Durante quatro dias, mais de 400 mentes políticas das mais brilhantes da China reuniram-se em salas de enfumaçadas em um hotel de Pequim, debatendo vigorosamente o futuro da nação.
Era abril de 1989 e, após uma década de transformação econômica, a China enfrentava um clamor por liberalização política. Dias depois, protestos irromperam na Praça de Praça da Paz Celestial, e as vidas daqueles presentes à reunião tomaram rumos radicalmente diferentes. Vários hoje são líderes nacionais, incluindo Li Keqiang, primeiro-ministro da China. Outros acabaram na prisão ou no exílio, acusados de apoiarem as manifestações que abalaram o Partido Comunista e foram reprimidas por soldados que ocuparam a cidade no dia 4 de junho, matando centenas de transeuntes e manifestantes desarmados.
"O clima na reunião era deixar uma centena de flores desabrocharem e uma centena de escolas de pensamento competirem entre si", disse Chen Yizi, que ajudou a organizar a conferência. "Depois, ficou impossível realizar uma reunião como aquela, onde todos estavam dispostos a debater diferentes pontos de vista".
Este ano é o 24 º aniversário do banho de sangue, e o primeiro sob uma liderança do partido dominada por autoridades com laços tão íntimos e ambivalentes com os acontecimentos de 1989. Muitas tiveram seu aprendizado político na década de 1980, quando as fronteiras entre o permitido e o proibido não eram tão gritantes e fortemente policiadas como são hoje. Suas carreiras e suas amizades, e às vezes até seus pontos de vista, se cruzavam com os de intelectuais, funcionários e assessores políticos que foram presos ou demitidos após a repressão de 4 de junho.
Poucos acreditam que os novos líderes da China, empossados em novembro, vão derrubar o veredicto oficial de que os protestos foram uma rebelião contrarrevolucionária que tinha de ser esmagada. Mas o fato dos líderes de hoje terem participado ativamente na experimentação política da década de 1980 levanta a possibilidade de serem mais abertos a novas ideias e discussões do que seus antecessores imediatos.
Os líderes chineses debatem abertamente diferentes abordagens econômicas, mas a defesa da liberalização política tornou-se cada vez mais rara. Por enquanto, pelo menos, qualquer adoção do espírito mais despreocupado da década de 80 parece ser prejudicada pelo conformismo exigido daqueles que ascendem na hierarquia –e por seu temor de serem acusados de heresia ideológica.
No entanto, as lições de 4 de junho e sua consequente repressão podem pesar sobre os novos líderes, especialmente se forem confrontados por outra revolta política, disse Wu Wei, ex-assessor de Zhao Ziyang, líder reformista do partido que foi expulso pouco antes da repressão.
"Para quem está no poder hoje, ainda é um fardo político pesado, mesmo que nunca possam discuti-lo abertamente", disse Wu. "Agora, quem participou daquele momento está na meia-idade ou já é mais velho, e ainda têm um nó em seus corações."
O primeiro-ministro Li, hoje com 57 anos, foi um dos seis atuais membros da elite de 25 membros do Politburo que participaram da conferência, de acordo com Zhong Dajun, editor da agência de notícias oficial Xinhua na época. Os outros são Li Yuanchao, vice-presidente, Wang Qishan, chefe de investigações do combate à corrupção, e Yu Zhengsheng, que trata das políticas para grupos religiosos, minorias étnicas e grupos apartidários.
Muitos desses futuros líderes chineses estavam entre as centenas de milhares de estudantes que lotaram as universidades no final de 1970, ávidos por conhecimento, após anos de aprendizado mecânico do Pensamento de Mao Tse-Tung, durante a Revolução Cultural, quando as universidades em sua maioria foram fechadas ou paralisadas por campanhas ideológicas. As fotos mostram os alunos vestidos com as casacas de algodão azuis ou verdes da era Mao, um lembrete da conformidade monótona da qual desejavam escapar.
Na época da revolta de Praça da Paz Celestial, Xi Jinping, atual presidente do país, era um funcionário lda província de Fujian, no Sudeste da China, distante dos protestos em Pequim. Mas seu pai, Xi Zhongxun, comunista veterano que virou defensor da reforma econômica, tinha sido amigo de Hu Yaobang, o líder do Partido Comunista derrubado em 1987 por suas tendências liberais e cuja morte, em 1989, levou milhares de pessoas para a Praça da Paz Celestial para expressar sua dor e exigir medidas em direção à democracia.
Há algumas indicações de que o pai de Xi obliquamente sinalizou sua oposição à lei marcial, mas entrou na linha após 04 de junho, disse Warren Sun, um historiador da Universidade de Monash, na Austrália.
Na época, a China abandonou o fanatismo ideológico da era de Mao e perseguiu as reformas de mercado sob Deng Xiaoping que permitiram que os agricultores, indústrias e comerciantes escapassem das restrições do governo. As mudanças econômicas foram acompanhadas de um fermento de novas ideias e apelos por abertura política e renovação cultural, apesar da contraofensiva à "poluição espiritual" liderada pelos conservadores.
