sexta-feira, 20 de julho de 2012

Encontro histórico no Cairo expõe contrastes entre novo presidente egípcio e Hillary Clinton


Secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, se reuniu sábado (14) com novo presidente egípcio, o islamita Mohamed Mursi

Sentados em “Louis Farouk”, essa imitação de mobília Luís 16 que decora os palácios árabes, eles sorriem um para o outro de forma cortês. Eles se medem e se avaliam. A enviada especial dos Estados Unidos veio cumprimentar o primeiro presidente egípcio eleito democraticamente.

Estamos no Cairo, em um sábado, 14 de julho. Na ponta do sofá, um pouco apertada em um tailleur preto de calça, a democrata Hillary Clinton; em uma poltrona ao lado, o islamita Mohamed Mursi, de terno e gravata cinza austero. Esses dois não têm absolutamente nada a ver um com o outro.

Nascida no ano de 1947 em Chicago, a secretária de Estado encarna uma trajetória política forjada nas turbulências dos anos 1960 nos Estados Unidos. A de uma baby-boomer que se engajaria em todas as causas: liberação da mulher, direito ao aborto, defesa das minorias sexuais e outras, e, por fim, militância contra a guerra do Vietnã. Foi uma Jane Fonda que passou pela faculdade de direito de Yale.

Mohamed Mursi nasceu em 1951 na fazenda da família em uma cidadezinha do delta do Nilo. Graças a uma bolsa, o aluno sério e merecedor passou dez anos na Califórnia para estudar e depois lecionar engenharia civil. Não voltou de lá usando camisa florida e rabo-de-cavalo, permanecendo fiel a uma vida escolhida já no final de sua adolescência. Ele foi militante dessa estranha confraria que vê o Corão como princípio organizador da vida política, econômica, social e familiar: a Irmandade Muçulmana.

No salão do palácio presidencial de Heliópolis, subúrbio do Cairo, no dia 14 de julho, o encontro foi histórico: a representante dos Estados Unidos diante de um líder islamita; um modelo de conservadorismo social e de integrismo religioso diante de uma protestante metodista progressista.

O passado recente não facilitou a conversa. Os Estados Unidos não esperaram os atentados do 11 de setembro de 2001 para desconfiar do islamismo político. Como ele mantinha a paz com Israel, eles apoiaram durante trinta anos o aliado deles, Hosni Mubarak. O líder autocrata atormentava a Irmandade, prometido à tortura e à prisão. A Irmandade, próxima do Hamas palestino, vilipendiava os Estados Unidos e criticava o tratado de paz com Israel.

No entanto, as relações entre Washington e o islamismo são complicadas. No Cairo, Hillary Clinton encontrou Mursi em conflito aberto com o exército --um exército amplamente financiado e treinado pelos Estados Unidos. Os militares assumiram o governo desde a queda de Mubarak, em fevereiro de 2011. Recém-eleito, com 51,73% dos votos, Mursi tem procurado se impor aos generais.

A secretária de Estado encoraja a Irmandade e o exército, as duas únicas organizações políticas estruturadas no Egito, a negociarem. Mas ela toma partido do presidente eleito. Os Estados Unidos querem que “a transição política beneficie plenamente o poder civil”, ela diz. Clinton aconselha os generais a “voltarem a um papel que diga respeito puramente à defesa da segurança nacional”.

Os militares, os coptas, laicos, de esquerda ou de direita ainda não gostaram. A mensagem de Washington não deixa de ser clara. Se eles foram livremente eleitos, e respeitarem os direitos das minorias e o tratado de paz com Israel, os Estados Unidos cooperarão com a Irmandade Muçulmana. Mursi deu garantias.

Num momento em que o islamismo político está emergindo como a força dominante no mundo árabe --de Rabat até o Cairo, passando por Túnis e, talvez no futuro, Damasco --,  a mensagem do dia 14 de julho é importante. Não é tão surpreendente assim. Os Estados Unidos encorajaram a “primavera árabe”. Eles pediram por eleições, está sendo coerente com suas escolhas. Nos últimos meses, eles aumentaram o número de contatos com a Irmandade egípcia.

Estaria Washington convencida da conversão dos islamitas à democracia política? O verdadeiro teste está por vir, explica Richard Haas, um dos grandes inspiradores da política externa americana. “No fim, tanto para um indivíduo quanto para um partido”, escreve o presidente do Council on Foreign Relations, o mais influente dos clubes de reflexão estratégica, “a verdadeira prova de seu apreço pela democracia é aceitar perder as eleições, não participar delas e vencê-las”.

“Isso pressupõe que não nos contentamos com uma apuração honesta dos votos,” ele diz, “mas também que o acesso à televisão, o direito de se organizar e de levantar verba sejam distribuídos equitativamente”.

Um americano, sobretudo se for conservador, consegue entender melhor do que um europeu o perfil ideológico da “Irmandade Muçulmana”: a mistura de Deus e política; o liberalismo em economia; o conservadorismo dos costumes; um anticomunismo visceral --nada disso é completamente desconhecido da vida pública nos Estados Unidos.

Quando seus interesses estratégicos estavam em jogo, os Estados Unidos nunca hesitaram em ter as relações mais estreitas com os regimes mais islâmicos. A aliança militar-petroleira com Riad é o melhor exemplo disso. Ao lado do regime saudita, a Irmandade Muçulmana egípcia é a partidária de um islamismo político dos mais moderados --centristas de convicções permissivas!

A estranha relação mantida com o Paquistão não é menos paradoxal. Eis um aliado dos Estados Unidos cujo exército --em parte equipado pelos Estados Unidos --é um ator político de peso. Só que o exército paquistanês financia e arma islamitas extremistas.

Washington mantém as melhores relações com Ancara, onde há dez anos reina um partido turco islâmico, o AKP. O partido de Recep Tayyip Erdogan, que chegou de forma muito democrática ao poder, contribuiu para liberalizar a Turquia. Mau presságio? De alguns meses para cá, a equipe de Erdogan tem cedido a um autoritarismo cada vez mais preocupante.

No departamento de Estado, refletiu-se muito sobre o “precedente” argelino de dezembro de 1991. Os Estados Unidos aprovaram na época um golpe de Estado destinado a interromper eleições livres que aparentemente seriam ganhas por um partido islamita. Seguiram-se dez anos de uma guerra civil atroz --dezenas de milhares de pessoas morreram, milhares “desapareceram” (sobre quem não se sabe nada ainda).

Talvez Clinton estivesse pensando nisso enquanto conversava com o “Irmão Muçulmano” Mohamed Mursi.

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