Em poucos anos, o Estado Islâmico cresceu para se tornar o grupo jihadista mais temido do Oriente Médio. Em uma entrevista, Charles Lister, membro da Brookings Institution, descreveu a ascensão do EI no Iraque e na Síria e o que pode ser feito para impedi-la.
Spiegel Online: Como você explica a história do Estado Islâmico para as pessoas que estão surpresas com a ascensão aparentemente repentina do grupo ao poder?
Lister: Em 1999, o pai do EI, Abu Musab al-Zarqawi, estabeleceu uma base de treinamento para seu grupo no Afeganistão. Depois que os Estados Unidos invadiram o Afeganistão no final de 2011, o grupo fugiu através do Irã e foi parar no norte do Iraque. Em 2003, ele havia se tornado efetivamente o principal movimento de resistência jihadista do Iraque. Durante a ocupação do Iraque pelos EUA, Zarqawi ganhou nome para si mesmo e para seu grupo. Ele implementou a lei da sharia a um nível tão extremo que várias forças tribais se ergueram e expulsaram-no em um movimento chamado "Despertar". O grupo sofreu perdas significativas na época. Quando os EUA começaram a sua retirada, isso marcou o início de uma oportunidade para reavivar o grupo de Zarqawi. A partir de meados de 2009, ele começou a estabelecer uma espécie de influência velada. Ele lançou cada vez mais ataques contra as forças de segurança, em uma campanha de intimidação de extrema violência contra oficiais locais - dentro do Exército, da polícia e dos governos locais. A extensão da campanha criou uma influência significativa para o Estado Islâmico. Ela também ajuda a explicar por que o EI foi capaz de tomar Mosul tão rápido.
Spiegel Online: Você disse que o Estado Islâmico teve sucesso em fazer essencialmente tudo o que a Al Qaeda havia feito antes, só que melhor, com a exceção de realizar um ataque no exterior. Como os dois grupos se comparam?
Lister: Ambos buscam estabelecer um estado islâmico governado pela lei da sharia, mas têm estratégias muito diferentes. A Al Qaeda adotou uma abordagem bem mais paciente, de longo prazo, para implementar o controle social e a governança, focada em criar as condições sócio-políticas para essa realidade. O EI é bem menos paciente em relação a esse objetivo. Tanto em meados da década de 2000 quanto agora, o EI sempre buscou implantar imediatamente a lei da sharia e governar a população logo ao tomar controle de um território. A Síria oferece a melhor comparação em termos de estratégia. A Al-Nusra, afiliada síria da Al Qaeda, tem exercido uma influência extensa por todo o país em nível social, mas só recentemente eles escolheram implementar a sharia diretamente porque sentiam que as condições sociais não estavam prontas e que eles seriam rejeitados se as impusessem cedo demais. Em vez disso, eles consideraram o longo prazo.
Spiegel Online: Você diria que a Al Qaeda é de certa forma menos extrema que o EI?
Lister: Certamente. A Al Qaeda vem se comportando de forma relativamente moderada na Síria - pelo menos em comparação com o Estado Islâmico. Isso está começando a mudar, e a Al-Nusra está percebendo um ambiente mais hostil na Síria. Ela está começando a impor a sharia em cidades e vilas na província de Idlib, no nordeste, uma medida que não foi bem recebida pelos moradores locais. A medida é impulsionada por um sentimento, dentro da Al-Nusra, de que ela deve adquirir um controle firme sobre o território.
Spiegel Online: Teme-se que seus combatentes possam se juntar ao EI, em vez disso?
Lister: Sim. Os ganhos extraordinários do Estado Islâmico no Iraque e agora na Síria impuseram uma ameaça significativa para a Al-Nusra. O EI em um estado onde pode ser identificado e governado pela população, enquanto a Al-Nusra tem pouco a mostrar a favor de si mesma. A Al-Nusra está tentando provar a seus apoiadores que é capaz de governar e que, de fato, está fazendo isso.
