândalos.
Quando a Sicília tentou financiar bares e encenações de Natal com fundos da União Europeia, Bruxelas interrompeu o pagamento de 600 milhões de euros. Agora, a ilha não sabe o que fazer. Alarmado com a dívida de 21 bilhões de euros acumulada pela Sicília, o primeiro-ministro italiano, Mario Monti, quer despachar um inspetor para a região e exigiu a renúncia do presidente da Sicília, Raffaele Lombardo. O governo siciliano respondeu que Roma deve dar o dinheiro e se manter de fora ou enfrentar uma “guerra civil”.
A Sicília é a “Grécia da Itália”
Comentando o desastre, o jornal romano “La Repubblica” disse que a Sicília estava virando uma “Grécia da Itália”. De fato, as práticas gregas (ou sicilianas) são encontradas em todos os países sul-europeus que estão tendo dificuldades nesta crise de dívida. Dentre elas está o uso de empregos públicos como munição de campanha eleitoral, contratos lucrativos para amigos e financiadores do partido e corporativismo político, com acordos feitos para benefício mútuo. O verdadeiro problema do sul não é a crise econômica e financeira --é a corrupção, o desperdício e o nepotismo.
É claro que países como Alemanha e Holanda também têm exemplos de incompetência na administração, morosidade na justiça e políticos interessados somente em preservar seu próprio poder. Mas tais problemas não tendem a ser sintomáticos. Talvez atrapalhem a administração do país e custem muito dinheiro, mas não destroem a fundação do Estado.
A história é diferente em muitas regiões do sul da Europa. Funcionários, comerciantes e pequenos empresários muitas vezes têm que passar mais tempo se defendendo contra ditames burocráticos sem sentido do que trabalhando em seus negócios. Até mesmo a empresa mundial Ikea teve que passar seis anos negociando com autoridades municipais e regionais antes de obter a permissão para abrir uma loja de móveis perto da cidade toscana de Pisa.
A extensão da corrupção e do desperdício que se vê em partes do sul seria considerada intolerável ao norte dos Alpes. Na prática, a máfia é aceita na Itália. A Cosa Nostra na Sicília, a Camorra em Nápoles e a ‘Ndrangheta na Calábria, juntas, movimentam mais de 100 bilhões de euros por ano. A ONG SOS Impresa estima que elas lucraram 70 bilhões em 2011. Isso torna a máfia a maior empresa da Itália, muito acima da estatal do petróleo ENI, com movimento de 83 bilhões de euros e 4 bilhões de lucro.
A máfia é aceita
A máfia controla partes da coleta de lixo, da indústria de transporte e de laticínios e constrói estradas sob contratos públicos. O sistema de contratação pública se presta a todo tipo de fraude. Mas não está sendo modificado. Empresas que obtêm um contrato para construir uma seção de uma estrada por 100 milhões de euros o vendem por 90 milhões --sem levantarem um dedo. Os compradores passam para uma terceira empresa por 80 milhões de euros. E assim por diante. No final, alguém constrói a estrada que deveria custar 100 milhões de euros por apenas 10 milhões --e o resultado é correspondentemente insatisfatório.
Um claro exemplo disso é a estrada A3, de Salerno para Reggio Calabria, no sul da Itália. A construção começou em 1962 e praticamente cada quilômetro foi construído por uma empresa diferente. Quando a estrada por fim foi terminada, em 1974, que surpresa, não tinha acostamento. Depois de mais de 20 anos de debate, os trabalhos de renovação começaram em 1997, e a A3 agora deve ser terminada até 2017. Os custos de construção devem ser dez vezes maiores do que o planejado. Contudo, não há sinal de revolta nacional ou de consequências políticas.
O nepotismo originou-se nos Estados papais e se espalhou rapidamente. Em torno do Mediterrâneo ainda é considerado normal atrair eleitores oferecendo licenças, entregando empregos ou oferecendo alívio fiscal. Na Sicília, se você tiver os amigos certos, pode até construir sua casa no Vale dos Templos perto de Agrigento, considerado Herança Mundial pela Unesco.
Sem amigos em altas posições, o cidadão está perdido
Mas, se você não tiver os amigos certos, será um perdedor. Esse é o destino de alguns dos cidadãos representados pelo novo parlamentar Bartolotta, em Messina.
Enquanto ele poderá viajar de primeira classe para Palermo no futuro, cerca de 3.000 famílias em seu bairro terão de se contentar com moradias primitivas, com telhados de ferro ou telhas de amianto, muitas sem água corrente.
Essa favela originou-se depois do terremoto de 1908, e mais barracos foram erguidos depois dos bombardeios aéreos da Segunda Guerra Mundial. Os barracos mais recentes vieram depois dos deslizes de terra e das enchentes dos últimos anos. Muitas pessoas perderam suas casas e simplesmente não sabiam para onde ir.
Então terminaram em uma favela. Os políticos em geral oferecem ajuda fácil toda vez que as equipes de televisão aparecem, de fato. No dia seguinte, ninguém fala mais nada sobre ajuda, e as vítimas do desastre simplesmente voltam a ser esquecidas --porque não têm os amigos certos e conexões.
Elas não recebem um único euro dos amplos fundos disponíveis da União Europeia.
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