sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Rei da Espanha foi simpático à tentativa de golpe?


Juan Carlos I da Espanha


Um documento recém liberado do Ministério de Relações Exteriores alemão contém novas informações reveladoras sobre o fracassado golpe de 1981 na Espanha. De acordo com o relatório, o rei espanhol Juan Carlos aparentemente demonstrou simpatia pelos golpistas em uma conversa privada com o embaixador alemão.

Em um ano normal, o dia 23 de fevereiro é um bom dia para o rei Juan Carlos. Neste dia, os espanhóis comemoram o fracasso da tentativa de golpe de 1981 e celebram seu monarca como o salvador da então jovem democracia. Naquela época, o general ditador Francisco Franco, que tinha governado o país desde 1939, estava morto há apenas cinco anos e três meses. Seus seguidores mais ardentes entre os militares estavam decididos a reimpor um governo militar ao país. Mas Juan Carlos impediu-os.

Mas 2012 não é um ano normal. No momento, o genro do rei, Iñaki Urdagarín, está sendo julgado em um tribunal em Palma de Mallorca. O marido da filha mais jovem do rei, Cristina, é acusado de ter desviado vários milhões de euros, junto com outros, como diretor de uma fundação. E o que é pior, uma pesquisa conduzida por um instituto social em outubro indicou que, pela primeira vez, houve um declínio considerável na fé do povo na monarquia. Ela mostra que 47 milhões de espanhóis primariamente apoiam o próprio Juan Carlos e não a monarquia como instituição.

E agora, no pior momento possível, surge um documento que lança uma sombra na imagem reluzente deste supostamente infalível democrata na família real espanhola.

 “Não há indicação de antipatia ou revolta”

O  homem que escreveu o documento foi Lothar Lahn, embaixador da Alemanha na Espanha entre 1977 e 1982 e querido por Juan Carlos. Na noite do dia 26 de março de 1981, o rei, que então tinha 43 anos, convidou o diplomata, 16 anos mais velho, para sua residência, o palácio de Zarzuela em Madri, para uma conversa privada. O encontro tinha sido organizado para discutir a visita do presidente alemão à Espanha. Mas Juan Carlos rapidamente mudou o rumo da conversa para a fracassada tentativa de golpe do dia 23 de fevereiro, revelando como realmente se sentia: era bastante simpático aos militares.

Lahn então relatou o evento a Bonn, capital da Alemanha Ocidental, dizendo que o rei “não demonstrara antipatia ou revolta diante dos atores (do golpe) e sim compreensão, se não simpatia”. Ele escreveu que Juan Carlos disse, “quase apologeticamente”: os insurrecionistas “só queriam aquilo que todos nós queremos, ou seja, o restabelecimento da ordem e da disciplina, da calma e da segurança”.

O rei então teria dito a Lahn que quem era particularmente responsável era o democraticamente eleito ex-primeiro-ministro Adolfo Suárez, e não os líderes do golpe, porque ele tinha fracassado em estabelecer “um relacionamento com os militares” e recusava-se a levar a sério seus “desejos justificados”.

Suárez, disse o rei, tinha “desprezado os militares. Ele, Juan Carlos, muitas vezes tinha aconselhado Suárez “a responder às ideias dos militares”, mas sem sucesso. Eventualmente, disse o rei, os militares decidiram “agir por iniciativa própria”.

Segundo o documento, o rei então acrescentou que queria influenciar o governo e os tribunais militares para que não fossem muito duros com os líderes do golpe, “que obviamente só queriam o melhor” para o país.

Julián Casanova, professor da Universidade de Zaragoza que é uma das principais autoridades em história contemporânea espanhola, acredita que o telex de Lahn, de número 524, é “extraordinariamente importante”, porque é a única prova escrita até hoje que Juan Carlos poderia ter desejado secretamente o tipo de governo militar que Franco o ensinara a apreciar. O ditador trouxe Juan Carlos de volta à Espanha com apenas 10 anos de idade e depois nomeou-o seu sucessor.

Por anos, o próprio Casanova fez tentativas vãs para ter acesso a documentos como os transcritos dos julgamentos dos golpistas fracassados. Todos os documentos espanhóis relacionados àquele dia fatídico na história da democracia do país continuarão confidenciais até 2031. Da mesma forma, os arquivos relevantes da embaixada americana em Madri só serão liberados nessa época.

De fato, Casanova diz que, até o surgimento desse documento, nunca houve evidências claras que Juan Carlos “não era o mesmo democrata que é hoje”.

Provavelmente, não há dúvidas quanto à autenticidade das afirmativas que Lahn atribuiu ao rei e transmitiu a Bonn. Claro que Lahn não pode mais responder nada sobre eles –pois morreu em 1994. Da mesma forma, a casa real espanhola não comentará sobre o conteúdo da discussão de Lahn com Juan Carlos porque, como diz um porta-voz, não há registro dessa “conversa privada” nos arquivos oficiais do palácio Zarzuela. Ainda assim, Lahn era tido como confiável por seus colegas. Seu telex, que está guardado no arquivo político do Ministério de Relações Exteriores alemão em Berlim, agora foi liberado pelo governo e publicado como parte de uma antologia de documentos relativos às atividades diplomáticas alemãs em 1981.

