sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Rebeldes relatam o momento da captura do ex-ditador líbio Gaddafi

Celular registra talvez os últimos momentos de Muammar Gaddafi 

Quatro rebeldes relatam ao "El País" como descobriram e capturaram o ditador líbio no esgoto de Sirte. "Quando o vi engatinhando, pensei: como o rei dos reis poderia estar lá como um rato?" Outro lembra como apontou para ele, enquanto Gaddafi dizia: "O que está acontecendo? O que está acontecendo?". Como troféu, guardaram a pistola de ouro do sátrapa. Tiraram-na antes do linchamento.

Tímido e de aparência frágil, Omram Yuma Shaban se apresenta com três de seus companheiros de armas vestindo a mesma roupa que usaram no dia 20 de outubro, a data que nunca poderão esquecer. Imediatamente, como se desejassem oferecer provas de que sua história é irrefutável, colocam sobre uma mesa seu prêmio mais valorizado: duas pistolas, uma delas de ouro, uma bota de couro negro feita em Londres e um gorro militar.

Omran mostra os troféus como uma expressão de orgulho e um sorriso sutil. Estudante de engenharia elétrica de 21 anos, não é dos rebeldes líbios mais audazes, aqueles shabab (rapazes) que se lançaram ao combate contra as tropas de Muammar Gaddafi nos primeiros instantes da revolta que nasceu em Bengasi, e que dois dias depois, em 19 de fevereiro, contagiou Misrata.

É um jovem tranquilo de 21 anos, de voz frágil e ligeiramente aguda, que só em meados de abril decidiu se juntar aos insurgentes da Líbia. Sua cidade estava sendo cruelmente atacada. "Juntei-me à revolução porque os soldados de Gaddafi empregavam em Misrata os métodos mais sujos. Em março, no meu bairro, qualquer homem que saía de casa era preso; matavam crianças, estupravam mulheres...", comenta. Foi em uma quinta-feira que alcançou a glória diante de um bueiro cheio de lixo em Sirte, cidade natal do tirano. "Não acreditei no que os meus olhos viam. Ninguém pensava que Gaddafi estivesse lá. É muito difícil descrever minhas sensações. Mas agora acredita que capturei o maior terrorista do mundo, depois de Osama bin Laden", explica Omran, agora sim, mais sorridente.

As últimas horas do ditador, o autoproclamado irmão líder, o rei dos reis, começaram por volta das oito da manhã do dia 20. "Recebemos informações de que um comboio de 50 veículos estava se deslocando desde o bairro 2 de Sirte. Sabíamos que Mutasim, o filho de Gaddafi, estava na cidade porque muita gente que havia fugido nos comentava que o haviam visto, e ao mesmo tempo soubemos que a Otan atacava a caravana naquele momento", conta Omran.

Ahmed Ghazal, 21, empregado de um albergue; Nabil Darwish, 25, dono de uma oficina mecânica; Salem Bakir, comerciante de 28 anos, e três milicianos acompanhavam o futuro engenheiro elétrico na vigilância da zona onde o ataque da Otan transformou uma dezena de carros em sucata. Os soldados gaddafistas se dispersaram numa tentativa de fuga tão desesperada quanto inútil, e os sete shabab se esmeraram em rastrear a árida região enquanto dezenas de rebeldes se somavam à busca. "Os militares se escondiam na estação elétrica próxima e nas árvores. Houve combates duros, mas matamos muitos deles e outros foram presos. Os soldados de Gaddafi se dividiram; uns queriam se entregar e outros preferiram lutar", relata Omran, quem, como seus colegas de comando, parece fugidio, homem de poucas palavras com os estrangeiros.

A 200 metros da massa disforme de ferro do comboio - os cadáveres em decomposição permaneceram seis dias no lugar -, estão os canos de cimento embaixo da rua, que servem para evitar inundações. Foi a última distância que o ditador percorreu a pé neste espaço aberto, com uma vegetação muito escassa, um péssimo lugar para encontrar um esconderijo. "Em um extremo do encanamento, um dos 15 soldados ali protegidos levantou uma bandeira branca, mas do outro lado da rua, a apenas 20 metros, os gaddafistas continuavam disparando. 'Nosso líder está aqui', gritou de repente o soldado disposto a se render. Mas não imaginávamos nem por um momento que este líder era Gaddafi", continuou seu relato.

