segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Assad pode renunciar depois de eleições livres, diz autoridade da Síria

Grande Mufti Sheikh Hassoun
O Grande Mufti Sheikh Hassoun, mais alta autoridade na Síria e confidente próximo do presidente Bashar al-Assad, falou à Spiegel sobre a ameaça de guerra civil, possíveis bombardeios suicidas na Europa e o assassinato de seu filho pelas mãos de insurgentes islamistas.

Para alguns ele é um homem santo, para outros ele não passa de um demagogo. Mas ninguém pode duvidar de que o grande Mufti Ahmad Badreddine Hassoun, 62, é um dos homens mais importantes da Síria, um homem que, enquanto acadêmico religioso mais velho do país e conselheiro político próximo do presidente Bashar Assad, desempenha um papel em determinar a guerra e a paz neste país e em toda a região do Oriente Médio.

Sheik Hassoun, um acadêmico religioso sunita da Universidade Al-Azhar no Cairo e membro do parlamento por oito anos, sempre encontrou palavras conciliatórias no ocidente. Ele criticou duramente o termo “Guerra Santa” na frente do Parlamento Europeu, dizendo: “só a paz é santa”. No Congresso Ecumênico em Munique, ele impressionou seus colegas participantes com sua promessa de diálogo inter-religioso e chocou os bispos alemães com a proposta de que a União Democrática Cristã (CDU) deveria tirar a letra C de seu nome, por motivos de secularismo.

Agora, em outubro, Hassoun adotou um tom decisivamente diferente em sua terra natal. A passagem que se segue vazou de um discurso que ele fez para seu filho Saria, que foi morto por militantes contrários ao regime: “no momento que o primeiro míssil da Otan atingir a Síria, todos os filhos e filhas do Líbano e da Síria passarão a procurar o martírio na Europa e em solo Palestino. Eu digo para toda a Europa e os EUA: nós vamos preparar os buscadores de martírio que já estão entre vocês, se vocês bombardearem a Síria ou o Líbano. De agora em diante, é olho por olho, dente por dente.”

A Spiegel pode acompanhar o grande mufti em Aleppo na semana passada, numa rara oportunidade para ver de perto as mudanças dramáticas num país que, como o ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger disse uma vez, é a chave para a paz no Oriente Médio.

Estado de Emergência

A Síria está em estado de emergência. Uma rebelião vem acontecendo há oito meses, na qual pelo menos 3 mil pessoas já morreram, de acordo com estimativas da ONU. Mas agora a Síria também está se desintegrando em justaposições surreais. Houve conflitos sangrentos em cidades como Homs, Hama e Latakia, onde a Anistia Internacional relatou casos de tortura, até em hospitais, bem como sequestros e conflitos tribais. A cidade de Aleppo, de 4 mil anos, um cruzamento na lendária Estrada da Seda, parece uma cidade que está nervosamente no limbo, farejando o ar para ver o que vem depois: a paz condicional.

Nas ruas sinuosas além do centro da cidade, um local tombado pela Unesco como patrimônio histórico, comerciantes e mercadores desafiam e montam um espetáculo de normalidade, enquanto trocam a moeda local por dólares norte-americanos no mercado negro. Um silêncio assustador prevalece nas mansões da era otomana restauradas minuciosamente que foram transformadas em hotéis de luxo.

Sinos de igreja tocam quase simultaneamente com o chamado do muezzin. Igrejas católicas e cristãs ortodoxas estão espalhadas aqui entre as muitas mesquitas. Nos mercados, mulheres com véu se acotovelam com outras de minissaia e salto alto. A luta armada parecia infinitamente longe a princípio, mas agora sua presença está repentinamente muito perto, enquanto as sirenes cortam o ar e ambulâncias trazem os mortos e feridos de uma batalha sangrenta a apenas 15 quilômetros do centro de Aleppo.

Nenhum sinal de calma
Será que as religiões também estão sendo jogadas umas contra as outras neste clima tenso? Será que a maioria sunita, 71% da população, está prestes a se vingar da minoria alauíta (12%), à qual pertence à família presidencial de governantes autoritários durante os últimos 40 anos?

Na quarta-feira passada, o governo concordou com um plano de paz proposto pela Liga Árabe. Mas não há sinais de que a situação está se tornando mais clara; batalhas sangrentas aconteceram mais uma vez depois das preces de sexta-feira.

O grande mufti nos recebeu no escritório de seu apartamento perto da universidade. Ele estava sentado em frente a estantes grandes, interrompidas apenas por uma frase em caligrafia árabe que dizia: “Deus nos ensina tudo, inclusive a melhor forma de usar a linguagem”. As conversas com o grande mufti duraram duas tardes. Elas foram periodicamente interrompidas quando, por exemplo, falava-se sobre a morte de seu filho e o mufti ficava tomado pela tristeza, ou mais raramente, quando um visitante chegava, entregava uma carta e, de acordo com a tradição, beijava a mão do líder religioso. Um amigo do mufti que todos chamam de George – que não é muçulmano, e sim um cristão norte-americano – atuou como intérprete.