Há muito que se conhece o comportamento do rei em relação aos oficiais que fizeram a tentativa de golpe no dia 23 de fevereiro, nos dias que se seguiram e durante todas suas aparições públicas até hoje. Naquela noite, quando a Guardia Civil, liderada pelo coronel Antonio Tejero, fez o governo e os legisladores reféns no prédio do parlamento, foi Juan Carlos que conversou com o s líderes do golpe e todos os generais importantes por telefone.

Ele deixou claro para eles que, contrariamente a outras alegações, ele –como comandante supremo dos militares espanhóis- não apoiava suas ações. Em um discurso à televisão naquela noite, ele disse que a coroa não “aceitaria qualquer ato ou feito que quisesse impedir o processo constitucional que o povo espanhol tinha aprovado por meio de um referendo”.

Comportamentos como esse tornam ainda mais espantosos os comentários estranhamente simpáticos feitos um mês depois. De fato, parece agora que foi muito mais difícil que se sabia para o homem que foi coroado rei da Espanha em novembro de 1975 abandonar o legado do ditador. O que torna menos surpreendente é o fato que Juan Carlos conhecia todos os oficiais militares muito bem, tendo treinado em vários ramos das forças armadas. Seu instrutor foi o general Alfonso Armada, que passou a ser seu secretário privado por 17 anos. Após um período de afastamento, o rei nomeou Armada como vice-comandante das forças armadas, 11 dias antes da tentativa de golpe. Armada usou sua proximidade com o rei para fazer seus colegas conspiradores acreditarem que estava agindo sob suas instruções.

Juan Carlos depois disse a Lahn que ficou desapontado com este comportamento. O rei adotou uma postura protetora dos outros conspiradores militares.

Na época, o ambiente político prevalecente no país era agitado. Os oficiais que tinham lutado ao lado de Franco durante a guerra civil estavam ansiosos em fazer um golpe desde as primeiras eleições democráticas em 1977, dois anos após a morte do ditador. O jovem rei só alimentou esses desejos de retorno a uma ditadura militar e depois agiu contra os desejos de Franco, nomeando um político reformista como Adolfo Suárez para um cargo chave no Estado ainda autoritário. Suárez legalizou partidos de esquerda proibidos, inclusive os comunistas. A economia da Espanha estava em frangalhos e o grupo separatista basco ETA continuava a semear terror mesmo após o fim da ditadura.

Paul Preston , historiador britânico famoso que se especializa em história espanhola e escreveu uma biografia de Juan Carlos, diz que, como muitos outros espanhóis, o rei estava preocupado com a perda de autoridade do governo de Suárez. Após Suárez renunciar no dia 29 de janeiro de 1981, o rei consultou-se com presidentes de todos os partidos políticos. Preston acredita que estavam dispostos a aprovar um governo de união nacional, incluindo elementos militares. Mas, em vez de escolher para este papel seu confidente de muitos anos, o general Armada, o rei deu a tarefa ao político conservador Leopoldo Calvo Sotelo de formar um novo governo. De fato, no próprio dia que os golpistas invadiram o parlamento, Sotelo supostamente seria eleito novo primeiro-ministro da Espanha.

Ainda há questões sobre por que o rei se abriria para um diplomata estrangeiro. Será que o rei, que sempre era tão disciplinado, estava simplesmente desabafando e contando com a confidencialidade? Ou estava tentando minimizar todo o episódio porque estava preocupado que poderia prejudicar a imagem de seu país? Afinal, na época, a Alemanha era a mais importante defensora da Espanha em seus esforços para entrar na Otan e na Comunidade Econômica Europeia, predecessora da União Europeia. De fato, Juan Carlos até disse a Lahn que “os militares espanhóis precisavam ter uma nova função dentro da Otan”. O rei, que era bem disposto em relação à Alemanha, teria dito a Lahn que as pessoas deveriam esquecer do que aconteceu no dia 23 de fevereiro “o mais rápido possível” e expressou sua confiança que aquilo não voltaria a acontecer.

O rei teve a sorte do relatório de Lahn se perder na máquina burocrática de Bonn. Nem o então ministro de relações exteriores alemão, Hans-Dietrich Genscher, nem o chanceler Helmut Schmidt inicializaram o documento, indicando que provavelmente não o leram. De fato, os dois só pareciam conhecer o lado luminoso do rei. Poucos dias após Lahn visitar o palácio real, Schmidt foi efusivo sobre o “excelente papel” que o rei estava tendo. Juan Carlos era “um caráter estável e muito responsável”, disse ao colega francês, François Mitterrand.

Um ano depois, Schmidt convidou o casal real a sua casa em Hamburgo. O cardápio incluía enguia, camarão e Rote Grütze, uma sobremesa alemã tradicional feita de frutas vermelhas. A conversa aparentemente focou-se em “Deus e o mundo”.

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