A cena é tão rápida quanto recorrente: em um vilarejo do delta do Nilo, um homem é apontado por uma multidão em fúria como o autor de um crime que ficou impune. Quando a polícia finalmente intervém, muitas vezes é tarde demais. O acesso de fúria coletiva passa e o vilarejo volta à sua rotina.
O último exemplo até o momento desse tipo de justiça popular, nova praga do Egito rural, ocorreu no domingo (9). Um homem acusado de ter estuprado e assassinado uma adolescente foi linchado no município de Qesna, na província de Monufia, ao norte do Cairo. Mas é principalmente na província vizinha de Sharkia, a mais populosa depois do Cairo e de Gizé e uma das mais pobres do país, que esse gênero de ato vem ocorrendo. Pelo menos 17 deles foram registrados ali desde a queda do regime de Mubarak, em janeiro de 2011, segundo uma fonte policial citada pela agência de notícias AFP.
"Essa situação é fruto do enfraquecimento do Estado e da desmoralização da polícia," analisa Ammar Ali Hassan, um sociólogo cairota. "Desde a revolução, que foi desencadeada sobretudo em reação à violência das forças de ordem, uma parte de seus membros hesita em aparecer em público, sobretudo nesse tipo de contexto, por medo de serem novamente atacados pela população. Como o povo se sente mais forte que a polícia, ele não hesita em fazer justiça com as próprias mãos".
"Característico dos períodos de transição política"
No início de maio, a residência de Rabie Abdessalem, representante da Irmandade Muçulmana, o partido governista, em Kattaouiya, na província de Sharkia, foi tomada de assalto por moradores furiosos. O alvo da condenação era o filho do figurão islamita, Youssef, de 16 anos de idade. Após uma briga com um morador que havia insultado seu pai no Facebook, este abriu fogo no meio da rua, matando um transeunte e ferindo um outro. Atacado pela multidão, o adolescente foi estripado sem qualquer outro julgamento e seus restos mortais foram arrastados por centenas de metros no vilarejo. Segundo o correspondente local do jornal "Al-Ahram", somente dois policiais foram enviados para o local do ataque, várias horas após seu sórdido desfecho.
"O governo está enfrentando um dilema típico dos períodos de transição política", analisa Álvaro Vasconcelos, pesquisador no Arab Reform Initiative e especialista em questões securitárias. "Se ele age, é criticado, e se não age também é criticado. A prudência da polícia deve ser ainda maior pelo fato de que seus agentes não dominam bem as técnicas de coerção não letais".
Em março, em Ezbat al-Gindy, um vilarejo da província de Sharkia, um homem acusado de roubar um caminhão foi enforcado em uma árvore. Alguns dias antes, em Mahallat al-Ziad, na província vizinha de Gharbia, dois indivíduos, supostos membros de uma gangue de sequestradores, foram mortos e depois pendurados pelos pés em um poste de luz.
Na opinião dos especialistas, esse tipo de castigo, conhecido como "Al-haraba", não começou com a revolução. Nos vilarejos do delta, bem como no vale do Nilo, regiões que funcionam segundo um modo ainda amplamente tribal, onde todo mundo se conhece e onde é fácil identificar os autores de roubos ou de assassinatos, os atos de vingança popular sempre ocorreram.
Salafistas formaram milícias privadas
Mas o vazio securitário e o marasmo econômico que assolam o país há dois anos prejudicaram os mecanismos de controle social, que até então serviam como rede de segurança, e impulsionou a criminalidade para níveis jamais vistos. Segundo o Ministério do Interior, a taxa de homicídios triplicou desde 2011 e o número de assaltos à mão armada cresceu dez vezes, levando a um aumento do uso da justiça por conta própria.
Segundo seus opositores, o próprio presidente Mohamed Mursi encorajou esse abuso. Uma semana antes do linchamento de Mahallat al-Ziad, enquanto o país era tomado por violentos confrontos, acompanhados de um movimento de greve da polícia, o procurador-geral convocou os cidadãos a virarem auxiliares das forças de ordem. Em virtude de um obscuro artigo do código penal, o magistrado incitou os egípcios a deterem qualquer pessoa que estivesse perpetrando atos de vandalismo.
Ao mesmo tempo, o movimento salafista Gamaa Islamiya havia anunciado a formação de milícias privadas em Assiout, no vale do Nilo, que deveriam suprir as deficiências do Estado. "O presidente Mursi deve retirar as declarações do procurador", afirma Hassan. "A Irmandade Muçulmana também deve parar de usar capangas em seus confrontos com a oposição. Enquanto não for feita uma reforma da polícia, é assim que conseguiremos limitar os danos"
Em março, após um outro rápido acerto de contas, no vilarejo de Gandia, ao norte do Cairo, o pai da vítima, acusado de roubo, havia revelado, com base em atestados médicos, que seu filho sofria de distúrbios mentais. Revoltado, ele prometeu se vingar também.
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