A história secreta de uma operação de caça aos nazistas do governo dos EUA conclui que funcionários da inteligência norte-americana criaram um “refúgio seguro” para nazistas e seus colaboradores nos Estados Unidos depois da 2ª Guerra Mundial, e detalha décadas de confrontos, normalmente velados, com outros países por conta de criminosos de guerra dentro do país e fora.
O relatório de 600 páginas, que o Departamento de Justiça tentou manter em segredo por quatro anos, fornece novas provas sobre mais de duas dúzias dos casos mais notórios das últimas três décadas envolvendo nazistas.
Ele descreve a busca póstuma do governo pelo médico Josef Mengele, o Anjo da Morte de Auschwitz, de quem parte do couro cabeludo foi mantida numa gaveta de um funcionário do Departamento de Justiça; o assassinato de um ex-soldado da Waffen SS em Nova Jersey; a identificação equivocada por parte do governo de um guarda do campo de concentração de Treblinka conhecido como Ivan o Terrível.
O relatório cataloga tanto os sucessos quanto os fracassos do grupo de advogados, historiadores e investigadores do Escritório de Investigações Especiais do Departamento de Justiça, que foi criado em 1979 para deportar nazistas.
Talvez as revelações mais condenáveis do relatório estejam relacionadas ao envolvimento da Agência Central de Inteligência, a CIA, com emigrantes nazistas. Relatórios de estudiosos e de governos anteriores reconheceram que a CIA usou nazistas para fins de inteligência no pós-guerra. Mas este relatório vai mais além ao documentar o nível de cumplicidade e falsidade norte-americana nessas operações e acrescenta material histórico proveniente de memorandos do governo feitos depois da 2ª Guerra Mundial.
Ao descrever a “colaboração do governo com os perseguidores”, o relatório do Departamento de Justiça diz que os investigadores da OSI descobriram que alguns nazistas “de fato receberam permissão para entrar” nos EUA, embora funcionários do governo soubessem de seu passado. “Os EUA, que se orgulhavam de ser um refúgio seguro para os perseguidos, tornaram-se – em pequena medida – um refúgio seguro também para os perseguidores”, diz ele.
O relatório também documenta as divisões dentro do próprio governo por conta deste esforço e as dificuldades legais de basear-se no testemunho de sobreviventes do Holocausto dados há décadas. O relatório também concluiu que o número de nazistas que chegaram aos Estados Unidos era quase certamente bem menor do que 10 mil, número que costuma ser citado por funcionários do governo.
O Departamento de Justiça estava resistindo à divulgação do relatório desde 2006. Sob a ameaça de um processo judicial, ele entregou uma versão bastante modificada no mês passado para um grupo de pesquisa privado, o Arquivo de Segurança Nacional, mas ainda assim as partes legais e políticas mais delicadas foram omitidas. Uma versão completa foi obtida pelo The New York Times.
O Departamento de Justiça disse que o relatório, produto de seis anos de trabalho, nunca foi formalmente concluído e não representa as descobertas oficiais. Ele citou “inúmeros erros factuais e omissões”, mas recusou-se a dizer onde estavam.
Mais de 300 perseguidores nazistas foram deportados, perderam a cidadania ou foram impedidos de entrar nos Estados Unidos desde a criação da OSI, que se fundiu com outra unidade este ano.
Entre os casos de nazistas que foram ajudados por funcionários da inteligência norte-americana, o relatório cita a ajuda que funcionários da CIA forneceram a Otto Von Bolschwing, associado de Adolph Eichmann que havia participado do desenvolvimento dos planos iniciais “para limpar a Alemanha dos judeus” e que mais tarde trabalhou para a CIA nos Estados Unidos. Numa sequência de memorandos, funcionários da CIA debatiam o que fazer se Von Bolschwing fosse confrontado sobre seu passado – se deveriam negar qualquer afiliação nazista ou “explicá-la com base nas circunstâncias extenuantes”, disse o relatório.
O Departamento de Justiça, depois de saber sobre as ligações de Von Bolschwing com o nazismo, tentou deportá-lo em 1981. Ele morreu naquele ano aos 72.
O relatório também examina o caso de Arthur L. Rudolph, um cientista nazista que comandava as fábricas de munição Mittelwerk. Ele foi levado aos Estados Unidos em 1945 por causa de sua experiência na fabricação de foguetes, pela Operação Paperclip, um programa dos EUA que recrutava cientistas que haviam trabalhado na Alemanha nazista. (Rudolph foi homenageado pela NASA e recebeu o crédito pela criação do foguete Saturno V.)
O relatório cita um memorando de 1949 do segundo mais alto funcionário do Departamento de Justiça, pedindo que os funcionários da imigração permitissem a volta de Rudolph ao país depois de uma estadia no México, dizendo que não fazer isso “seria um prejuízo para os interesses nacionais.”
Os investigadores do Departamento de Justiça encontraram provas de que Rudolph estava muito mais envolvido na exploração de trabalhadores escravos em Mittelwerk do que ele ou funcionários da inteligência norte-americana reconheceram, diz o relatório.
Alguns funcionários da inteligência reclamaram quando o Departamento de Justiça quis deportá-lo em 1983, mas a OSI considerou a deportação de alguém com a proeminência de Rudolph como uma afirmação da “profundidade do compromisso do governo com o programa de perseguição aos nazistas”, de acordo com memorandos internos.