Depois que alguns dos homens de uniforme foram aniquilados e outros militares mais leais ao antigo regime foram rendidos aos rebeldes, Salem Bakir se aproximou da saída da tubulação. Foi o instante decisivo, o que a maioria dos líbios esperava ansiosa desde 17 de fevereiro, o instante que todos neste país árabe asseguravam que cedo ou tarde acabaria chegando.

"Durante toda minha vida", prossegue Bakir, "quando via o comboio de dezenas de veículos que transportava Gaddafi de Trípoli a Sirte, pensava que era um rei ou alguém sobre-humano. Eu o vi pela primeira vez quando estava fora da tubulação e a dois metros de mim. Fiquei emocionado e paralisado. Mas toquei o Alcorão que levo no bolso, e isso me deu forças para gritar: 'Gaddafi está aqui! Gaddafi está aqui!' Disse para ele soltar sua arma três vezes, mas ele não o fez. E me disse: 'O que está acontecendo? O que está acontecendo? O que está acontecendo?'

Omran, que neste instante manejava uma metralhadora, saltou da caminhonete sobre o corpo já ensanguentado do sátrapa, a um metro e meio abaixo do asfalto. "Eu estava guardando o outro lado da tubulação para que os militares deixassem seus fuzis no chão, mas ainda os tinham em mãos e podiam disparar. Isso me deu medo. Então me balancei sobre Gaddafi e tirei uma de suas pistolas, a que não era de ouro. Não sei de onde me veio a força', conta Omran.


Grupos de rebeldes conduziram suas caminhonetes a toda velocidade para o lugar. Ahmed Ghazal, o funcionário do albergue, recorda: "Quando o vi engatinhando e olhando com a cabeça inclinada, pensei: 'Como o rei dos reis podia estar ali como um rato?' Essa imagem me acompanha todas as noites quando vou dormir. Peguei sua bota e seu gorro". E minutos depois, em pleno tumulto, entre gritos de alegria e de Alá uh Akbar (Deus é grande), aconteceu o macabro espetáculo do linchamento, os chutes e bofetadas contra o déspota indefeso e aturdido que rogava clemência enquanto era golpeado. Muitos rebeldes gravaram a agressão brutal com seus telefones celulares.

Um rastro de sangue, talvez do ditador, ainda tinge o pavimento da estrada de onde partiu uma ambulância com Gaddafi como paciente, ou como réu a quem se aplicaria a justiça. Centenas de nomes de guerrilheiros e de suas cidades de origem estão escritos no cimento em volta da saída da tubulação. Bem como as datas que ficarão guardadas nos livros de história e marcadas de maneira indelével na memória de todos os líbios. Estão em tinta vermelha na parede da central elétrica próxima: 17 de fevereiro, dia do nascimento da revolta, e 20 de outubro de 2011, data da morte do caprichoso governante.

Não se sabe com exatidão quando nem quem deu os tiros na cabeça e no ventre de Gaddafi, embora pelo menos dois rebeldes se vangloriem de ter assassinado o ditador. O certo é que na quarta-feira, 21 de outubro, os cadáveres de Gaddafi, de seu filho Mutasim, e de seu ministro de Defesa, o general Abu Baker Yunes Yaber, foram expostos na câmara frigorífica do mercado central de Misrata.

Durante quatro dias os líbios puderam comprovar que o tirano - 42 anos depois do golpe de Estado que derrubou o rei Idris, adiado em uma ocasião porque em março de 1969 a famosa cantora egípcia Um Khultum ofereceu um recital em Bengasi - era história. Quando alguns dias depois da batalha de Sirte as críticas de várias ONGs internacionais contra o governo rebelde ficaram mais fortes por causa das violentas circunstâncias da morte - os governos ocidentais não lançaram exatamente o grito ao céu -, os milicianos foram cuidadosos na hora de inclinar a cabeça de Gaddafi para o lado esquerdo para esconder o tiro na face, e também em tapar com uma manta o orifício de bala que Mutasim tinha na garganta.

E se os preceitos islâmicos que prescrevem o sepultamento 24 horas depois da morte não foram respeitados pelos devotos de Misrate, muito menos eles se preocupariam com a proteção dos direitos humanos, de cuja violação padeceram muitos líbios de modo tão flagrante. Agora se anuncia uma investigação sobre o suposto assassinato a sangue frio – por mais que os ânimos estivessem quentes – de Gaddafi e Mutasim, que aparecem em outras gravações falando com rebeldes, ferido levemente, fumando e bebendo água. Seja qual for o resultado dessas investigações, é muito difícil encontrar algum líbio que tivesse preferido que o ditador fosse julgado. A maioria diz abertamente, imitando o gesto de disparar, que o preferem morto. Não deveria custar muito localizar os dois indivíduos que afirmam diante da câmera de um telefone celular ter acabado com a vida de Gaddafi. Pode-se vê-los com toda nitidez.

