Rebelde sírio reflete acerca da morte de um "irmão de armas" |
Atualmente, vê-se hasteada em alguns postos rebeldes na Síria a bandeira preta da Al Qaeda. Uma dessas está amarrada a um bastão preso a um pneu cheio de pedras, na frente de um posto de fiscalização do Exército Livre da Síria (ELS) em Aleppo, a maior cidade do país. O credo islâmico, “não há deus além de Deus e Maomé é o mensageiro de Deus”, está escrito em árabe na bandeira.
Apesar de ser época de Ramadã, o mês sagrado muçulmano de jejum, os homens sem barba no posto de fiscalização dão algo para o repórter estrangeiro beber. Alguns não seguem a exigência de jejum. Quando perguntamos se sabem que estão com uma bandeira da Al Qaeda, um deles responde: “Claro que sabemos, mas quem disse que é uma invenção da Al Qaeda? É a bandeira do Profeta, e a hasteamos porque somos muçulmanos e estamos travando uma guerra sagrada”.
Nada ilustra melhor a zona cinzenta entre a realidade e as percepções que se tem da guerra na Síria do que esta bandeira, que pode ter letras brancas com fundo preto ou letras pretas em fundo branco.
As agências de inteligência estrangeiras informam que a rede Al Qaeda, fundada por Osama Bin Laden, tem “até 1.500 combatentes” participando da guerra civil síria. Em resposta a uma pesquisa do parlamento alemão, o BND, a agência de inteligência estrangeira da Alemanha afirmou que, na primeira metade de 2012, tinha contado cerca de 90 ataques “que poderiam ser atribuídos a organizações ou grupos jihadistas afiliados à Al Qaeda”. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Ban Ki-moon, está aparentemente referindo-se a análises similares quando ele diz que a presença da organização terrorista na região criou “problemas muito sérios”.
Entretanto, essas avaliações estão baseadas em um pequeno número de fontes que algumas vezes são pouco confiáveis. De acordo com o “Washington Post”, a CIA não manteve um único agente na Síria no final de julho e sim “apenas meia dúzia em postos de fronteira importantes”. Em contraste com a situação na Líbia há um ano, os americanos agora dependem de informações das agências de inteligência da Turquia e da Jordânia.
De quem é esta guerra?
Onze anos após os ataques de 11 de setembro, até os serviços de inteligência mais experientes estão tendo cada vez mais dificuldade em distinguir entre jihadistas da Al Qaeda e outros militantes. “Quem acha que os combatentes da Al Qaeda têm barbas longas e usam roupas paquistanesas é ingênuo”, diz um agente de inteligência árabe.
A maior parte dos rebeldes do ELS nega ter qualquer laço com a Al Qaeda. “Está certo, somos islamistas, mas queremos derrubar Assad e depois ter um país como a Turquia”, diz Abu Bakr, um dos comandantes do ELS em Aleppo, que cuida de uma loja de telefones celulares em sua vida civil. “O que há de errado nisso?”
Essa atitude se repete de Damasco a Idlib. No 17º mês da rebelião, as lutas se disseminaram para quase todas as cidades sírias; o grupo de oposição no exílio continua dividido; e o regime abandonou muitos segmentos na fronteira. Nenhum lado está completamente no controle dos eventos.
São dias de ouro para grupos terroristas e especialistas em terrorismo. Os especialistas vêm advertindo há meses que a Al Qaeda está se infiltrando entre os rebeldes e que grandes números de jihadistas estrangeiros estão entrando na Síria.
Entretanto, em julho, nenhum dos poucos jornalistas independentes ativos na Síria encontrou qualquer combatente estrangeiro.
Mas a situação está mudando, como descobriram em primeira mão o fotógrafo britânico John Cantlie e seu colega holandês Jeroen Oerlemans. No dia 19 de julho, após cruzarem a fronteira pela Turquia, eles pararam no que pensaram ser um acampamento do ELS. Mas se tornaram prisioneiros de jihadistas com Kalashnikovs, falando com um sotaque familiar. “Londrino contra londrino. Não era isso que eu esperava”, escreveu Cantlie no “Sunday Times”.
De acordo com Cantlie, havia jovens britânicos, alguns de origem asiática, no campo. Alguns mal tinham 20 anos, e o grupo de cerca de 30 pessoas incluía meia dúzia de árabes, uma mulher e quatro ou cinco combatentes mais velhos, do Paquistão e da Tchetchênia. “Ficou claro que eles nunca tinham visto Kalashnikovs antes. Eles estavam animados por estarem na Síria. Só o que falavam era sobre como deter um tanque, como avançar por campos abertos e como vasculhar um prédio”, escreveu Cantlie. “O campo era como um curso de aventuras para rapazes desencantados de 20 anos”.