O próprio Departamento de Justiça chegou a esconder o que funcionários norte-americanos sabiam sobre nazistas no país, descobriu o relatório.
Em 1980, os promotores entraram com uma moção que “distorcia os fatos”, afirmando que checagens de relatórios da CIA e do FBI não revelaram nenhuma informação sobre o passado nazista de Tscherim Soobzokov, um antigo soldado da Waffen SS. Na verdade, diz o relatório, o Departamento de Justiça “sabia que Soobzokov havia contado à CIA sobre sua conexão com a SS depois de chegar nos Estados Unidos.”
(Depois que o processo foi rejeitado, grupos judeus radicais incentivaram a violência contra Soobzokov, e ele foi assassinado em 1985 por uma bomba em sua casa em Paterson, Nova Jersey.)
O segredo sobre como o Departamento de Justiça lidou com o relatório pode criar um dilema político para o presidente Barack Obama por causa de sua promessa de fazer o governo mais transparente da história. Obama escolheu o Departamento de Justiça para coordenar a divulgação de documentos do governo.
O relatório sobre a caça de nazistas foi criação de Mark Richard, um advogado sênior do Departamento de Justiça. Em 1999, ele persuadiu a procuradora-geral Janet Reno a iniciar uma avaliação detalhada do que ele via como uma peça fundamental da história, e nomeou a promotora Judith Feigin para o trabalho.
Depois que Richard editou a versão final em 2006, ele incentivou funcionários sênior do governo a divulgarem o relatório, mas foi rejeitado, dizem os colegas.
Quando Richard ficou doente com câncer, disse a um grupo de amigos e familiares que a publicação do relatório era uma das três coisas que ele gostaria de ver antes de morrer, disseram seus colegas. Ele morreu em junho de 2009, e o promotor-geral Eric H. Holder Jr. falou em seu funeral.
“Falei com ele na semana anterior à sua morte, e ele ainda estava tentando publicar o relatório”, disse Feigin. “Aquilo partia o coração dele.”
Depois da morte de Richard, David Sobel, advogado de Washington, e o Arquivo de Segurança Nacional, entraram com um processo pela divulgação do relatório através do Ato de Liberdade de Informação.
O Departamento de Justiça lutou inicialmente contra o processo, mas por fim deu a Sobel uma cópia parcial – com mais de mil passagens e referências apagadas por alegações de privacidade e deliberações internas.
Laura Sweeney, porta-voz do Departamento de Justiça, disse que o departamento está comprometido com a transparência, e as redações foram feitas por advogados experientes.
O relatório completo divulgado pelo Departamento de Justiça encontrou uma “prova irrefutável” em 1997 de que a Suíça havia comprado ouro que os nazistas retiravam de judeus vítimas do Holocausto. Mas essas referências foram apagadas, assim como as disputas entre os departamentos de Justiça e de Estado quanto à culpabilidade da Suíça nos meses que precederam um importante relatório sobre o assunto.
Outra seção descreve como uma “falha terrível” uma série de reuniões de 2000 que funcionários dos EUA tiveram com autoridades da Latvia para pressioná-las a perseguir suspeitos nazistas. A passagem também foi apagada.
Bem como referências a passagens pouco conhecidas e macabras da história, incluindo o caso de um diretor da OSI que manteve um pedaço do couro cabeludo que seria de Mengele em sua mesa na esperança de isso ajudasse a descobrir se ele estava morto.
O capítulo sobre Mengele, um dos mais notórios nazistas a escapar do julgamento, detalha os elaborados esforços da OSI em meados dos anos 80 para determinar se ele havia fugido para os Estados Unidos e se ainda estava vivo.
Ele descreve como os investigadores usaram cartas e diários aparentemente escritos por Mengele nos anos 70, junto com registros dentários alemães e listas telefônicas de Munique, para perseguir suas pistas.
Depois do desenvolvimento de testes de DNA, o pedaço de couro cabeludo, que havia sido fornecido pelas autoridades brasileiras, provou ser uma prova essencial para estabelecer que Mengele havia fugido para o Brasil e morrido no país por volta de 1979, sem nunca ter entrado nos Estados Unidos, disse o relatório. O relatório editado apagou referências ao couro cabeludo de Mengele por motivos de privacidade.
Mesmo documentos que estão há muito tempo disponíveis ao público foram omitidos, incluindo decisões de tribunais, testemunhos ao congresso e artigos de primeira página de jornais dos anos 70.
Um capítulo sobre o erro mais divulgado da OSI – o caso contra John Demjanjuk, um funcionário norte-americano da indústria automobilística aposentado que foi equivocadamente identificado como sendo Ivan, o Terrível, de Treblinka – omite dezenas de detalhes, incluindo parte de uma decisão da Corte de Apelação do 6º Circuito dos EUA em 1993 que levantou acusações éticas contra funcionários do Departamento de Justiça.
Essa seção também omite uma passagem que revela que emigrantes da Latvia simpáticos a Demjanjuk arranjaram secretamente para que o lixo da OSI fosse entregue a eles todos os dias de 1985 a 1987. Os emigrantes procuravam no lixo documentos confidenciais que poderiam ajudar Demjanjuk, que atualmente está sendo julgado em Munique por outras acusações de crimes de guerra.
Feigin disse que ficou perplexa com a tentativa do Departamento de Justiça de manter uma parte central de sua história em segredo por tanto tempo. “É uma história surpreendente”, diz ela, “que precisa ser contada.”
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