Em toda a Líbia houve festa depois da divulgação do acontecimento. Centenas de milhares dos seis milhões de homens e mulheres que povoam a Líbia, inclusive meninos e meninas, celebraram nas praças e ruas o desaparecimento de quem lhes amargou a existência durante quatro décadas de arbitrariedade, nas quais frequentar uma mesquita era o bastante para pagar seis anos de prisão, como aconteceu ao piloto de avião Mohamed Darwish, que frequentava o templo de seu bairro em Trípoli porque ficou desempregado depois do embargo à aviação comercial que os Estados Unidos impuseram à Líbia na década de 80.

Mas se há uma cidade na qual a algazarra foi transbordante, foi em Misrata. Os moradores da cidade de aproximadamente 400 mil habitantes contam – sem censo nem estatísticas, os cálculos na Líbia são muito complicados – que quatro pessoas morreram em apenas uma hora, vítimas dos tiros para o ar dos combatentes entusiasmados que expulsaram os soldados e mercenários gaddafistas em 24 de abril depois de uma carnificina atroz de dois meses. Porque em 19 de fevereiro morreu o primeiro mártir, aos que Gaddafi chamava de 'ratos'. Foi Jaled Mustafá Abu Shajma, nascido em 1968.

Quatro dias depois caiu a primeira granada sobre Misrata. Cerca de 3 mil vizinhos – centenas deles civis inocentes – morreram apenas nesta localidade. Suas fotografias podem ser vistas agora junto a uma cópia do certificado de óbito de Gaddafi no improvisado museu da guerra, situado na rua Trípoli devastada pelas explosões, e onde também se ergue a escultura metálica do punho que derrota o avião dos Estados Unidos, um símbolo do poder de Gaddafi que os lutadores de Misrata transportaram de Bab el Azizia para sua cidade, o bastião do autocrata na capital, uma vez que no final de agosto conquistaram Trípoli. A ousadia dos milicianos de Misrata foi crucial. Agora se orgulham de ser os primeiros – os companheiros de Zintán, nas montanhas de Nafusa, no oeste líbio competem em valentia – que quebraram o muro triplo de cimento deste baluarte do regime.

Misrata tem fama de cidade empreendedora, de contar com empresários espertos, e de não ter dado uma passo atrás na disputa. Até os surdo-mudos, presentes na sexta-feira numa celebração gigantesca, uniram-se à luta desigual. Sedik el Fituri, empresário de 52 anos, possui uma companhia de guindaste e caminhões de transporte pesado. Gastou 400 mil dinares numa guerra na qual se transformou em comandante de uma brigada. Todo seu material sofreu perda total. “Perdi tudo, mas estou feliz. Em 6 de março, os militares de Gaddafi entraram em Misrata e mataram quase todos.

Fizemos armadilhas nas quais eles caíram porque não conheciam a cidade. Nesse dia, souberam que aqui havia um exército. Cerca de 50 mil homens estavam de armas em punho. Escute... Minha mulher, quando via meus filhos descansando ou dormindo em casa, dizia: 'peguem as armas, levantem e vão lutar”. Engenhosos, quando o inimigo fez uma barreira de franco-atiradores nos prédios no campo de batalha da rua Trípoli, os rebeldes colocaram pilhas com luzes em cachorros e gatos para que os franco-atiradores disparassem e assim pudessem ser localizados. Só em Zintán e em Misrata combatemos desde o primeiro dia. Aqui preferimos morrer a retroceder. Além dos falecidos, temos 40 mil feridos, mil pessoas sofreram amputações, e 100 ficaram cegas. Em Bengasi, entretanto, detiveram a guerra muito cedo, e isso permitiu aos gaddafistas se concentrarem em nos atacar. Misrata foi a cidade mais castigada”, aponta El Fituri com um tom de amargura para com os compatriotas da origem da rebelião.