Spiegel: Sheikh Hassoun, pelo menos 3 mil pessoas morreram na Síria desde março. Será que a guerra civil ainda pode ser evitada?
Hassoun: É possível, mas daí todos os lados precisam desejar verdadeiramente a paz. O governo acaba de concordar em dar o primeiro passo: ele vai retirar o exército e todos os tanques do centro das cidades. É preciso estar consciente de como tudo começou para entender o quanto é o caminho para a reconciliação ainda é longo. Algumas forças, especialmente no exterior, têm um interesse em escalar ainda mais o conflito.

Spiegel: O que você quer dizer?
Hassoun: Em março, houve um protesto totalmente justificado em Daraa contra o governador da região, que havia colocado crianças na prisão. Daraa é uma cidade perto da fronteira da Jordânia conhecida pelo contrabando. Eu fui para lá imediatamente e acalmei a situação, e prometi para as pessoas uma investigação independente. Por sugestão minha, o presidente retirou o governador do poder. Mas então os imãs que vieram de fora, especialmente da Arábia Saudita, atiçaram as coisas com seus discursos inflamados. Os canais de notícias dos estados do Golfo, Al-Jazeera e Al-Arabiya, ajudaram alegando falsamente que os clérigos estavam do lado dos manifestantes anti-Assad.

Spiegel: Você está dizendo que a revolta contra Assad não foi desencadeada pela repressão do regime mas está sendo controlada do exterior?
Hassoun: Observe o segundo centro de conflito, perto de Daraa: Homs. Aquela cidade também é muito próxima da fronteira, neste caso com o Líbano. Elementos desagradáveis – iraquianos, afegãos, sauditas e iemenitas – também vêm de lá, todos com uma agenda fundamentalista radical. Os provocadores atacaram até chefes de polícia e oficiais militares em suas casas.

Spiegel: Parece uma teoria da conspiração, com a qual você está tentando maquiar a falha do regime de Assad.
Hassoun: O governo não é como você o descreve. Mas ele cometeu erros políticos e econômicos e não se liberalizou rápida e amplamente o suficiente. O presidente está assumindo a responsabilidade por isso.

Spiegel: Você diz isso para ele em suas conversas particulares?
Hassoun: É sabido que eu em geral apoio as políticas do presidente. Mas quando sinto a necessidade de criticar e corrigir, faço isso. Veja, por exemplo, a necessidade de melhorar as condições de vida das classes mais pobres e o tratamento dos dissidentes. Há uma velha guarda nos nossos círculos de governo. Essas pessoas são impedimentos e precisam ser isoladas.

Spiegel: E o presidente ouve você? Temos a impressão de que ele é resistente ao conselho dos outros.
Hassoun: Acho que ele não se apega muito a esta posição.

Spiegel: Em sua visão, sob quais circunstâncias Assad estaria disposto a deixar o poder – uma condição que muitos insurgentes fizeram e que é compartilhada pelo presidente norte-americano Barack Obama e políticos europeus?
Hassoun: Estou convencido de que ele gradualmente fará reformas, permitirá eleições livres e justa s com partidos independentes, e então, depois de uma transição pacífica, poderá se dispor a deixar o poder. Ele não é um presidente para a vida toda. Bashar Assad, ex-oftalmologista, quer retornar a sua antiga profissão. Eu posso imaginar isso facilmente. Na verdade, ele me falou várias vezes sobre seu sonho de ter uma clínica oftalmológica.

Spiegel: No momento, entretanto, ele está muito hesitante em concordar com as reformas. Sob uma pressão massiva da Liga Árabe, ele concordou em acabar com a violência dentro das próximas duas semanas. Assad subestimou a amplitude da mudança revolucionária no Oriente Médio? Você, também, falhou em prever que os líderes autoritários da região poderiam ser varridos?
Hassoun: Ah, a Liga Árabe e a chamada Primavera Árabe. Na minha opinião, a Liga está profundamente dividida, numa ala que vê a si mesma principalmente em oposição a Israel, e outra que se posiciona contra uma suposta dominação iraniana. A Liga está tão preocupada com a Síria, mas onde estão seus protestos pelo Iêmen e Bahrain, onde as condições são muito piores? E o que de fato melhorou no Egito? Será que devemos comemorar a ascensão de partidos islamistas? Eu acredito na separação estrita da igreja e do estado.

Spiegel: Nem todos os islamistas são inimigos da democracia. Os vencedores da eleição em Tunis vêm se comprometendo com o pluralismo, e o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) em Ancara pratica em grande parte este pluralismo.
Hassoun: Eu estive na Turquia há nove meses e me encontrei com quase todos os principais políticos. E devo admitir que fiquei muito impressionado.