Os rebeldes do ELS liberaram os dois jornalistas após uma semana. “Não é este o jeito sírio. Não queremos essas pessoas vindo aqui e agindo em nosso nome”, disseram apologeticamente a Cantlie.
“Esta é a nossa revolução”, diz Abu Abduh, comandante local do ELS. “Dissemos a eles: lutem contra tropas de Assad, fiquem em seu campo ou saiam daqui!” A princípio, um saudita rico de Jeddah pagou pelos combatentes, mas depois parou, diz Abduh. “Eles provavelmente precisam de dinheiro”, diz ele. Os rebeldes concordam que este é o maior campo jihadista no Norte da Síria.
Tom religioso crescente
Contrabandistas dizem que há mais estrangeiros entrando pela fronteira turca, mas que a maior parte deles logo volta e sai da Síria novamente. Mesmo os que ficam, dizem os contrabandistas, continuam perto da fronteira. O mesmo se aplica à área ao longo da fronteira com o Iraque.
Centenas de sírios da província Deir el-Zour, do Leste, começaram a lutar no Iraque em 2003, mas agora as agências de inteligência ocidentais e árabes dizem que a corrente está fluindo na direção oposta. O governo xiita em Bagdá vê muitos sunitas da fronteira como inimigos, porque eles têm a mesma visão que a Al Qaeda tinha na guerra civil do Iraque: todos querem estabelecer um califado que uniria os sunitas da Síria e do Iraque.
Mas mesmo sem a Al Qaeda e instigadores estrangeiros, a rebelião síria está cada vez mais marcada por tons religiosos. Contudo, isso não ocorre porque os rebeldes estão sendo infiltrados e sim porque o regime cada vez mais se resume às tropas de elite alawitas e às milícias, que estão atacando centros da oposição primariamente sunita com artilharia, tanques e helicópteros. Isso, por sua vez, está alimentando uma sede crescente por vingança.
Mesmo as unidades de combate do ELS sem afiliação religiosa agora estão unindo suas forças sob nomes como “Ansar al-Islam” (“Guerrilheiros do Islã”), que também era o nome de uma organização terrorista notória durante a guerra civil iraquiana.
“Pedimos ajuda ao Ocidente tantas vezes”, diz Amer al-Nasr de Aleppo, que estudou na Alemanha e agora é porta-voz de uma rede de ativistas sírios. “Advertimos que, de outra forma, outras pessoas apareceriam, pessoas que não queremos, mas que trazem dinheiro”.
Laços do Estado sírio com a Al Qaeda
É difícil avaliar a verdadeira presença da Al Qaeda na guerra civil. Desde o final de dezembro de 2011, uma série de bombas grandes foi detonada em Damasco, Aleppo e em outras cidades. A televisão estatal síria consistentemente culpa a Al Qaeda, enquanto a oposição nega qualquer envolvimento com o grupo terrorista, dizendo que o próprio regime está encenando os ataques.
Mas no dia 23 de janeiro de 2012, a Frente Al-Nusra, um grupo jihadista antes desconhecido, assumiu a responsabilidade por vários atentados suicidas. No dia 11 de fevereiro, Ayman Al-Zawahiri, sucessor de Bin Laden como líder da Al Qaeda, elogiou os rebeldes sírios como “leões” e conclamou o apoio dos muçulmanos. Poucos dias depois, o diretor de inteligência nacional dos EUA, James Clapper, disse que as explosões mais recentes da Síria “tinham todas as marcas de um ataque da Al Qaeda”.
Desde então, houve mais ataques e mais vídeos, mas também houve mais contradições. Por exemplo, a televisão estatal síria mostrou um grupo de supostas vítimas que, quando acharam que não estavam mais sendo filmadas, levantaram-se. Listas com nomes de “mártires” publicadas no site da agência de notícias estatal Sana continham nomes de soldados mortos anteriormente, e em outros locais. E um micro-ônibus que aparece em um vídeo de um ataque foi meramente demolido após a explosão, apesar de se dizer que tinha explodido.