Este sangrento assédio medieval à cidade foi o que propiciou a vingança também impiedosa das milícias de Misrata em Sirte, a aldeia beduína na qual há 69 anos nasceu Gaddafi, que pretendeu transformá-la em capital do país e em porto. Nela, construiu o centro de convenções Uagadugu, um complexo faraônico agora despedaçado no qual foram realizadas cúpulas da União Africana. E ainda que muitos líbios denunciem que se construíam casas sabendo que ninguém moraria nelas, com a única pretensão de outorgar ao local uma aparência de grandeza, o respaldo ao ditador era maioritário em Sirte. E se agora são poucos – Abdelaziz al Farjani é um deles – os que gritam 'Muammar, Muammar' erguendo os braços com os punhos fechados, imitando o dirigente derrubado, é porque a cidade apresenta um panorama fantasmagórico. O êxodo foi total. Não há água, nem luz, nem comida. Seus 80 mil habitantes se refugiaram para o deserto ou para Sabha, 700 quilômetros ao sul de Trípoli. Pessoas carregando colchões em caminhonetes, rumo a suas tendas no Saara, é a imagem mais frequente hoje em dia.

Que a destruição em Sirte não tem comparação na Líbia é algo admitido até pelo comandante El Fituri. Uma pichação rebelde dá as boas vindas ao bairro 2, o distrito de onde partiu o último comboio de Gaddafi: “Sirte, a nova Leptis”, diz o escrito referindo-se às esplêndidas ruínas romanas de Leptis Magna, localizadas a uma centena de quilômetros a oeste de Misrata. A casa de Al Farjani é apenas um exemplo. Os projéteis a destruíram com fúria. Nenhum edifício escapou. Os moradores comparam Sirte com Grozni, capital tchetchena destruída pelo exército russo na década de 90. O panorama em várias ruas é, efetivamente, muito semelhante. Algumas mesquitas estão destruídas e com o minarete arrancado; as estações de energia também; as escolas arrasadas saltam à vista tanto quanto os hospitais saqueados. Numa semana foram recolhidos cerca de 400 corpos das ruas e dos escombros. Na quinta-feira, entretanto, o cheiro de morte ainda pairava na avenida 1º de setembro, data do golpe que levou o ditador ao poder.

Em Sirte, está claro, os roedores foram os que se ergueram contra a tirania. “Os milicianos são ratos. Aqui apoiávamos Gaddafi, que dormia toda noite numa casa diferente. Quando Trípoli caiu, veio para cá, mas não sabemos exatamente quando”, diz Ibrahim, estudante de medicina de 20 anos, em frente a um hospital que já não parecia um. Embora se tratasse de sua cidade natal, nenhum especialista militar explica porque o tirano escolheu Sirte para se refugiar depois de sua fuga da capital. É uma toca de ratos. Mas a preferiu ao mais seguro deserto. Muitos aludem a sua mentalidade e concluem que o caráter de quem viajava para o exterior com suas tendas nas costas para se sentir como se estivesse em casa teve um papel decisivo. Gaddafi sempre prometeu que jamais abandonaria seu país e que morreria na Líbia, fossem quais fossem as circunstâncias. E cumpriu sua palavra.

Desde 15 de setembro, o cerco a Sirte foi completo. O coronel Abderrahim al Agili, natural de Bengasi, é um dos chefes rebeldes que atormentaram esta população pelo flanco oriental. “É difícil saber”, explica, “quantos milicianos combateram porque vieram grupos de muitos lugares. Mas em torno de 15 mil rodearam a cidade. A maioria dos 80 mil habitantes de Sirte foram para o deserto, para o sul. Para oeste eles não vão, porque é onde fica Misrata. É certo que os shabab de Misrata foram muito agressivos. Foi uma vingança. Não é possível controlá-los”. Surpreende a naturalidade com que os rebeldes admitem os excessos quando são questionados sobre a pilhagem evidente. Na grande avenida 1º de setembro não resta uma loja que não foi assaltada. “É verdade que muitos milicianos roubaram as lojas”, reconhece num inglês esplêndido o estudante de engenharia Ahmed Meshri, miliciano durante os últimos dois meses. Diz, da boca para fora, que os culpados serão procurados e castigados. Mas dá a impressão de não acreditar em suas palavras. A violenta orgia durante os últimos dias da batalha de Sirte estremece.

