quinta-feira, 15 de março de 2012

Na guerra contra o crime e o narcotráfico, o Exército vai para as ruas da América Latina


Soldados do Exército Brasileiro no Complexo do Alemão
A América Latina vive um dos debates mais importantes de sua história: o do futuro de seus exércitos. O assunto ganhou especial relevância por dois motivos: porque se considera improvável uma guerra ou um golpe de Estado e pela crescente ameaça do narcotráfico e do crime organizado.

México, Honduras e Guatemala lançaram suas forças armadas na luta contra os narcos, na linha do que a Colômbia e o Peru faziam há anos. O Brasil utiliza os militares para desocupar as favelas e frustrar greves de policiais, e a Argentina há tempos encarregou um corpo paramilitar de tarefas de segurança na província de Buenos Aires, diante da crescente corrupção da polícia local. Esse mesmo corpo, a Gendarmaria, se viu agora envolvido em um caso de espionagem de políticos e dirigentes sociais.

A discussão sobre o papel das forças armadas não afeta somente a América Latina, mas também os países desenvolvidos. Na cúpula sobre terrorismo realizada em Madri em março de 2005 foram definidos uma série de casos nos quais se deve empregar militares contra ameaças criminosas: quando as forças de segurança se virem sobrepujadas por uma ameaça, para a impermeabilização das fronteiras, em cooperação com forças estrangeiras e quando a ameaça estiver amparada em territórios de outros países que sejam incapazes de atuar por si mesmos.

O apoio ao primeiro desses casos cresceu consideravelmente nos países latino-americanos, embora com as reservas próprias de uma região onde a imagem das forças armadas ainda é associada à repressão dos anos 1970 e 80, e onde a última ameaça de guerra (Venezuela-Colômbia) e o último golpe de Estado (Honduras) ocorreram há menos de quatro anos.

"Os exércitos são para a guerra. O combate ao crime e em especial a luta contra o narcotráfico exigem uma preparação e tecnologia que as forças militares não têm. Envolver o exército na luta contra a droga exige mudanças doutrinárias, filosóficas e da missão militar", explica Hernán Castillo, catedrático e especialista em defesa da Universidade Simón Bolívar da Venezuela. "Dito isso, creio que quando o crime organizado se combina com grupos irregulares armados, sim, os exércitos devem se envolver. É preciso ser flexível no emprego dos recursos à disposição de cada Estado para derrotar, minimizar e reduzir o dano que o narco possa causar à sociedade", acrescenta.

A diferença entre a luta contra o crime urbano e rural é algo em que a maioria dos especialistas insiste especialmente. Todos justificam a intervenção militar nas áreas rurais e muito poucos na urbana. "A Colômbia sofreu a maior ação combinada de operações ilegais fruto do narcotráfico, e depois de 47 anos de luta contra grupos terroristas ficou claro que o negócio do narco supera a capacidade de contenção da polícia. A atividade criminosa em áreas distantes dos centros urbanos e ao longo de fronteiras altamente permeáveis, onde a presença do Estado sempre foi escassa, permitiu o crescimento acelerado do negócio do narcotráfico. Em países como Colômbia e Peru é impossível combater o crime sem envolver as forças armadas", afirmou o coronel aposentado da espionagem militar colombiana Michel Martínez.

"A participação do exército mexicano, apesar dos êxitos que tiveram na luta contra o narcotráfico, se apresenta como improvisada. Os mexicanos não parecem ter uma estratégia clara e um plano em longo prazo. Até agora, por um lado as operações se concentraram na utilização da inteligência militar, na infiltração e na espionagem. E por outro o objetivo principal parece ser golpear o mais alto nível, os chefes, a cabeça das organizações, muito mais que a desarticulação das estruturas, conexões e procedimentos" do narco, acrescenta Martínez. "Toda essa luta em suas fases iniciais corresponde às forças policiais, mas o Estado mexicano decidiu começar o combate com os recursos militares, apesar de a guerra ser principalmente urbana."