Spiegel Online: O EI está mesmo tentando construir um Estado? Parece que ele está tentando substituir o governo, fornecendo serviços sociais como subsídios para alimentação e apoio para os idosos. Como o EI organiza isso e de onde vem o dinheiro para esses serviços?
Lister: O dinheiro é a chave. Sabe-se que o EI é quase que inteiramente autofinanciado. Seu dinheiro vem do controle e da venda ilícita de petróleo e gás, produtos agrícolas como trigo, o controle da água e eletricidade e de taxas impostas nas áreas que controla. Ele arrecada literalmente milhões de dólares por semana, e uma boa parte deste dinheiro é injetada nos serviços sociais. É simbólico o fato de que o EI esteja se apresentando exatamente como seu nome implica: como um Estado Islâmico. Para fazer isso, é preciso fornecer os mesmos serviços que um governo ofereceria. As pessoas podem manter seus empregos, mas tornam-se funcionárias do EI, como vimos quando ele tomou temporariamente o controle da hidrelétrica de Mosul. Ameaçando usar a força, e pagando os salários, eles conseguiram manter os profissionais em seus empregos tanto na Síria quanto no Iraque, desde garçons em restaurantes até funcionários da usina hidrelétrica.
Spiegel Online: Você afirmou que o líder do EI, Abu Baqr Baghdadi, tem mais legitimidade religiosa do que Osama bin Laden ou Zawahiri já tiveram.
Lister: Embora eles se apresentassem como especialistas em Islã, nem bin Laden nem Zawahiri tinham um treinamento religioso oficial. Sabe-se que Baghdadi tem um PhD em Teologia Islâmica e também foi clérigo em uma mesquita em sua cidade natal de Samara. Isso permitiu que ele adquirisse uma imagem de legitimidade como autoridade religiosa e chefe do Estado Islâmico. Se você olhar para os indivíduos imediatamente abaixo de Baghdadi, verá que a maioria é de militares e funcionários da inteligência, profissionais do Exército iraquiano. Isso por si só mostra a necessidade de ter uma figura religiosa no topo. Baghdadi não parece ser um indivíduo muito carismático, então claramente está nesta posição por causa de sua legitimidade religiosa.
Spiegel Online: Quem está encarregado da estratégia militar do grupo?
Lister: É difícil dizer com 100% de certeza, mas minha percepção é que as operações militares estão sendo coordenadas pelos subalternos imediatos de Baghdadi. Na maior parte, são indivíduos que serviram anteriormente como oficiais no Exército iraquiano ou no aparato de inteligência, então estão bem melhor equipados para planejar e implementar esta campanha bastante metodológica e profissional no Iraque e na Síria. É pouco provável que Baghdadi tenha sido o arquiteto disso.
Spiegel Online: Quantos combatentes o EI tem à sua disposição?
Lister: O EI tem cerca de 6.000 a 8.000 militantes na Síria e 15 mil no Iraque. O número no Iraque aumentou substancialmente porque eles cooptaram muitos homens locais armados sempre que entravam em uma cidade. Eles tinham a opção de se render e entregar suas armas ou de se juntar ao Estado Islâmico.
Spiegel Online: O EI parece ter uma estratégia de propaganda bastante sofisticada, incluindo o uso das mídias sociais. Quem você acha que está por trás disso?
Lister: É difícil saber, mas o uso dessas contas [nas mídias sociais] certamente parece uma estratégia coordenada. Nos últimos dias, todas as contas do Estado Islâmico na mídia sumiram da noite para o dia nos fusos horários europeus. O Twitter está retirando esses perfis todas as noites e, interessantemente, eles aparecem novamente no dia seguinte, sugerindo um esforço coordenado. Contudo, o EI não parece ter abandonado por completo o Twitter como uma plataforma oficial, embora a maior parte de seu conteúdo tenha sido transferido para outras plataformas menores de mídias sociais.
Spiegel Online: O EI tem tido algum sucesso em recrutar jihadistas na Europa?
Lister: Este conflito atraiu um número sem precedentes de combatentes estrangeiros, e muitos deles vêm da Europa. O EI agora tem cerca de 2.000 a 3.000 recrutas da Europa. Isso poderia ajudar se eles quisessem realizar ataques na Europa, mas não acredita que eles querem fazer isso nesse momento.