Não se repararia nisso se o cabeludo Abdelmulá Saleh, outro declarado partidário do coronel Gaddafi, não tivesse explicado, na recepção do devastado hotel Mahari, em cujo gramado em frente ao Mediterrâneo foram encontrados 53 cadáveres mortos a tiros, muitos deles de mãos atadas. Saleh aponta para as manchas negras numa parede de gesso que dá para o vestíbulo, sob uma varanda do primeiro andar. "Sabe o que é? São marcas de sapatos dos enforcados, de seus chutes antes de morrer. Foram enforcados com esta mangueira vermelha de bombeiro", conta indignado. "Também encontramos homens degolados numa mesquita e dezenas de mortos no hotel", acrescenta enojado, antes de fazer uma distinção compartilhada pelas escassas pessoas que andam pelo vilarejo.

Os vizinhos de Sirte atribuem o monopólio dos crimes aos rebeldes de Misrata. Abdelhamid, de cerca de 30 anos, com um semblante muito sério, não dissimula a raiva que guarda contra os lutadores da cidade situada a 240 quilômetros a oeste. Também admira o ditador e compreende o preço que se paga em toda guerra. É dono de uma loja de artigos de fotografia na qual não restou nada. É a norma: todos os estabelecimentos estão com um aspecto desolador. "Os guerrilheiros de Bengasi, mia, mia", explica usando a expressão líbia que significa perfeito. "Foram combatentes justos", acrescenta. "Não fizeram nada horrível". Os poucos cidadãos que continuam na cidade, que tiveram várias das ruas inundadas por encanamentos estourados, ruminam sua desgraça. Algumas poucas centenas de homens varrem os escombros das ruas, retiram faróis caídos da rua principal e cabos de alta tensão da periferia, ao mesmo tempo que saúdam os rebeldes que patrulham a cidade.

Jaled observa os tremendos destroços no bloco de casas no qual ele morava. Sua mãe espera na escada. O caminhão carregado de móveis está pronto para partir. "Vamos para Samsum, a cerca de 150 quilômetros ao sul daqui. Vou morar numa tenda. O pior é que não poderemos voltar a Sirte até que todos os destroços não tenham sido arrumados. Se tudo for consertado, voltarei." Jaled sabe que vai demorar. Que num país arrasado por uma guerra de oito meses, Sirte não vai ser a prioridade na reconstrução. E ainda que fosse, os danos foram tantos que levará muito tempo antes que tudo possa voltar à normalidade. Sem falar na reconciliação, um dos objetivos declarados das novas autoridades, uma missão que será uma tarefa de titãs.

Hassan al Osta, um economista de Misrata, é da opinião de Fathi Terbil, o advogado defensor das vítimas da mais célebre matança do regime, a que aconteceu em junho de 1996 na prisão de Abu Salim, em Trípoli, quando 1.270 presos, muitos deles ativistas políticos, foram feridos e despedaçados com granadas e metralhadoras nos pátios da prisão. "A violência deagora fará com que as pessoas detestem a revolução", declarou há alguns dias Terbil, que também é membro do Conselho Transitório Nacional, o organismo que dirige a rebelião. "Os saques em Sirte são algo inaceitável porque é por coisas desse tipo que nos levantamos contra Gaddafi", corrobora Al Osta.

E enquanto Sirte, Zlitan e Bani Walid, territórios do regime deposto, são agora cidades despovoadas, Misrata vive uma celebração permanente, só contida pela seriedade que impõe a visita ao museu da guerra, uma mostra ao ar livre de granadas, tanques, projéteis de todo calibre.

Os desfiles militares, nos quais passam as caminhonetes com as armas montadas, um dos símbolos da rebelião, acontecem todos os dias; os helicópteros sobrevoam a cidade com a nova bandeira tricolor (a monárquica verde, preta e vermelha) pendurada; diplomas, flores e um Alcorão foram entregues aos familiares de cada uma das vítimas rebeldes, cujos nomes são lidos um a um; as crianças posam para serem imortalizadas com os fuzis de seus pais; os pilotos de guerra que recusaram-se a obedecer as ordens do ditador e voaram até Malta ou lançaram as bombas sobre o deserto são aplaudidos; as ambulâncias, os caminhões de bombeiros, até os caminhões de lixo são aplaudidos pelos moradores de Misrata. E os rebeldes armados dançam batendo palmas e cantando na base militar, a dez quilômetros de Sirte, de onde organizaram o ataque. O refrão, que rima em árabe, diz: "Quem fere Misrata receberá fogo. Gaddafi, espera, espera, em Misrata o colocaremos embaixo da terra".

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