quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Crise na fronteira entre a Síria e a Turquia explode em meio a caldeirão étnico

Sírios atravessam o rio Orontes de bote para cruzar a fronteira com a Turquia

Libertada desde o verão, a região síria que faz fronteira com a Turquia continua à mercê dos bombardeios do exército regular. A fronteira não passa de um arame farpado pisoteado que se atravessa sem dificuldades. E lá está a Síria.

Ao norte, o Sanjak de Alexandretta, território turco povoado majoritariamente por árabes alauítas turquizados,  mas  defensores do regime de Bashar Assad. “São eles que vêm colocar fogo na floresta para impedir que passemos pela fronteira”, afirma Tarek, apontando para as árvores carbonizadas.

Ao sul, a montanha turcomena síria, habitada por turcomanos arabizados, que apoiam a revolução na qual eles veem a oportunidade de se vingarem de um regime que acusam de perseguir os sunitas, dos quais fazem parte. Essa oposição em frentes invertidas, ao longo de toda a fronteira turco-síria, poderia acabar arrastando Damasco e Ancara por tabela para uma guerra; a tensão está em seu auge há cerca de dez dias, desde que morteiros sírios visando os rebeldes instalados na fronteira caíram em território turco, suscitando a resposta do exército turco.

Relativamente tranquila no início da revolução, a montanha turcomena acabou sendo libertada em junho de 2012. Foram necessários somente quatro dias de batalha para os revolucionários locais tomarem Rabie, a principal cidade da montanha. “Durante os dois meses anteriores, conquistamos os vilarejos um a um,” lembra Abou Samer, um homem mais velho que atua como chefe da polícia local.

Nesse charmoso vilarejo onde as casas acompanham os contornos da montanha, a única construção que carrega marcas de combates acirrados é o centro de inteligência militar. Rabie está livre, mas vivendo em câmera lenta: os revolucionários substituíram as autoridades locais por conselhos eleitos, aproveitando para resolver velhos rancores. “Somos os filhos do país, mas, sob o regime Assad”, se queixa Abou Samer, “todos os empregos de funcionários públicos vão para os alauítas. Tudo é para eles: o poder, a água, o dinheiro. Só estamos retomando o que nos é de direito”.

“No dia em que Rabie caiu, todos os servidores partiram”, conta Abou Nadir, o dono do único mercadinho que permaneceu aberto. “A escola fechou, o posto de saúde também. O governo parou de pagar os salários, cortou a água e a luz. Estamos vivendo um bloqueio quase completo. Para trazer arroz e latas de conserva, sou obrigado a apelar para contrabandistas que vêm de Jisr al-Shughur [na zona governamental].”

Os bombardeios começaram no mesmo momento, esporádicos, sem outra lógica ou objetivo aparente além de aterrorizar aqueles que permaneceram no local. Até o início de setembro, Rabie estava ao alcance de canhões do exército governamental posicionados no cume do refúgio de Burj al-Qassab. Desde que a posição foi tomada a duras penas pelo ELS (Exército Livre Sírio), a ameaça passou a vir dos helicópteros.

Todos os dias eles vêm e sobrevoam a região, como aves de rapina em busca de uma presa. E no fim soltam sua carga mortífera: barris cheios de dezenas ou centenas de quilos de TNT e de pedaços de metal para fazer o maior número possível de vítimas. Os sírios chamam essas bombas improvisadas de “barris”.

Assim que ouvem o zumbido de um helicóptero, eles correm para se proteger embaixo do verde claro e do ocre outonal das árvores, fugindo de prédios e de carros, alvos em potencial. O regime não usa seus aviões de caça, que são obrigados a atravessar a fronteira turca para dar meia-volta.

Aterrorizados pelos “barris” e esgotados pelo bloqueio, a maioria dos habitantes da colina fugiram para a Turquia vizinha. Mas, desde meados de setembro, a fronteira está fechada para os refugiados. E os novos candidatos ao exílio dormem na floresta, ao longo da fronteira, enquanto aguardam o momento mais favorável para passar para o outro lado. Somente os homens permaneceram em Rabie, para combater junto com o ELS ou proteger suas casas contra os saqueadores. Aqueles que fugiram para a Turquia foram substituídos por desalojados internos, em geral turcomanos da região costeira, ainda sob controle governamental.

É o caso do Dr. Mohamed Ahoualeh. Ele fugiu de Lattakia, onde é procurado pelos serviços de segurança, junto com suas duas filhas, a médica Nesma e a farmacêutica Safa. Ele é o único médico hospitalar num raio de 15 quilômetros e trata tanto bebês com diarreia quanto combatentes feridos em combate, além de civis aleijados pelos bombardeios. Ele fornece ao mesmo tempo receitas e medicamentos, mas não tem nem ambulância, nem material de diálise, nem combustível para fazer funcionar o que quer que seja.

O único hospital de campanha da região foi instalado em Yamadieh, quase na fronteira. “Estamos perto demais da Turquia para que os aviões e os helicópteros de Assad venham nos bombardear”, comemora Ayman Karajan, auxiliar médico e combatente de porte e barba impressionantes. “Aqui já é Turquia. Se Assad vier nos procurar, ele encontrará Erdogan para nos proteger. Viva Erdogan! Sem a Turquia, teríamos todos morrido aqui”.

As fileiras do ELS não param de engrossar na montanha turcomena, e os combatentes vão endurecendo a cada dia. Depois de bloquearem a autoestrada de Lattakia-Aleppo no início de setembro, agora eles estão atacando vilarejos alauítas, avançando pouco a pouco na direção da grande cidade costeira de Lattakia. Atualmente, há combates acontecendo perto do lago Baloghan.    

Mas essa nova configuração ameaça transformar a montanha turcomena, cuja beleza preservada lembra uma pequena Córsega, em uma sangrenta guerra religiosa. Vilarejo contra vilarejo. “Cada vez que entramos em um vilarejo alauíta, tomamos cuidado para não machucar ninguém”, garante Abou Moustafa, um combatente turcomeno. “Infelizmente, eles preferem fugir para Lattakia e se refugiar nos braços do regime”.

O regime e os rebeldes se acusam mutuamente de ter incendiado o vilarejo alauíta de Kindessieh depois que ele caiu nas mãos do ELS. O exército de Bashar Assad, que não pode se permitir deixar os rebeldes penetrarem no reduto, último refúgio potencial do regime, está levando a ameaça a sério e reforçou suas posições. “É graças aos combatentes da montanha turcomena que o projeto do Estado alauíta de Bashar fracassará”, clama Abou Moustafa. “Nós o impedimos de estabelecer contato com os alauítas da Turquia”.

Bem ao norte, a rebelião se prepara para atacar o vilarejo de Kassab, fronteiriço com a Turquia, povoado por turcomenos e armênios, e ainda sob controle do exército sírio. “Se o tomarmos, teremos acesso ao mar e uma passagem oficial para a Turquia. Poderemos trazer armas”, comemora Abou Moustafa, antes de ameaçar: “Estou avisando a nossos irmãos armênios em Kassab: eles devem partir antes da ofensiva do Exército Livre, senão terão baixas civis e lamentarão mais um genocídio perpetrado por turcos”.

No caldeirão étnico-religioso que é essa Síria em guerra, o alerta faz gelar a espinha.

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