quarta-feira, 8 de setembro de 2010

População do Iraque vive entre lixo e ratos

Algumas famílias iraquianas vivem em casas feita de latões encontrados no lixo
A população mais pobre do Iraque vive sobre pilhas de lixo, dorme entre ratos e bebe água poluída. No país com a terceira maior reserva de petróleo do mundo, um milhão de pessoas vive na miséria, apesar de os EUA terem gasto US$ 53 bilhões (R$ 91,7 bilhões) nos esforços de reconstrução do país.

Os ratos chegam à noite, quando a família Saad está dormindo. Eles abrem caminho nos espaços entre os eletrodomésticos descartados que Saad Kadi Saad empilhou para formar uma parede em volta do seu pedaço do depósito de lixo. Os ratos correm em volta do colchão de casal rasgado onde a família de cinco pessoas se amontoa, e vão até a casinha que a família usa como banheiro e que fica a poucos metros da cama ao ar livre.

Sadr City é onde vivem os pobres de Bagdá. Cerca de 3 milhões de pessoas estão amontoadas no subúrbio controlado por islamitas xiitas na parte leste da capital iraquiana. Todas as ruas têm o mesmo padrão quadriculado; e, nos anos 60, fazendeiros das províncias iraquianas foram para lá para encontrar novos espaços modernos para viver. Em vez disso, nos pequenos apartamentos de hoje, até cinco famílias vivem juntas ao mesmo tempo, e o esgoto corre no meio da rua. Para alguns é ainda pior: os Saad se considerariam sortudos se de fato morassem em Sadr City.

Em vez disso, eles vivem sobre e em meio ao lixo que é produzido na área empobrecida. Para chegar em sua casa, eles precisam passar por um buraco num muro explodido no limite de Sadr City. A favela localizada exatamente atrás daquele buraco poderia facilmente se localizar em Calcutá, por exemplo. Quem mora lá desceu ao nível mais baixo que se pode chegar.

Construída no lixo

O assentamento no lixão, no qual vivem os mais pobres entre os pobres de Bagdá, chama-se Teneke Village. Teneke é a palavra árabe que designa os tubos de metal usados para vender óleo de motor. Na Alemanha, as latas vazias são consideradas lixo tóxico e precisam de descarte especial. Mas no Iraque, o país com a terceira maior reserva de petróleo do mundo, os moradores das favelas as usam para construir seus barracos, e o óleo antigo vaza pelas paredes. Só assim para que os Saad, uma vez na vida, tenham algum contato com o ouro negro do Iraque.

“Nós vivemos de vender as latas que coletamos no meio do lixo”, diz o pai. Ele está com fome porque não há comida suficiente em casa. O pouco arroz que sua mulher Zeinab cozinhou é para seus três filhos. Cerca de uma vez a cada três dias, os Saad conseguem coletar uma sacola cheia de latas, pela qual recebem o equivalente a cerca de 3 euros (R$ 6,6). Não costuma ser dinheiro suficiente para comprar verduras, e nunca é suficiente para comprar nenhum tipo de carne.

Os Saad caíram numa pobreza abjeta, mas esperam que seus filhos tenham uma vida melhor. “Queremos que nosso filho Haidar vá para a escola”, diz o pai. Ele seria o primeiro da família a fazer isso. Mas primeiro as feridas de Haidar precisam sarar. Desde que a família se mudou do interior para a cidade e para o lixo há dois anos, o menino de seis anos vem sofrendo inúmeras infecções em seus pés e couro-cabeludo.

“Eu votei para os sadristas”, diz Saad com orgulho. Seu líder, Muqtada al-Sadr, é um clérigo populista e ex-chefe de uma milícia sedenta de sangue, que se tornou uma figura influente no parlamento há cinco meses depois de uma eleição extremamente apertada. Os sadristas estão usando a mesma receita para o sucesso que deu certo em todo o Oriente Médio – com o Hamas nos territórios palestinos ou o Hezbollah no Líbano, por exemplo. Eles incorporam um grau profundo de religiosidade e líderes que acentuam seus esforços para viver de forma modesta. Eles também se vangloriam de estarem próximos ao povo e de serem os heróis dos excluídos. Nas delicadas negociações atuais para formar o próximo governo iraquiano, o equilíbrio do poder também pode estar em suas mãos.

Abaixo da linha de pobreza

Os sadristas e outros partidos que agem como defensores dos pobres são a grande esperança para os 7 milhões de iraquianos que, de acordo com a ONU, vivem abaixo da linha de pobreza de US$ 2 (R$ 3,4) por dia por pessoa.

