quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Homens que presenciaram últimas horas de Gaddafi e médico ajudam a esclarecer momentos finais do ditador


Como Muammar Gaddafi morreu? Os homens que presenciaram as últimas horas dele e o médico que emitiu o atestado de óbito ajudaram a esclarecer como foram os momentos finais do ditador.

Celular registra talvez os últimos momentos de Muammar Gaddafi 

Foi uma ideia estúpida desde o princípio. O plano foi do filho dele, Mutassim, a cujos cálculos políticos o líder líbio nunca deu muita atenção. Mas o fato surpreendente foi que dessa vez Muammar Gaddafi prestou atenção à ideia. Vamos para Sirte, propôs Mutassim, quando a família foi obrigada a fugir de Trípoli em agosto passado. Segundo Mutassim, ninguém os procuraria em Sirte ou sequer suspeitaria de que eles estariam lá.

Foi uma escolha bizarra: Sirte, o último bastião dos leais seguidores e parentes do ditador, que no passado era uma vila de pescadores e que Gaddafi expandiu no decorrer das décadas, transformando o lugar em uma pequena cidade dotada de um centro de conferências internacionais.

“Ninguém aqui confiava em ninguém”, disse um homem que, no final da semana passada, procurava o corpo de um amigo na zona oeste de Sirte.

Ele nos disse para chamá-lo de Mohammed e não tirar fotos. “Gaddafi não tinha plano algum. A guerra continuava porque ninguém ousava oferecer uma proposta de cessar-fogo”.

Com base em comunicações de rádio interceptadas, os rebeldes sabiam que havia algo de importante no último reduto restante de indivíduos leais a Gaddafi, o Distrito Dois, na zona oeste da cidade. Mas o que seria?

A luta se desenrolava havia semanas. Era a manhã da quinta-feira, 20 de outubro, e Mohammed Aoued estava de guarda desde às 5h, no topo de um grande silo branco de grãos nas imediações da zona oeste de Sirte. O jovem de 22 anos de idade de Misrata era um dos membros da Watan, ou “Brigada de Casa”, que todo mundo chamava de “Brigada Pepsi” porque a sede da guarnição ficava em uma antiga unidade de engarrafamento de bebidas.

Rebeldes atacando de todos os lados

A cerca de 8h30, Aoued soou o alarme quando viu dezenas de veículos utilitários esportivos se aproximando do Distrito Dois. Pouco tempo depois, um míssil disparado de um veículo aéreo não tripulado norte-americano atingiu o veículo que seguia à frente do comboio. Os rebeldes atacavam de todos os lados, mas ele hesitavam em usar armas pesadas porque temiam pela segurança dos seus próprios combatentes. “Eu queria de fato entrar na luta imediatamente”, recorda Aoued. “Mas não tive permissão para isso, porque estava de guarda até às 9h”.

O amigo dele, Siraj al-Himali, estava de guarda em uma subestação de energia situada entre o silo e duas tubulações de concreto. Após rodar por algumas centenas de metros, o comboio de Gaddafi finalmente parou em frente ao muro da subestação. A cerca de 11h, um avião de caça francês bombardeou o comboio, que a essa altura se encontrava em uma situação caótica. O Toyota Land Cruiser de Gaddafi ficou ligeiramente danificado e ele já estava sangrando na cabeça após o ataque, disse mais tarde ao “New York Times” o chefe de segurança do ex-ditador, Mansour Dau, que foi capturado.

Cerca de 15 homens, incluindo Gaddafi e Dau, seguiram a pé, passando por uma casa vazia, em direção a duas tubulações de concreto construídas para evitar a inundação da estrada durante chuvas torrenciais. O grupo de Himali capturou três soldados, um dos quais contou que Gaddafi estava com eles. Os combatentes, a essa altura bastante entusiasmados, se espalharam até ouvirem gritos vindos do outro lado da túnel.

