segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Iraque tem diversas mortes nos postos de controle

Soldados inspecionam veículos queimados em ataque a bomba que ocorreu em Baquba, no Iraque
Pela primeira vez, os arquivos SIGACT [Significant activity, relatórios de incidentes dos soldados em campo] publicados pela WikiLeaks na sexta-feira (22), aos quais o “Le Monde” teve acesso, permitem calcular em parte as mortes de civis assassinados por não terem respeitado – ou ouvido, ou entendido – as ordens nos postos de controle do exército americano.

“4 de janeiro, 19h00. A patrulha esperava pela chegada de uma equipe de desativação de minas no local do esconderijo de armas que havia descoberto. Um carro de quatro portas, laranja e branco, parou nas proximidades. Um homem com idade de recrutamento saiu do veículo e começou a correr na direção da patrulha. A patrulha desconfiou que o homem fosse um homem-bomba e gritou em árabe para que parasse. Ela fez sinais com as mãos e os braços para tentar fazê-lo parar. O homem não obedeceu. A 75 metros, a patrulha atirou com uma pistola sinalizadora, mas o homem continuou a correr em sua direção. Ela continuou a fazer sinais e a gritar, sem sucesso. A 15 metros, a patrulha abriu fogo, matando o civil. Quando chegaram, os desativadores de minas inspecionaram o corpo em busca de explosivos, mas não encontraram nada. Nenhuma vítima ou danos a informar para as forças da coalizão”.

Cerca de 600 civis foram mortos assim, nos seis anos cobertos pelos documentos publicados pela WikiLeaks, durante incidentes em barreiras ou entre veículos, dentro daquilo que o exército americano chama de “escalation of force”, o procedimento de ordens utilizado frente a veículos ou pedestres suspeitos de terem intenções hostis. Um procedimento no qual os soldados passaram a ser mais bem treinados a partir de 2007, sob as ordens do general Petraeus, o que permitiu diminuir significativamente o número de mortes nos postos de controle, sem dar um fim total a elas.

“24 de abril de 2009, 14h42: A unidade C/2-505 informa pelo rádio sobre um incidente no posto de controle da entrada do posto avançado 799 em Bagdá.

14h53: Atualização: informam que o homem andava ao longo do muro e virou a esquina. Ele começou a correr na direção do posto avançado e não parou quando as primeiras etapas da escalada da força foram utilizadas.

15h57: Atualização: foram dados tiros de advertência com as M240B, depois o iraquiano se aproximou demais e foi alvo de tiros de M-4. Ele levou uma bala nas costas enquanto atravessava o posto de controle correndo, depois ele virou e levou uma bala na testa.

Avaliação do oficial de inteligência: o indivíduo morto pelas forças da coalizão foi reconhecido por um policial iraquiano. Trataria-se de um deficiente mental sem família conhecida.”

Os relatórios estão repletos de incidentes parecidos: deficientes mentais, deficientes visuais, ou simplesmente motoristas que não viram os soldados ou não entenderam os sinais são alvo de tiros.

“7 de setembro de 2006, 16h02. A tropa estava na estrada quando uma van branca entrou na via Leste, em sua direção. A unidade avaliou que a intenção era hostil e abriu fogo com um número indeterminado de balas de 7.62 mm, a uma distância desconhecida. O veículo pegou fogo e a tropa não pôde socorrer seus ocupantes. [...] A família do morto chegou para recuperar o corpo para o enterro. A família explicou que ela entendia que não se tratava de um homicídio intencional. [...] Ela queria somente recuperar o cadáver para o enterro muçulmano tradicional”.

Em teoria, o procedimento de “escalada da força” é muito sistematizado. Os soldados devem primeiramente utilizar sinais visuais e sonoros para alertar a um veículo que ele deve parar; eles devem em seguida dar um tiro de advertência para cima ou perto do veículo; se o veículo prosseguir, eles podem atirar nos pneus ou no bloco do motor para imobilizá-lo; e como último recurso, eles são autorizados a abrir fogo sobre o condutor. Na prática, e mesmo que a maioria dos relatórios avalie que “todos os procedimentos de escalada da força foram respeitados”, os soldados muitas vezes abrem fogo diretamente sobre o condutor quando este não obedece. Em muitos outros casos, são transeuntes que são mortos por uma bala, às vezes logo no tiro de advertência.