Nos últimos sete anos, os Estados Unidos injetaram cerca de US$ 53 bilhões em ajuda civil no Iraque por meio de um programa equivalente a um moderno Plano Marshall. O dinheiro tinha a intenção de criar uma economia florescente, sustentada por um forte setor agrícola e uma forte classe média.

Mas esta não é a realidade de hoje. Um em cada quatro lares não tem água encanada. Cerca de 60% de todo o esgoto é bombeado, sem ser tratado, para o deserto. O fornecimento de energia em Bagdá se deteriorou novamente até o ponto em que a eletricidade só está disponível por até três horas por dia, tornando impossível uma vida comercial normal na capital do país.

A razão dessa miséria é o impasse político. O governo é incapaz de agir, e o parlamento nacional não aprovou nenhuma lei em nove meses. Além disso, existe a corrupção generalizada, que provou corroer tudo no Iraque. A Transparência Internacional classificou o Iraque entre um dos cinco países mais corruptos do mundo. Não longe das favelas, os políticos podem levar uma vida luxuosa que não poderia parecer mais afastada. A maior parte do dinheiro para a reconstrução foi desviada para os bolsos e projetos errados, diz Christine McNab do Programa de Desenvolvimento da ONU no Iraque.

“Precisamos de um Mahatma Gandhi”

“Ao ajudar o Iraque, você se ajuda”, diz uma placa colocada na entrada de Sadr City. E é exatamente isso que Ali Kamel está tentando fazer. Há muito tempo ele desistiu da ideia de que algum político fará alguma coisa para ajudá-lo. Há dez dias, ele se arrastou, com seus pés doentes por causa da diabete, desde Sadr City até a Praça Tahrir em Bagdá para protestar. Num pequeno e úmido apartamento de um quarto, no qual ele vive com sua mulher e quatro filhos, ele mostra o lençol pintado com as palavras que ele segurou com a ajuda de seu filho de dez anos. “A fome é muita”, diz o cartaz, tanto em árabe quanto num inglês precário. “Meu problema começa em 1990 eu nunca encontrei a solução até agora.”

Foi em 1990 que Kamel, que ainda era saudável na época, perdeu seu emprego no exército de Saddam Hussein. Seu tio havia sido executado por ser membro do banido Partido Islâmico Dawa, e seus dois sobrinhos também foram punidos. Kamel perdeu seu trabalho no serviço militar. Quando os norte-americanos marcharam para o Iraque em 2003, Kamel celebrou: finalmente o odiado ditador havia sido derrubado. Quando Nouri al-Maliki, chefe do Partido Dawa, foi eleito como primeiro-ministro iraquiano em 2006, Kamel achou que seria reincorporado, ou que receberia uma indenização. “Mas ninguém me deu nada – nada de emprego, nada de ajuda”, diz o homem de 50 anos.

A mulher de Kamel, Um Zayad, tem câncer de mama, seus pés estão repletos de feridas purulentas. Eles suspeitam que a água da torneira os tenha deixado doentes: ela tem cheiro de matéria fecal e produtos químicos. Mas os Kamel não têm dinheiro para comprar água engarrafada.

Ameaça ou uma nova guerra civil?

O fato de que dois pais seriamente doentes consigam oferecer pelo menos uma refeição por dia para seus filhos é atribuído à sua tribo. Todas as outras garantias sociais falharam, e foram exatamente as tribos que serviram como rede de apoio para milhões de pessoas de parentesco distante entre si. Mas as estruturas tribais também facilitam o nepotismo, que torna qualquer tentativa de democratizar o país suscetível ao fracasso.

As tribos são uma das razões pelas quais, cinco meses depois da eleição, o país ainda não tem um governo, diz um diplomata europeu que vive em Bagdá. “Os homens no alto tentam consolidar o maior poder possível”, diz ele. Afinal, poder significa dinheiro – dinheiro que os políticos, seus aliados e os irmãos das tribos podem redistribuir. “Numa atmosfera como esta, nenhum político pode formar uma coalizão. A própria tribo da qual ele faz parte vê qualquer compromisso como perda de rendimentos, e não perdoará o líder”.

Não é pequeno o número de iraquianos que acredita que as estruturas ossificadas podem ser eliminadas numa nova guerra civil. Apesar de seu sofrimento, Kamel é um otimista, e acredita num caminho diferente. “Precisamos de um Mahatma Gandhi”, diz ele. “Alguém que possa ver o sofrimento de seu povo e decida acabar com isso de forma pacífica.”

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