Himali correu em direção às vozes e viu que seis combatentes haviam arrastado Gaddafi para fora da tubulação de drenagem. Aoued os seguiu.

Umran Shaaban, um jovem combatente, foi o primeiro a reconhecer o ditador e apoderou-se da arma que ele estava portando. A princípio, Gaddafi, sangrando e vestido com uma roupa de cor cáqui, começou a gaguejar, perguntando qual era o problema, e se havia de fato algum problema. “Ele parecia estar completamente desorientado, como se não fosse capaz de entender nada. Mas ele ainda estava de pé”, recorda Aoued, acrescentando que os captores de Gaddafi o seguraram durante alguns segundos antes de espancá-lo. A cabeça dele estava sangrando.

Aoued pegou uma das meias marrons de Gaddafi como souvenir, e Himali levou um dos sapatos pretos do ex-líder líbio.

“Gaddafi está no comboio”

Uthman al-Rais, também da Brigada Watan, vasculhou a bolsa de Gaddafi. Ele se recorda de que, alguns minutos antes, um outro membro do grupo dos últimos soldados restantes de Gaddafi havia gritado à distância: “Me deixem dizer uma coisa. Me deixem falar: Gaddafi está no comboio!”. Ele trazia coisas estranhas na sua bolsa. Além de tâmaras e munições de calibre nove milímetros, havia maquiagem, cremes faciais, chaves de automóveis e pequenos pedaços de papel com fórmulas mágicas”.

Gaddafi era conhecido por acreditar em adivinhos e leitores da sorte. Dois mágicos do Sudão e do Chade estariam entre os mortos do último contingente do ditador em Sirte, e ele havia amarrado nos cabelos um “lhdjab”, um amuleto feito com papel, sangue e várias outras coisas, conforme se recordam os combatentes da Brigada Watan e o médico que foi o primeiro a examiná-lo em Misrata.

Enquanto uma quantidade cada vez maior de combatentes chegava correndo para ver a cena, disparando as armas freneticamente para o ar e gritando “Allahu akbar”, uma bala atingiu Gaddafi na barriga. “De onde veio a bala? Não faço a menor ideia, mas foi naquele momento que ele começou a sangrar”, diz Aoued.

“Nós tentamos formar uma corrente humana para protegê-lo”, insiste ele, “mas a multidão de combatentes tornou-se cada vez mais agressiva, e, além disso, mais homens chegaram correndo após escutarem no rádio que nós havíamos capturado Gaddafi. Nós deveríamos tê-lo protegido. Mas vocês precisam entender: muitos dos combatentes tinham perdido amigos e parentes, ou haviam sido feridos, de maneira que eles estavam transtornados”.
Imagens de vídeo feitas com um telefone celular mostram um dos rebeldes procurando introduzir um pedaço de pau no ânus do ditador e uma mancha escura se espalhando pela calça cáqui de Gadhafi.

Não se sabe se aquilo foi mais um ato simbólico ou se o homem conseguiu de fato introduzir um pedaço de pau no ânus de Gaddafi. O governo de transição em Trípoli está levando o incidente suficientemente a sério para ordenar uma investigação. “Isso não deveria ter sido feito”, diz um dos combatentes da Brigada Watan, em Misrata. Um outro soldado, meio sem jeito, balança a cabeça concordando.

O ditador “pequeno e delicado”

Gaddafi foi colocado sobre o capô de uma caminhonete, mas escorregou e caiu novamente, e foi jogado na carroceria do veículo. Ele sangrava de forma cada vez mais profusa, mais ainda estava tentando falar. Aoued calcula que uma ambulância chegou cerca de “quinze minutos depois”. Um amigo dele ajudou a colocar Gaddafi na ambulância e embarcou no veículo. “A respiração dele estava ficando cada vez mais fraca, e ele perdeu completamente a consciência duas vezes.

