segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Inglaterra celebra 1ª Guerra Mundial entre patriotismo e cautela

Submarino alemão U-155 é exibido pelos ingleses próximo a Tower Bridge, em Londres, pouco após o Armistício
A Grande Guerra há muito desempenha um papel significativo na memória histórica da Inglaterra. Este ano, o país está planejando diversos eventos para relembrar seu 100º aniversário e vários livros novos já chegaram às prateleiras. O nacionalismo, entretanto, deve ser evitado.

O caderno sobre a mesa da sala de Una Barrie logo fará 100 anos. Não muito maior do que um maço de cigarros, ele pertencia a seu pai, Bernard, um bancário que se arrastou pelas trincheiras em Flandres, onde serviu como sinalizador para o exército inglês durante a 1ª Guerra Mundial. A guerra se esvaneceu no passado, mas agora o diário de batalha de seu pai tem um grande apelo para Barrie, cujo nome de solteira é Brookes.

A família têm nove desses pequenos cadernos e, durante décadas, eles ficaram guardados num armário na casa do irmão dela. Mas a mulher de 80 anos decidiu recentemente transformar os diários num livro completo, com notas de rodapé e imagens. "A Signaller's War" (algo como "A guerra de um sinalizador") é sua contribuição para o 100º aniversário do início da guerra.

O livro e a forma como ele veio a existir ilustram como os ingleses lembram a "Grande Guerra". Eles têm orgulho de seus ancestrais e de sua vitória sobre os alemães, embora prefiram evitar o triunfalismo. Para eles, os quatro anos que começaram em 1914 são um capítulo importante do glorioso passado do Império Britânico.

Barrie, que vive em Purley, a meia hora de trem ao sul de Londres, é uma mulher vigorosa que ri com facilidade e frequência. Seu irmão Bobby, 84, e seu marido John, 82, estão sentados ao seu lado. Todos os três ainda têm familiaridade com a 1ª Guerra Mundial a partir das histórias que ouviram em primeira mão dos soldados da época. "Nosso pai também se divertiu muito na Bélgica. Não foi apenas destruição", disse Barrie.

A última veterana inglesa da 1ª Guerra Mundial, uma mulher que havia servido as mesas para os oficiais da Força Aérea Real, morreu há dois anos, aos 110, mas a máquina de memórias já está funcionando a pleno vapor. A BBC preencherá quase 2.500 horas de transmissão com documentários, dramas históricos e discussões, e o Museu Imperial de Guerra está colocando na internet um arquivo enorme de retratos, cartas e bilhetes escritos por soldados durante a guerra. O diário do pai de Una Barrie é apenas um dos muitos relatos de testemunhas oculares que estão sendo publicados agora.

"Ansioso para entrar para o exército"
Nunca é fácil escapar da Grande Guerra na Inglaterra. O Arquivo Memorial de Guerra, por exemplo, lista 844 obeliscos em todo o país em homenagem aos anos de 1914 a 1918. Mas o país agora está preparando o centenário da 1ª Guerra Mundial como se fosse um festival nacional. As cerimônias oficiais começarão com uma celebração em Glasgow em agosto, da qual a rainha Elizabeth pretende participar. Um monte de sacos de areia com "solo sagrado" dos 70 campos de batalha belgas, que chegaram à capital britânica no final de novembro, serão usados para construir um memorial próximo ao Palácio de Buckingham. O governo planeja gastar US$ 90 milhões nas cerimônias.

No verão de 1914, o pai de Barrie não levou muito tempo para decidir se alistar. Ele passou horas esperando impacientemente do lado de fora de um quartel em Londres. "Estávamos muito ansiosos para entrar para o exército", escreveu em seu diário. Ele tinha 21 anos quando desembarcou em Le Havre com sua unidade, o 16º Batalhão do Regimento Londrino. Mas a euforia entre os jovens logo arrefeceu. A guerra era fria e cruel, uma época de noites sem dormir em trincheiras lamacentas. Bernard Brookes carregava um rifle com uma baioneta. Sua tarefa era levar mensagens das estações de comando que ficavam atrás até os soldados que lutavam. "Ele tinha uma tarefa importante", diz Barrie.