Em novembro de 2010, durante a conferência de ministros da Defesa dos países americanos --com exceção de Cuba e Honduras--, se consagrou o princípio de transparência do gasto militar e do uso das forças armadas em casos de catástrofes humanas e naturais; e se promoveu a participação em missões de paz. A delimitação dos temas de segurança e defesa foi deixada para mais adiante.

Entretanto, o Brasil estabeleceu em seu plano de defesa para os próximos 20 anos a utilização do exército para atacar as ameaças internas que sobrepujam a polícia. O brasileiro Eliézer Rizzo de Oliveira, autor de livros sobre defesa e democracia, acredita que as operações militares contra o crime devem ser muito vigiadas pelo poder civil e devem contar com observadores da ONU ou da Organização de Estados Americanos. Além disso, afirma que os futuros comandos das forças armadas também devem ter uma formação cívico-militar mais equilibrada.

A reforma militar implementada pelo Brasil durante o mandato de Lula é seguida com muito interesse por seus vizinhos. Em primeiro lugar, devido ao papel do país como potência regional e, em segundo, porque as mudanças são profundas. Além de reforçar o poder naval e terrestre para proteger os recursos naturais --especialmente a exploração petrolífera no mar--, o Brasil intensificará o treinamento de brigadas destinadas a vigiar a Amazônia e moverá o grosso de suas forças do sul industrial do país --pedra fundamental do Estado Novo, o Brasil moderno forjado por Getúlio Vargas-- para o centro. Além dessa recolocação, está previsto que os corpos sejam mais leves e versáteis.

A Argentina também desenhou um plano de reestruturação chamado Exército Argentino 2025, que inclui mudanças de estratégia, organização e funções; mas ainda não há informação para sequer adivinhar os objetivos concretos. A Argentina é um dos poucos países que têm corpos paramilitares como a Gendarmaria e a Prefeitura (guarda-costas) --criados à imagem da Gendarmaria francesa, a Guarda Civil espanhola ou os carabineiros italianos-- envolvidos nas tarefas de segurança interna e com melhor imagem que a polícia. No entanto, a Gendarmaria foi recentemente ligada a um caso de espionagem de dirigentes políticos e sociais que reflete a alta exposição à corrupção dos militares dedicados a combater o crime.

Não poucos especialistas latino-americanos creem que a criação desses corpos paramilitares, com maior formação em práticas policiais, mas menos permeáveis à corrupção, podem ser o caminho do meio. Outros creem que é melhor investir nas forças especiais dentro das forças de segurança, como o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) brasileiro, que saltou à fama devido ao filme "Tropa de Elite". Em todo caso, seria a criação de corpos intermediários capazes de realizar tarefas de investigação, infiltração e espionagem, chaves para combater a estrutura executiva e financeira dos bandos criminosos.

Um comandante espanhol veterano dos Bálcãs e do Afeganistão, e atualmente em missão na América do Sul, explica o papel dos exércitos na luta contra o crime de forma simples: "No Afeganistão, em determinadas áreas, fundamentalmente a inteligência, também estão nos pedindo capacidades tipicamente policiais como parte importante da campanha da contrainsurgência. Por exemplo, investigar redes de ópio, tráfico de armas ou corrupção política, e a verdade é que não avançamos. O conceito de aprender a tomar sopa com um garfo me vinha à mente lá com muita frequência. As forças armadas somos um garfo, ou uma faca, mas por mais que nos ponham no prato da sopa não seremos uma colher."

A reorganização das forças armadas representa para a América Latina um dos maiores desafios em 200 anos de história independente. Um grande especialista nos conflitos latino-americanos, o americano Robert Scheina, divide a história militar da região em duas etapas: a era do caudilho, que vai desde a revolução haitiana de 1791 até a guerra hispano-americana de 1898; e a era do soldado profissional, que vai desde a intervenção dos EUA no Panamá até a guerra contra o narcotráfico na Colômbia, que ainda sobrevive. Com as primeiras pistas na mesa, tudo aponta para que a terceira era será marcada pelo envolvimento das forças armadas na luta contra o crime organizado em todo o continente.

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