O médico que estava na ambulância disse que ele iria morrer”. Quando a ambulância se envolveu em um acidente pouco depois, o ditador moribundo foi colocado em uma segunda ambulância, que teve um pneu furado logo a seguir. Mas a essa altura Gaddafi estava morto. Um terceiro veículo finalmente o levou para Misrata – para o médico Abu Bakr Traina.

O destino fechou um ciclo completo entre ele e o ditador, diz Traina, diretor do comitê médico da cidade, referindo-se aos seus encontros com o outrora onipotente líder. “Eu estive com Gaddafi três vezes. A primeira vez foi em 19 de outubro de 1970. Eu estava cursando o segundo grau, e ele nos explicou que libertaria a Líbia. A segunda vez foi 20 anos atrás, quando o nosso comitê de médicos o visitou. Mas tudo o que ele fez olhar intensamente para o vazio, como se para nos mostrar o quanto nós éramos sem importância. E a terceira vez foi quando eu emiti o seu atestado de óbito”, diz Traina com um sorriso tranquilo.

Traina examinou Gaddafi juntamente com o seu colega, doutor Hassan, e mesmo após terem se passado tantos dias ele ainda se surpreende com o que viu. “De alguma forma eu o imaginava muito maior, tendo em vista como, para nós, ele pareceu ser poderoso durante toda a nossa vida. Mas ele era na verdade pequeno e delicado”.

Corpo de um homem de 40 anos de idade

Traina descreve os detalhes da autópsia com a frieza de um cientista. “O corpo dele era interessante. O que me surpreendeu a princípio foi que ele não estava usando cuecas e que a sua calça cáqui só tinha um elástico para prendê-la. Gaddafi tinha a face maltratada de uma pessoa de 69 anos de idade, mas a parte superior do corpo era de um homem de 40 anos, com uma barriga reta e sem rugas. Ele quase não tinha pelos no corpo. Nós retiramos amostras do seu cabelo e pelos pubianos para fazer testes de DNA”.

Traina conta que, externamente, o corpo de Gaddafi estava em um estado melhor do que se esperava. “Eu achei que ele estaria em um estado terrível, com diversos hematomas, fraturas e ferimentos. Pensei que ele havia sido espancado até a morte. Mas, após limparmos o corpo do sangue que o cobria, quase não vimos nenhum hematoma, e eu também não encontrei nenhuma costela quebrada. Nem mesmo a cavidade abdominal estava cheia de sangue após o tiro que ele recebeu”.

Segundo Traina, Gaddafi morreu devido ao ferimento na cabeça, “mas nós não sabemos se aquilo foi provocado por uma bala ou um estilhaço, já que o orifício de entrada na testa era bem pequeno. O orifício de saída na têmpora era um pouco maior, e a bala não estava mais lá”. Com base naquilo que viu, diz Traina, Gaddafi morreu devido a um hematoma subdural agudo.

“A pressão provocada pelo sangue que vazava dentro do crânio continuou aumentando, provocando uma chamada hiernação, ou a impactação de partes do cérebro com uma subsequente paralisia do centro respiratório”. Traina diz que entende que as pessoas queiram saber de onde veio o projétil fatal, mas ele permanece muito cético quanto a isso. “O relatório de autópsia oficial feito por médicos em Trípoli será divulgado em breve, mas sem o fragmento eles também não poderão apresentar nenhuma novidade”.

Muitos dos rebeldes não fazem nenhuma objeção ao assassinato de Gaddafi. Eles o balearam e espancaram, mas há dúvidas quanto à afirmação de que eles foram os responsáveis pela morte do ditador. Nos dias que se seguiram, uma quantidade cada vez maior de combatentes passou a exibir com orgulho aquilo que segundo eles são peças do vestuário de Gaddafi, e em breve pelo menos dois chapéus de pele, quepes militares e jaquetas estavam sendo expostos.