"O que todos nós compartilhávamos era a crença de que a China tinha que sofrer reformas -e com urgência", disse Chen Ziming, escritor. "A única divisão real entre os estudantes e estudiosos era se devíamos reformar a economia em primeiro lugar, ou fazer a reforma política em primeiro lugar, ou fazer as duas coisas ao mesmo tempo".
Muitos dos atuais líderes da China começaram a subir na carreira política neste ambiente febril, quando não era incomum as autoridades se misturarem aos defensores de mudanças mais radicais e até demonstrarem simpatia por eles. Quando era estudante, Li Keqiang se socializava com Hu Ping e Wang Juntao, dois ativistas que se lançaram nas eleições estudantis desenfreadas de 1980. Amigos dizem que Li, por vezes, se unia a eles nas salas do campus, onde os alunos ficavam acordados até tarde da noite discutindo política eleitoral, filosofia ocidental e os excessos do autoritarismo.
Depois, segundo os amigos de Li, ele foi convencido por dirigentes do partido a desistir da oportunidade de estudar no exterior e, em vez disso, tornou-se parte da Liga da Juventude Comunista.
"Na época, tínhamos muitos pontos de vista em comum", disse Wang, que foi preso depois de 4 de junho e partiu para os Estados Unidos em 1994. "Muitas das questões que passaram a nos dividir ainda não tinham surgido".
Outros futuros líderes tiveram origens semelhantes. Wang Qishan, o atual chefe anticorrupção, ganhou destaque no início da década de 80 como um dos "quatro cavalheiros da reforma", jovens intelectuais que defendiam o abandono da economia rigidamente planejada. Mais tarde naquela década, ele participou do comitê editorial da série de livros "Em Direção ao Futuro", avidamente lida pelos estudantes.
Chen Yizi, o antigo chefe do instituto que organizou a Conferência de Pequim, lembra-se de ter tido longas conversas com Wang e com Li em 1988. Referindo-se aos líderes recém-aposentados da China, Chen disse: "Esta geração deve ser mais esclarecida do que a de Hu Jintao e Wen Jiabao".
Em 1989, as divisões já estavam destroçando a liderança comunista. Apesar de uma década de crescimento econômico, estudantes e intelectuais estavam decepcionados com a corrupção e a relutância do partido em copiar as mudanças que varriam o bloco soviético. O público em geral também estava revoltado com os privilégios das autoridades e as reformas de preço que haviam desencadeado a inflação.
Essas tensões dispararam após a morte de Hu Yaobang, quando o luto na Praça da Paz Celestial se transformou em demandas pela redução do poder e dos privilégios da elite do partido por meio de passos em direção à democracia e a liberdade de expressão.
Zhao e outros membros relativamente moderados da hierarquia do partido defenderam medidas contidas de liberalização política e de liberdade de imprensa para desarmar o descontentamento. Mas a linha dura argumentou que a liberalização era uma ameaça, não uma cura, e contou com o apoio de Deng, que se entusiasmava mais com as reformas econômicas do que com as políticas.
Wang Juntao, defensor da democracia, lembra-se de reunir-se pela última vez com Li Keqiang, seu antigo conhecido da universidade, em maio de 1989, quando Li estava entre um grupo de autoridades que tentava convencer os estudantes a porem fim a uma greve de fome e voltarem às aulas. "Quando era estudante, ele dizia o que pensava", disse Wang. "Depois, essa agressividade sumiu. Ele se tornou um funcionário que atendia seus superiores, mas ainda acho que manteve um senso de justiça".
Quando o governo declarou lei marcial em Pequim, no dia 20 de maio, a autoridade de Zhao foi desrespeitada, e Deng e os conservadores do partido prepararam uma resposta mais dura aos estudantes que enchiam a Praça da Paz Celestial. Duas semanas depois, soldados e tanques marcharam pela praça, e a China passou por uma convulsão de expurgos e prisões.
Para navegarem por essas mudanças, Li e outros membros da Liga da Juventude Comunista demonstraram um pragmatismo cruel de forma a afastar qualquer suspeita de deslealdade, inclusive participando de reuniões nas quais denunciaram os protestos como contrarrevolucionários. "Para sobreviver no partido, você tem que se tornar oportunista", disse Wang.
Logo após a repressão de 4 de junho, a mulher de Xi Jinping, Peng Liyuan, cantora da banda militar, entreteve as tropas na Praça da Paz Celestial. Fotografias de sua atuação, publicadas na revista do Exército da Libertação do Povo em 1989, se espalharam pela Internet chinesa naquele ano, antes de desaparecerem -um lembrete das sensibilidades da época.
"O sistema partidário muda as pessoas", disse Wu. "Quando você escolhe esse caminho, você aprende que, para se defender, você tem que defender o sistema. Mas eu não acredito que aquela era não tenha deixado vestígios" nos atuais líderes.
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