O celular de Bobby toca, mas seus dedos estão tremendo muito para atender, e a campainha para depois de um tempo. Sua irmã diz que a ideia de uma guerra ser celebrada com tanta fanfarra a deixa incomodada. O resto da família também está apreensivo sobre a extensão das celebrações. "Mas é preciso lidar com esse aniversário de alguma forma", disse o marido. É um assunto delicado, diz seu irmão Bobby em voz baixa.

Histórias de triunfos passados
Numa pesquisa YouGov feita em julho, uma maioria considerável dos ingleses disseram que os quase 15 milhões de mortos na guerra devem ser homenageados, e que é importante garantir que uma guerra como esta nunca aconteça novamente. Um terço dos entrevistados disse que os eventos comemorativos deveriam se concentrar na vitória inglesa. O historiador conservador de Oxford Hew Strachan, conhecido por suas provocações políticas e históricas, alertou contra degradar o evento de um século num aniversário comum, e permitir que ele se torne "estéril e chato". Em outras palavras, os ingleses não deveriam cometer o erro de dar muita atenção aos sentimentos de seus amigos europeus.

O patriotismo britânico vem se espalhando por todos os níveis da sociedade há anos, o que explica em parte o crescente interesse por 1914. Além disso, muitos ainda lidam com as consequências da crise financeira e estão mais do que dispostos a fugir disso através das histórias reconfortantes de triunfos passados. A maioria dos ingleses já têm uma visão crítica da Europa. Eles temem os imigrantes da Bulgária e Romênia, que, segundo sua visão, estão entrando no país para pilhar o sistema de bem-estar social. Este medo poderá render muitos votos ao Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), anti-europeu, nas eleições ao Parlamento Europeu em maio, o que por sua vez pressionaria o Partido Conservador do primeiro-ministro David Cameron. A comemoração da 1ª Guerra Mundial oferece ao governo a chance de invocar o patriotismo e ganhar o apoio de uma parte da população.

Cameron transformou os eventos comemorativos numa questão pessoal. Ao mesmo tempo, ele precisa tomar cuidado para evitar alarmar a Alemanha e seus outros parceiros europeus com uma retórica excessivamente nacionalista. "Não balançaremos nenhuma bandeira de uma forma militarista ou nacionalista", diz Andrew Murrison, representante especial de Cameron para a Comemoração do Centenário. Murrison se encontrou várias vezes com seu colega alemão, Andreas Meitzner, para prevenir mal-entendidos. Ainda assim, há diferenças entre os dois países. "Pelo menos, eu não vejo um grande entusiasmo na Alemanha para comemorar a guerra", diz Murrison.

Inválido traumatizado
Para o sinalizador Bernard Brookes, pai de Una Barrie, a guerra logo se tornou insuportável. No início de agosto de 1915, ele pulou para dentro de uma cratera de bomba para evitar uma saraivada de tiros dos alemães, e lá se viu deitado ao lado de dois camaradas mortos. Seu corpo entrou em choque. Embora ele não tivesse sido ferido fisicamente, aquele seria seu último dia na guerra. Ele foi retirado da frente de batalha como um inválido traumatizado.

Como resultado, ele perdeu a grande ofensiva dos aliados, que culminou na batalha sangrenta entre os ingleses e os alemães ao longo de Somme, entre julho e setembro de 1916. Foi a maior e mais cruel batalha da guerra, na qual um milhão de homens morreram ou ficaram feridos. Ela não produziu o efeito que os aliados esperavam, embora tenha desferido um golpe significativo na moral dos soldados alemães.

Brookes lentamente se recuperou do trauma. "Ele ficou preso na guerra", diz seu filho Bobby hoje. Seu pai morreu em 1962, mas durante toda a vida falava com frequência "da guerra", como se tivesse havido apenas uma. Ele também era muito irritadiço e tinha nervos fracos, diz Una Barrie.

Seu diário apresentou à família a oportunidade de compartilhar os eventos traumáticos que Bernard Brookes nunca quis olhar de frente. O sobrinho de Barrie digitalizou o texto dos diários, suas filhas fizeram o design da capa e formataram o manuscrito, e seu genro escaneou fotos e cartões postais. "Foi um enorme projeto para a família", disse o marido de Una, John. Nos últimos anos, o casal fez várias viagens para os antigos campos de batalha na Bélgica e na França, onde o pai de Una correu pelas trincheiras e o tio de John morreu. A guerra aconteceu há quase 100 anos e ainda hoje ocupa espaço na vida dos Barrie.

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