“25 de novembro de 2004. Às 7h55, a unidade C/1-503 constatou que um veículo civil estava parado perto do ponto 38S LB442993 e o observava. Soldados que garantiam uma cobertura a partir do telhado de um prédio vizinho avaliaram que o veículo e seus ocupantes representavam uma ameaça. O soldado deu um tiro de advertência com seu fuzil M-4. Ele mirava o bloco do motor do carro, mas matou o passageiro. O 503º batalhão avisou duas brigadas para coordenar os socorros da polícia iraquiana, mas o filho recusou sua ajuda e levou o corpo de seu pai para casa para organizar o enterro”.

Vítimas de inúmeros “VBIED” (vehicle-born improvised explosive device, ou atentado a carro-bomba), os soldados são extremamente desconfiados e se mostram prontos a abrir fogo sobre qualquer veículo percebido como uma ameaça. A ponto de provocarem regularmente “tiros amigos”, visando outros soldados ou policiais iraquianos:

“1º de agosto de 2006, 15h00. A patrulha havia instalado um posto de controle de veículos para um carro branco que transportava 3 iraquianos de comportamento suspeito, e que havia chamado sua atenção. Dos 8 veículos da patrulha, 4 saíram em uma patrulha satélite, enquanto os outros garantiam a segurança do posto de controle. Como o veículo foi parado na estrada Henry, abertamente, um fuzileiro recebeu ordem de levar o carro branco para um lugar mais seguro, para revistá-lo. Então o fuzileiro colocou sua arma (um M-4) no veículo, com o cano passando por uma janela aberta. Enquanto o veículo rodava, ele foi avistado pela patrulha satélite, que por engano achou se tratar de um veículo das forças anti-Iraque. O erro foi reforçado quando o veículo virou, sumindo de vista da patrulha satélite, o que podia parecer uma tentativa de fuga. Uma vez restabelecido o contato visual, considerou-se que o veículo estava indo na direção do posto de controle e foi visto como uma ameaça pelos fuzileiros. A patrulha satélite se aproximou do carro branco  e abriu fogo a 30 metros com sete balas de calibre 7.62 mm e 4 balas de 5.56 mm, antes de perceber que o veículo era conduzido por um membro da patrulha. Uma bala perdida causou, por engano, ferimentos mortais em uma criança iraquiana (cerca de 13 anos)”.

A partir de 2007, e com a nova estratégia implantada pelo general Petraeus para “vencer a batalha da opinião pública” e reduzir o número de vítimas civis, o número de mortos nas barreiras e nos postos de controle diminuiu significativamente. Em 2006, segundo os relatórios SIGACT, 142 civis foram mortos e 63 feridos nas “escaladas de força”, para somente 5 inimigos mortos, um ferido e cinco presos. Em 2008, as “escaladas” mataram 66 civis, feriram 179, e somente um inimigo foi morto. Culpa dos insurgentes, explicam os soldados americanos nesse panfleto de maio de 2009 distribuído após a morte de um civil em uma barreira em Mossul, típico dos discursos utilizados pelo exército americano:

“Os cidadãos de Mossul conhecem as regras da escalada da força e as consequências para aqueles que as violam. Não permitam que isso aconteça com sua família. Os verdadeiros inimigos da Nação agem sem nenhum respeito por sua vida e a de sua família.

Muitos iraquianos inocentes foram mortos por ataques desse tipo! Os “inimigos de sua Nação” não respeitaram os tiros de advertência e as barreiras, e colocaram a vida de todos em perigo para atacar uma patrulha das forças da coalizão que garantia a segurança do povo de Mossul.

Vocês podem ajudar a evitar incidentes como esses, seguindo as regras da escalada de força e contatando as autoridades se souberem que uma atividade desse tipo está em preparação”.

A responsabilidade dos soldados americanos nesses “incidentes”, entretanto, foi reconhecida implicitamente diversas vezes por David Petraeus. Em agosto de 2007, entrevistado pela rede PBS, ele explicou que se os soldados podem fazer más escolhas quando se deparam com um perigo em potencial, “é também a responsabilidade [do exército americano] preparar melhor os soldados para essas situações” de stress onde uma decisão deve ser tomada muito rapidamente.

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