Spiegel Online: Em retrospectiva, o que poderia ter sido feito para impedir a ascensão do EI? A situação hoje seria diferente se o Ocidente tivesse armado os rebeldes moderados da Síria na eclosão da guerra civil três anos atrás?
Lister: Este é o tema de um imenso debate internacional agora. Acredito que o EI já havia começado a crescer no Iraque em meados de 2009, então no Iraque ele estaria perto do que é hoje mesmo que a revolução na Síria não tivesse acontecido. Pode-se com certeza debater se o fornecimento de armas para a oposição moderada na Síria em 2011 teria ajudado a evitar que o EI conquistasse alguns territórios na Síria - com a revolução e a guerra civil, o ambiente estava propício para isso. Ainda assim, um apoio anterior à oposição moderada poderia ter reduzido significativamente a capacidade de o EI operar na Síria.
Spiegel Online: Por que o presidente Obama autorizou ataques militares no Iraque, mas não na Síria?
Lister: Os EUA há muito sustentam a visão de que a situação na Síria é complexa demais em termos regionais para se envolverem. Os EUA e o Irã têm interesses opostos na Síria, no geral, enquanto que no Iraque, esses interesses coincidem em grande parte. Este é um motivo pelo qual os EUA sentem mais liberdade para intervir em algum nível no Iraque. Além disso, os EUA têm interesses na região curda do norte do Iraque e relações de longa data com os combatentes peshmerga do Governo Autônomo Curdo. Acho que não veremos uma expansão além dos ataques aéreos limitados que estamos vendo hoje e de uma presença extremamente modesta e mínima em solo para garantir a segurança dos refugiados. Contudo, não acho que seja suficiente pressionar o EI. Os ataques aéreos desaceleraram o avanço do grupo, mas não o enfraqueceu. Eles estão contra-atacando e provavelmente começarão a ameaçar Aleppo na Síria em breve.
Spiegel Online: Que tipo de relações o Ei tem com outros grupos jihadistas na região?
Lister: Elas são mínimas. O EI não tem aliados na Síria. Ele tem vários grupos que prometeram lealdade, mas em termos de grandes grupos jihadistas, ele tem poucas alianças. Ele tem muitas no Iraque, mas principalmente com grupos tribais e do partido Baath, não com militantes. Ao apresentar a si mesmo como superior à Al Qaeda, que tradicionalmente recebia o apoio de outros grupos jihadistas, o EI se isolou de estruturas jihadistas mais amplas.
Spiegel Online: Como será a cara do Estado Islâmico daqui a 12 meses? E o que isso significará para o Iraque e para a Síria?
Lister: Se os EUA não escalarem sua intervenção no Iraque, e as condições continuarem tal como estão, acredito que o EI vai expandir bastante o território sob seu controle na Síria. Entretanto, não vejo as relações do grupo com outros ativistas sunitas no Iraque como duradouras. Não são relações naturais e eles só compartilham o objetivo comum de derrubar o governo em Bagdá. Dentro de 12 meses, essas relações começarão a ruir, oferecendo uma oportunidade para um novo governo ou para que o Ocidente restabeleça algumas relações antigas que se formaram durante o Despertar. Nós já estamos vendo isso em pequeno escala na Síria e sinais disso no Iraque, onde pode ser reproduzido.
Spiegel Online: O que o Ocidente pode fazer para ajudar a impedir o avanço do Estado Islâmico?
Lister: Infelizmente, o EI teve espaço para crescer e se desenvolver a uma extensão tão grande que qualquer estratégia para combatê-lo levará anos e exigirá recursos muito significativos -- e não apenas militares. Ela precisará incluir medidas sociais, econômicas, religiosas, políticas e diplomáticas. Também precisamos encontrar uma forma de colocar fim ao conflito na Síria, que oferece um convite em aberto para um grupo como este. E no Iraque, o governo em Bagdá terá de começar a buscar o apoio das tribos sunitas e reincorporá-las no sistema.
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