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segunda-feira, 17 de junho de 2013

A vida despreocupada de uma adolescente na Berlim em guerra

O diário de Brigitte Eicke, uma adolescente de Berlim durante a 2ª Guerra Mundial, é um relato de idas ao cinema, primeiros beijos, penteados e vestidos, junto com uma breve referência ao desaparecimento de judeus. Publicado recentemente, ele destaca a indiferença pública que abriu caminho para Auschwitz.

1º de fevereiro de 1944
"A escola foi bombardeada quando chegamos pela manhã. Waltraud, Melitta e eu voltamos para a casa de Gisela e dançamos ao som do gramofone."

As meninas têm caráter forte. Em dezembro de 1942, enquanto as bombas aliadas se derramavam sobre Berlim e soldados nazistas lutaram pelo controle de Stalingrado, Brigitte Eicke, de 15 anos de idade, começou a escrever um diário. Durante os próximos três anos, a jovem auxiliar de escritório escreveu todos os dias.

Agora publicado em alemão com o título "Backfisch im Bombenkrieg" – backfisch é um termo antiquado para uma menina prestes se tornar mulher – ele acrescenta uma nova perspectiva à experiência da 2ª Guerra Mundial na Alemanha e mostra não só como a guerra pode ser mundana, mas também a forma como a maioria dos alemães conseguiu fazer vista grossa à brutalidade nazista.

Até recentemente, relatos do sofrimento dos próprios alemães durante o tempo de guerra eram considerados uma espécie de tabu, e seu trauma era eclipsado pelo horror do Holocauto. Mas agora que a geração da época da guerra está morrendo, cada fatia de história social em primeira mão tem seu valor inerente.

Gerda Kanzleiter trabalha na ZeitzeugenBörse de Berlim (ZZB), uma organização sem fins lucrativos que recolhe e documenta depoimentos de testemunhas oculares. "Perdemos muitos dos idosos com quem já trabalhamos, e estamos perdendo mais a cada mês", diz ela. "Muito em breve, não restará mais nenhum."

O diário de Eicke foi descoberto no último momento, quando ela o enviou para a escritora e historiadora local Annet Gröschner, que coeditou e anotou a versão publicada. "O diário havia amarelado e praticamente desintegrado", diz Gröschner. "Estava quase ilegível."

Mas ele se mostrou um achado e tanto. "O que é notável sobre o diário é sua autenticidade", diz ela. "É muito diferente dos relatos pessoais da 2ª Guerra Mundial que foram escritos com o benefício da retrospectiva e com as gerações futuras em mente."

E, como Gerda Kanzleiter da ZBB aponta, a história anedótica costuma ser muito mais reveladora do que a pesquisa acadêmica, sem falar na ficção e no drama. Para a Alemanha, que levou décadas para chegar ao ponto de enfrentar seus demônios, ele tem desempenhado um papel fundamental na compreensão da guerra em todas as suas facetas.

Isso inclui a vida cotidiana. Por longos períodos, o diário de Eicke reflete uma existência adolescente surpreendentemente normal, evocando a vida em frente à casa, que em alguns momentos é monótona e, em outros, de arrepiar os cabelos. Ela anota suas idas frequentes ao cinema de uma forma tão diligente quanto registra a duração dos avisos de ataques aéreos, e parece não se irritar tanto com os estragos produzidos pelos "Tommy" em sua cidade quanto pelo mau humor de sua mãe. Mas seu comentário fleumático desmente a triste realidade da época.

2 de março de 1945
"Margot e eu fomos ao cinema Admiralspalast ver 'Meine Herren Söhne'. O filme era bonito, mas houve um corte de energia no meio dele. Que irritante!"

Há um bom motivo pelo qual qual "Gitti", como ela era chamada, às vezes soa um pouco simplista. "Ela só começou o diário para praticar suas habilidades de estenografia, então era econômica sobre o que dizia", comenta Gröschner. "O diário é simplesmente um relato claro de sua vida na época. Ela não tinha nada a provar e nenhum leitor em mente, então não embelezou nada e não se censurou. E mesmo que não tenha entrado em muitos detalhes, ela transmite muito com poucas palavras."

Indiferença juvenil
Gitti parece bem mais preocupado com os primeiros beijos e os modelos de vestidos do que com os eventos mundiais. Ela também tem um extraordinário sangue frio. Sobre um ataque aéreo em março 1943, que matou duas pessoas, feriu 34 e deixou mil desabrigados em seu bairro, ela só reclama que aconteceu "no meio da noite, foi horrível, eu estava meio dormindo."

Inocente, a aparente incapacidade de Gitti para enxergar o quadro mais amplo vai além do egoísmo juvenil. Embora seus comentários de fofocas sobre amigos e colegas de escola sugiram que não há nada de errado com sua capacidade de observação, Gitti é totalmente inconsciente das atrocidades do Terceiro Reich, referindo-se apenas uma vez em todo o diário às deportações sistemáticas dos judeus pelos nazistas.

27 de fevereiro de 1943
"Waltraud e eu fomos à ópera assistir a 'The Four Ruffians'. Eu tinha um ingresso para Gitti Seifert também. Que monte de absurdos, foi ridículo. Voltamos caminhando para a Wittenbergplatz e entramos no trem subterrâneo em Alexanderplatz. Três soldados começaram a conversar com a gente. Gitti é tão boba, ela ficou em silêncio quando eles falaram com ela. O mínimo que se pode fazer é responder, mesmo que nós não fôssemos a nenhum lugar com eles. Judeus de todas as partes da cidade estão sendo levados, incluindo o alfaiate do outro lado da rua."