Spiegel: Seu vizinho do norte ficou do lado dos oponentes de Assad. A Turquia está permitindo que o chamado Exército de Libertação da Síria organize ataques contra o norte da Síria a partir de seu território. Ela também está abrigando o Conselho Nacional da Síria, um grupo de oposição, que anunciou sua formação em Istambul há alguns meses.
Hassoun: Sim, eu fiquei muito surpreso e ultrajado com isso. Este conselho nacional não tem nem um programa político: mostre-nos alguma coisa, negocie com o regime de Assad num prazo realista, e então deixe as pessoas decidirem quem tem as ideias mais convincentes.

Spiegel: Pelo menos uma parte dos oponentes de Assad agora parecem favorecer um cenário líbio, uma luta armada...
Hassoun: … que não tem nenhuma chance. Assad não é Gaddafi, e a Síria não se compara à Líbia. Nós somos uma grande nação cultural, e revoluções sangrentas não são o nosso estilo. Além disso, temos um exército leal, funcional e consciente da tradição.

Spiegel: É o que você diz, mas muitos soldados se juntaram ao movimento de resistência.
Hassoun: Quantos, 50 ou 55? Estamos falando de um exército de dezenas de milhares de homens. Mas alguns dos imãs sunitas radicais da Arábia Saudita e da região do Golfo estão atiçando as pessoas, e infelizmente eles estão encontrando alguns imãs sunitas em meu país que simpatizam com eles. Por exemplo, eles anunciaram uma fatwa contra mim, porque em sua visão eu estou traindo a religião e sou muito moderado. Mas eu não sou o único em sua lista.

Spiegel: Quem mais?
Hassoun: Eles colocaram os olhos em meu filho inocente, Saria, um estudante de 22 anos que sempre foi amigável com todo mundo, que estudava Relações Internacionais e não queria ter uma profissão religiosa. Esta é a responsabilidade familiar que vocês criticam em outros lugares! Ah, se os quatro assassinos dele tivessem me matado no lugar!

Spiegel: Por que você ameaçou enviar homens-bomba para a Europa e os Estados Unidos em seu discurso no enterro?
Hassoun: Eu não ameacei enviar homens-bomba. Eu simplesmente descrevi um cenário no qual isso poderia facilmente emergir daquela situação, e fui alertado contra o que poderia acontecer. Frases foram tiradas de contexto e receberam um tratamento diferente. Além disso, o contexto da minha declaração era uma situação de auto-defesa: um possível ataque da Otan à Síria...

Spiegel: … do qual o ex-candidato à presidência dos EUA John McCain, além de alguns outros membros da oposição síria que trabalham no exterior já haviam falado.
Hassoun: Se chegar a isso, o mundo explodirá. Haverá um enorme banho de sangue, e isso também afetará o ocidente. É por isso que a Europa, em particular, deveria se envolver mais na região. Os europeus seriam melhores para negociar a paz do que a Liga Árabe.

Spiegel: De volta ao seu discurso...
Hassoun: … que teve seu caráter distorcido pelas sentenças que você citou. Eu não estava interessado em incitar as pessoas a irem para a guerra, mas sim na reconciliação – mesmo com os assassinos do meu filho Saria. “Para aqueles que o mataram, eu peço a Deus que não sejam obrigados a beber da mesma taça que eu bebo, esta taça de sofrimento”, disse. “Peço para deus perdoá-los”. E pedi para que os pais cujos filhos carregam armas: “certifiquem-se de que eles não as usem mais.”

Spiegel: Mas você também disse que o alvo dos assassinos não era “Saria, mas a Síria. Eles querem que a Síria se dobre ao sionismo e aos EUA”. Se você acredita que os assassinos são extremistas sunitas, porque acusou Israel e os Estados Unidos?
Hassoun: Há laços estreitos entre a família real saudita e a Casa Branca. Os norte-americanos estão com frequência do lado dos opressores. Eu sempre estou do lado dos oprimidos.

Spiegel: O que isso significa para seu papel na Síria?
Hassoun: Eu vejo a mim mesmo como o grande mufti de todos os 23 milhões de sírios, não só dos muçulmanos, mas também dos cristãos e também dos ateus. Sou um homem de diálogo. Quem sabe, talvez um agnóstico me convencerá com melhores argumentos um dia, e eu deixarei de acreditar. E se eu me entusiasmar com a plataforma política da oposição, também posso mudar de lado.

Spiegel: Qual você quer que seja o seu legado como um acadêmico religioso?
Hassoun: O derramamento de sangue tem de acabar! Se eu pudesse trazer a paz, eu ficaria feliz em permitir que meus inimigos me matassem – ficaria feliz em me sacrificar por isso!

Spiegel: Sheikh Hassoun, agradecemos por esta entrevista.

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