Se o ditador levava todos esses objetos consigo, ele precisaria ter rastejado para dentro do túnel carregando uma mala. E a alegação feita pelo combatente rebelde Sanad al-Sadigh al-ARibi de que foi ele que atirou em Gaddafi quando este estava correndo enfurece aqueles de estavam de fato no local. “Aribi só chegou lá depois que Gaddafi estava na ambulância. Ele roubou o anel de ouro de Gaddafi, mas não teve participação nenhuma na captura”, diz Uthman al-Rais, o homem que vasculhou a bolsa de Gaddafi.

“Graças a Deus ele está morto!”

O que aconteceu nos dias que se seguiram à morte de Gaddafi foi um equívoco entre dois mundos. Sentindo que devia uma explicação ao mundo, o conselho de transição da Líbia explicou várias vezes que teria sido muito melhor ter levado Gaddafi a julgamento. Mas a maioria dos líbios se preocupa menos com o império da lei do que com a comprovação da morte do onipotente ditador. Esse foi um dos motivos pelos quais o corpo dele foi exposto publicamente em uma sala refrigerada até começar a se decompor visivelmente.

Até mesmo políticos graduados, que insistem em dizer que teria sido melhor ter submetido Gaddafi a um julgamento, afirmam: “Graças a Deus ele está morto!”. Eles só não querem ter o nome divulgado.

Os corpos de Gaddafi, do filho dele Mutassim e do seu ministro da Defesa de vários anos, Abu-Bakr Yunis Jabr, foram exibidos ao público em Misrata durante quatro dias. No início o corpo de Gaddafi ficou seminu, mas após a autópsia ele foi coberto até o pescoço de forma que não se pudesse ver que ele foi cortado da orelha até o umbigo e depois costurado.

Na cultura muçulmana, até mesmo os corpos dos inimigos são entregues às suas famílias. Foi exatamente isso que os parentes de Gaddafi exigiram, mas o conselho de transição decidiu na última segunda-feira que os três homens seriam sepultados em um local secreto no deserto, ao sul de Misrata.

Em Wadi Jaraf, a vila nativa de Gaddafi, cerca de 30 quilômetros ao sul de Sirte, os homens olham com suspeição para todos os carros que param em frente à mesquita local. Eles estão com medo. Em vez de gozarem de um status especial, eles agora se tornaram os perseguidos. Os rebeldes confiscaram carros, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) bombardeou a subestação de energia elétrica local, e um velho engenheiro petrolífero, que revelou apenas o seu primeiro nome – Mohammed – afirma com sarcasmo:

“Então é dessa maneira que a Otan protege civis”. A rede telefônica não funciona, e há meses não há gasolina nem eletricidade. “Se nós somos criminosos porque apoiamos Gaddafi, será que esses rebeldes que destroem tudo aqui são melhores?”.

O local em que Gaddafi nasceu, um quarto vazio no meio de um pátio, parece um local de construção. Três subdivisões recém construídas, feitas de tijolos, ao longo de uma cova recente de quatro metros de comprimentos, estão vazias. As bordas são cinzentas, simples e com meio metro de altura, e ainda existe muito espaço ao lado delas. “Elas estavam esperando mais corpos”, explica Mohammed.

“Mas agora não receberão corpo algum”. Muammar Gaddafi deveria ser enterrado na sepultura da extrema esquerda, e as outras eram destinadas aos seus filhos e outros familiares.

Mas essas não são as únicas sepulturas vazias. A mãe, a avó e dois primos de Gaddafi, que morreram há anos ou décadas, foram enterrados alguns quilômetros ao norte, em uma mesquita coberta de mármore. Mas as sepulturas foram escavadas e os restos mortais retirados. Para que não houvesse dúvidas quanto a quem foi o responsável pelo trabalho, os rebeldes escreveram na parede acima do mausoléu: “Comitê para a Destruição de Sepulturas Sem Valor”.

Um comentário:

  1. O ser humano foi e sempre será um bárbaro, infelizmente é isso que impulsiona o homem. É o mixto de inteligencia com a ignorância.
    Traduzindo, a RAZÃO E A EMOÇÃO.

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