Os rebeldes alegam que o regime de Assad está encenando os ataques em seus centros de operação para transmitir a imagem de vítima da Al Qaeda, o que parece difícil de acreditar. Mas os relatos de colaboração anterior entre o regime e a Al Qaeda soam igualmente absurdos – e, ainda assim, são bem documentados. Desde 1999, um imame carismático chamado Abu All-Qaqaa teve permissão para treinar um grupo de seguidores zelosos em Aleppo. Al-Qaqaa era conhecido por seus sermões cheio de ódio contra judeus e americanos e em favor de um islamismo radical – e isso tudo na Síria de Assad, onde há pena de morte para os acusados de serem membros da Irmandade Muçulmana.
Quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, o imame se tornou um polo de atração para jihadistas da Síria – além da Líbia, Arábia Saudita e Kuwait – que queriam entrar para a luta da Al Qaeda no Iraque contra os americanos. Mas a Síria não queria que eles voltassem.
Os jihadistas permitiram que o regime aplicasse pressão sobre as tropas norte-americanas no Iraque, enquanto ficava de olho na cena jihadista internacional. As agências de inteligência sírias organizaram treinamentos e transferências e, durante anos, cerca de 100 combatentes estrangeiros chegavam por mês no aeroporto de Damasco para viajar para o Iraque.
Em novembro de 2004, tropas norte-americanas no Iraque informaram que tinham encontrado fotos de sírios de alto escalão e um aparelho de navegação contendo as coordenadas de cidades sírias com combatentes do grupo radical Jaish-e-Mohammed (exército de Maomé) em Fallujah. Durante uma operação na fronteira em 2007, foi encontrado um arquivo que continha os detalhes de viagem de centenas de combatentes que tinham entrado no Iraque pela Síria. Em outubro de 2008, tropas norte-americanas atacaram até uma aldeia na Síria, onde mataram um comandante da Al Qaeda que havia colaborado de perto com Abu Musab Al-Zarqawi, então líder da Al Qaeda no Iraque.
Um ano e meio depois, quando as tensões tinham diminuído no relacionamento entre sírios e norte-americanos, o coordenador de inteligência sírio Ali Mamlouk, hoje alto oficial de Assad como diretor geral de inteligência, explicou a diplomatas americanos o tratamento especial do regime à Al Qaeda: “No princípio, não atacamos ou matamos imediatamente. Em vez disso, nos infiltramos e somente no momento oportuno, agimos”.
O mesmo Ali Mamlouk foi indiciado pelas autoridades libanesas por ter planejado até 20 ataques de bombas elaborados no Líbano e por ter pessoalmente dado explosivos para Michel Samaha, ex-ministro da informação do Líbano e firme aliado do regime sírio, e sua equipe. Samaha foi preso na última quinta-feira (09/8) em Beirute e confessou, de acordo com fontes de segurança citadas pelo jornal “Daily Star”.
Reportagens conflitantes
Desde o início da rebelião, muitos veteranos sírios da guerra no Iraque vêm sendo libertados em ondas depois de anos na prisão. Entre eles, um homem com o nome de guerra de Abu Musab Al-Suri, considerado teórico da Al Qaeda.
Isso nos leva de volta à Frente Al-Nusra. O grupo não parece ser pura invenção do regime, como alega a oposição. Várias fontes nos subúrbios dominados por rebeldes de Damasco, como Douma e Harasta, dizem que há cerca de 30 membros em uma célula com o mesmo nome e que seu líder e metade dos homens são veteranos da luta no Iraque, liberados de prisões sírias. As fontes, porém, também salientam que o grupo não tem nem os meios nem a capacidade de obter toneladas de explosivos e contrabandeá-los por todos os pontos de vistoria. Seu líder nem tem telefone celular, dizem. A conexão do grupo com a série de ataques pela qual o Al-Nusra se diz responsável continua questionável, como a existência de seu suposto líder, Mohammed Al-Golani, que só aparece em vídeos, e com máscara e voz distorcida eletronicamente. “Ninguém conhece Golani”, diz uma fonte em contato com vários membros do Al-Nusra.
Enquanto os grupos que defendem uma teocracia e recebem apoio de sauditas estão cada vez mais tomando forma no Norte e Leste da Síria, as coisas se tornaram relativamente calmas em torno dos líderes da Al Qaeda na Síria. No final de junho, o Al-Nusra negou ter planejado um ataque contra a mesquita Al-Rifai em Damasco. Contudo, no início de agosto, assumiu a responsabilidade pelo assassinato de um apresentador de televisão. Fora isso, o grupo tem estado quieto.
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