Mas, apesar de trabalhar numa empresa têxtil com sede na Hackesche Höfe em Mitte, na época no coração do bairro judaico de Berlim, ela não notou nada de errado.

Gitti tem hoje 86 anos de idade, e mora a poucas ruas de distância de onde ela cresceu. Ela não se desculpa por sua indiferença. "Eu era jovem e estava ocupada com a minha própria vida", lembra-se. No mesmo quarteirão onde ela trabalha, virando a esquina, havia um lar de idosos na Grosse Hamburger Strasse que servia como um centro de recolhimento para os transportes de judeus para Auschwitz e Theresienstadt. "Minha filho sempre me diz: como você pode ter ficado tão alienada? Diz ela. "Eu nunca disse nada!"

A terminologia nazista ainda passa facilmente pela sua língua. "Berlin já estava Judenrein ("livre de judeus ") naquele momento, e eu era muito jovem para ter notado algo antes disso. Havia algumas meninas judias na minha primeira fotografia de classe, tirada em 1933, mas quando a segunda foi tirada, elas já não estavam mais lá. Quando perguntei a minha mãe sobre elas, ela disse que elas haviam se mudado para a Palestina."

Décadas se passariam até que ela entendesse o que havia acontecido. "Foi só quando visitei Buchenwald em 1970 que vi fotografias dos campos", lembra-se. "Levei anos para perceber o que havia acontecido."

Apesar de humilde, a história de Gitti é emblemática. Como o historiador britânico Ian Kershaw escreveu em 1983: "A estrada para Auschwitz foi construída pelo ódio, mas pavimentada com a indiferença." Ela é imune à ideologia. Tudo o que ela faz é nadar com a maré, narrando alegremente sua ascensão nas fileiras da Liga de Meninas Alemãs (BDM) e mencionando superficialmente o fato de se juntar ao partido nazista em março de 1944. Ela faz isso principalmente para fazer amigos, ao que parece.

"Normalmente, tudo que fazíamos era cantar", diz ela. "Mas sim, estávamos muito interessados em Hitler – é claro que estávamos, todos nós éramos doutrinados como crianças."

Mas a política nunca a interessou. Alguns marcos têm espaço em seu diário: no início de 1943, ela faz alusão ao famoso discurso de Goebbels – "a Guerra Total começou hoje", diz ela friamente – e em julho de 1944, ao atentado fracassado contra a vida de Hitler. Ela não parece estar excessivamente perturbada.

Em geral, ela está mais preocupada com as dificuldades do dia-a-dia – embora sob as circunstâncias, muitas delas parecem luxos. Em novembro de 1944, por exemplo, enquanto Hitler planejava uma grande ofensiva na região de Ardennes, na Frente Ocidental, ela reclamava de um permanente desastroso e temia ir para o trabalho parecendo um susto.

Sua perspectiva é raramente vislumbrada na literatura da 2ª Guerra Mundial, uma área em que a voz feminina levou um tempo para ser ouvida.

"Nos anos 1950 e 60, o foco estava mais nas memórias de batalha e na experiência masculina", diz Arnulf Scriba, que coordena um projeto no Museu Histórico Alemão chamado "Memória Coletiva", um arquivo de testemunhos pessoais.

Como ele aponta, estes tendem a ser fornecido por vítimas ou algozes – especialmente pelas primeiras. "Elas podem esperar ser "compreendidas", enquanto é evidente que ninguém se orgulha de ter assassinado ou estuprado, ou simplesmente de ter estado do lado errado", diz ele.

Gitti, entretanto, não é nenhuma das duas coisas. Ela é apenas uma peça na engrenagem que mantinha a Alemanha nazista funcionando, uma jovem especialista na arte de ignorar a feiúra, disposta a acreditar no que dizem a ela, e por fim, uma das pessoas de sorte.

Apesar de ter vivenciado a Batalha de Berlim em primeira mão e perdido seu pai e seu tio na frente, ela foi poupada das experiências angustiantes detalhadas em "A Woman in Berlin" ["Uma Mulher em Berlim"], o diário publicado em 2005 de uma mulher que foi estuprada repetidamente durante a ocupação do Exército Vermelho, sem mencionar o destino de Anne Frank, que começou seu diário poucos meses depois de Gitti iniciar o dela.

Anne Frank era dois anos mais nova do que Brigitte Eicke, e o fato de as duas jovens partilharem uma voz narrativa semelhante, jovial e não afetada torna o contraste entre a sua vida ainda mais chocante. Enquanto Anne morreu em Bergen-Belsen, Gitti conseguiu fechar a porta para a Alemanha nazista sem mais delongas. Assim que a guerra acabou, ela se tornou membro da Organização da Juventude Anti-Fascista.

"Tenho a impressão de que eles querem a mesma coisa que os nazistas, apenas com outro nome. As mesmas demandas, os mesmos discursos", escreveu ela em julho de 1945.

"Nós apenas ficamos confusos, não tivemos escolha", diz ela hoje. Outros podem discordar. Muitas lições foram aprendidas na 2ª Guerra Mundial, mas, como seu diário ilustra, o que o fato de crescer na Alemanha nazista ensinou à jovem Eicke Brigitte mais do que qualquer outra coisa foram táticas de sobrevivência. E isso não torna sua história menos valiosa.

"Basicamente, todo testemunho ocular tem algo interessante a dizer", diz Arnulf Scriba, do Museu Histórico Alemão. "Seja qual for a sua experiência, acabam acrescentando à nossa compreensão do passado."

Um comentário:

  1. Michel, obrigado por trazer esse texto até nós.
    abraços e continua o bom trabalho!!

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