terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Ataques contra xiitas no Paquistão ameaçam dar início a guerra religiosa


O ritual sangrento dos atentados antixiitas no Paquistão não para, ameaçando dar início a uma verdadeira guerra religiosa nesse país onde a Arábia Saudita sunita e o Irã xiita se entregam a uma luta de influência regional há três décadas. No sábado (16), a explosão de uma bomba no centro de um bazar de um bairro hazara xiita de Quetta, a capital da província do Baluchistão, fez 85 mortos e 200 feridos.

Esse atentado com número excepcionalmente elevado de mortos foi o segundo a atingir os hazaras de Quetta no espaço de cinco semanas. No dia 10 de janeiro, 93 membros dessa comunidade – em torno de 500 mil pessoas – morreram em circunstâncias similares.

Os dois atentados foram reivindicados pelo Lashkar-e-Jhangvi (LeJ), um grupo sunita radical originário do Punjab. O Estado parece totalmente impotente diante da escalada desses atos de violência religiosa. Desde o início do ano, o número de hazaras mortos em Quetta já representa a metade do número de vítimas xiitas (400) registradas em 2012 no país.

Enquanto o Paquistão se prepara para entrar em campanha para eleições legislativas previstas para a primavera, a ascensão desse terrorismo antixiita lança um pesado obstáculo sobre uma transição política apresentada como única nos anais do país: se a eleição transcorrer como o previsto, será de fato a primeira vez que um governo civil terá concluído seu mandato sem ser derrubado prematuramente por um golpe.

Além disso, a radicalização do sectarismo antixiita ameaça diretamente o amadurecimento das instituições democráticas no Paquistão. Diante do risco de caos, o exército poderia ficar tentado a voltar para primeiro plano, sendo que nos últimos anos ele havia se resignado a adotar um perfil mais discreto. A rixa sectária sunita-xiita não é novidade no Paquistão. Ela começou no início dos anos 1980 sob efeito de três rupturas. A primeira foi a política de islamização lançada pelo general golpista Zia Ul-Haq a partir de 1977. Apoiando-se nas redes sunitas da chamada escola "deobandi" – nascida em Deoband (hoje na Índia) no final do século 20 - , próxima do wahabbismo saudita, o general Zia desestabilizou o consenso muçulmano herdado de uma tradição sincrética do sul da Ásia onde o sunismo sufi convivia bem com o xiismo. A elite política do Paquistão sempre reservou uma boa recepção aos xiitas. O próprio Mohammad Ali Jinnah, o "pai da nação", era um xiita, assim como Zulfikar Ali Bhutto, ex-premiê (1973-1977) e pai de Benazir Bhutto.

A segunda ruptura foi fruto da revolução iraniana (1979). A ascensão do khomeinismo fortaleceu os xiitas paquistaneses que constituem cerca de 20% da população do país e formam a maior comunidade xiita do mundo depois do Irã. Frente ao sunismo militante do general Zia, uma parte dos xiitas paquistaneses se voltou para Teerã, para desgosto dos grupos sunitas intolerantes às ingerências iranianas. Por fim, a terceira ruptura se deu com a invasão soviética do Afeganistão (1979) que radicalizou as organizações sunitas no Paquistão, que abraçaram a causa do jihad anticomunista com o ativo apoio da Arábia Saudita e dos Estados Unidos, que queriam se opor tanto a Moscou quanto a Teerã.

Foi nesse contexto que se criou em 1985 o grupo deobandi radical Sipah-e-Sahaba Pakistan (SSP) no sul do Punjab, explorando habilmente um conflito de classes entre camponeses e comerciantes sunitas e aristocracia latifundiária xiita. O SSP se lançou então em atos de violência antixiitas que numa reação em cadeia precipitaram a formação do Sipah-e-Mohammad Pakistain (SMP), grupo de autodefesa xiita. A escalada dos confrontos entre o SSP e o SMP atingiu seu ápice no meio dos anos 1990 no Punjab, mas sobretudo em Karachi (Sind).

Depois de 2001, teve início uma nova sequência do conflito sectário, consequência do refluxo na direção de zonas tribais paquistanesas dos talebans afegãos expulsos de Cabul. O cenário jihadista estava se reconfigurando. Emergia uma nova rede, onde era possível ver convergindo talebans paquistaneses criando raízes na faixa fronteiriça pasthun, núcleos da Al-Qaeda e organizações punjabis saídas do ativismo antixiita. Entre essas últimas, o LeJ, emanação do Sipah-e-Sahaba Pakistan, se destacava como particularmente sanguinário, atacando tanto os xiitas quando os santuários sufis cujo culto a santos é considerado também "herético".

A geografia do confronto se deslocou. Embora a tensão no Punjab tenha diminuído – em razão de acordos feitos entre ativistas e políticos locais - , Karachi continua sendo um palco violento enquanto novos focos surgem em zonas tribais pasthuns de Kurram e Orakzai, bem como na região himalaia de Gilgit-Baltistan, ao norte, próxima da fronteira chinesa. Mas foi sobretudo em Quetta (Baluchistão), onde vive uma comunidade hazara originária do Afeganistão – de onde ela fugiu já no final do século 19 das perseguições antixiitas – que o conflito se inflamou.

A incapacidade do exército e da polícia paquistanesa de neutralizar os assassinos do LeJ alimenta muitas dúvidas. A maior parte dos xiitas suspeita de conexões ocultas. Se estas se mostrarem verdadeiras e não forem rapidamente desmanteladas, o ponto de ruptura no Paquistão pode ser atingido em breve.

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