À medida que o Exército ucraniano cerca Donetsk, os bombardeios à metrópole se tornam muito mais frequentes –e mortais. Muitos moradores partiram, mas aqueles que permanecem parecem não entender bem o conflito. A resignação é generalizada.
É um verniz fino que separa os hóspedes do Donetsk Park Hotel do mundo surreal do lado de fora. Dentro, nós assistimos a "BBC" em inglês e o noticiário da "ZDF" em alemão. O hotel possui eletricidade e internet, enquanto o ar-condicionado afasta o calor do verão.
Observadores da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) estão sentados no bar bebendo Lvivske, uma cerveja preta ucraniana, por 2,50 euros o quartilho, um preço que é ultrajante para Donetsk. Seus utilitários esportivos Toyota brancos reluzentes estão estacionados do lado de fora, aguardando para conduzi-los pela zona de guerra durante os momentos em que não é perigoso demais.
Esta quinta-feira não é um desses momentos. Pouco antes das 13h, ocorre uma chuva de granadas. O ouvido se acostuma rapidamente aos sons da guerra, aprendendo a distingui-los de modo um tanto confiável. Desta vez, as detonações são inacreditavelmente altas e estão muito próximas. Apenas três minutos após deixar o hotel, eu chego ao meio da miséria nesta cidade sitiada de Donetsk.
Desde meses atrás, quando a guerra no leste da Ucrânia teve início, eu visito regularmente Donetsk. Eu me recordo de quando os choques entre separatistas pró-Rússia e tropas ucranianas leais a Kiev começaram em Sloviansk, a 120 quilômetros daqui, em abril. Três pessoas morreram no combate inicial e eu fui aos seus funerais. Então voltei a Donetsk e pensei: o ódio militante nunca chegará a esta cidade próspera.
Mas agora a guerra chegou a Donetsk, avançando até a Uliza Artema, a principal via que passa pelo centro. Eu estou diante do nº 58a, onde um grande buraco pode ser visto na fachada no terceiro andar, e várias janelas estão estilhaçadas. A rua está coberta de cacos de vidro e o asfalto está repleto de dezenas de pequenos buracos abertos pelo estilhaço das granadas.
Três pessoas estão estiradas no chão no cruzamento 50 metros à frente. Uma mulher está sangrando profusamente na perna, enquanto dois homens estão à frente dela. Um já está morto. O outro morre pouco depois.
Um olhar suspeito
Há dois avisos postados na parede externa do 58a. Em um, a liderança rebelde pró-Rússia alerta as pessoas sobre o perigo de munição não detonada e explica o que fazer se uma for encontrada. O outro diz: "Nós cuidaremos de seu apartamento enquanto você estiver fora de Donetsk. Nós somos confiáveis e honestos. Yevgeny e Anna, imobiliária Século 21". Dois números de telefone estão listados.
Ambos os avisos são bem intencionados. Nenhum, entretanto, é particularmente de ajuda nesta guerra.
Os vizinhos agora chegam e colocam os feridos em dois carros –ambulâncias se tornaram uma raridade atualmente– e logo os primeiros rebeldes chegam ao local. Gesticulando agitadamente, eles fecham a rua, que de qualquer forma está praticamente vazia.
Eu sigo até a escadaria do 58a pisando em vidro e vejo uma mulher à porta do primeiro apartamento à direita, se esforçando para manter a compostura. Apenas três famílias ainda permanecem no prédio, ela me diz. Mas então ela me dá um olhar suspeito e fecha a porta.
Então a porta se abre de novo e ela me puxa para dentro, mas não antes de me interrogar sobre de onde eu venho. As cortinas são fechadas diante das janelas agora sem vidro e a sala está repleta de sacos, caixas e potes de comida –provisões em caso de necessidade. Diferente do Park Inn, não há eletricidade aqui e a cozinha está um caos. Um idoso segurando uma lanterna sai do quarto no fim do corredor.
Ele pede para ver minha identidade e cartões de visita. Ele diz: "Nós não sabemos quem virá ou o que acontecerá. E se podem querer se vingar". Por "eles", ele quer dizer os ucranianos leais ao governo em Kiev –aqueles que estão se preparando para tomar a cidade.
"Eles nunca quiseram conversar conosco", diz o homem, me conduzindo à sala de estar, se é que é possível chamá-la assim. Na sala se encontram todos os pertences da família, mas há um ponto livre no sofá, que o homem me oferece.
Uma conversa surreal
Ele então se apresenta: professor Vladimir Borisenko, do Departamento de Acionamento Elétrico e Instalação de Automação Industrial da Universidade Técnica de Donetsk. Ele também é vice-reitor da Faculdade Técnica Francesa e membro da Academia de Ciência Tecnológica da Ucrânia. Sua universidade fica localizada dobrando a esquina e tem 27 mil alunos. "Faculdade Francesa?" É um daqueles momentos nos quais fico particularmente ciente do absurdo da guerra. Sim, diz Borisenko, "nós ensinamos em francês". Ele também publica seus livros juntamente com cientistas franceses. Ele pega sua obra mais recente, que foi entregue a ele pela gráfica em Donetsk na semana passada, no meio da guerra. É escrita em russo e francês. Primeira edição: 100 exemplares.
Ele coloca o livro diante de mim e começa a folheá-lo, me mostrando os desenhos técnicos, as fotos coloridas e as tabelas, enquanto alterna russo e ucraniano e, finalmente, francês. Ele até mesmo mistura um pouco de alemão, produto do relacionamento de seu departamento com a Universidade Técnica de Magdeburgo.
É uma conversa surreal. Do lado de fora, a guerra prossegue, um projétil de artilharia acabou de atingir o prédio onde ele mora e sua mulher está doente de preocupação. Mas Borisenko está empolgado por seu livro ter sido publicado. O título na sobrecapa é impresso em ucraniano.
Não se trata de ninguém em Donetsk saber falar ucraniano. A maioria sabe. Mas Kiev fez pouco para encontrar um ponto em comum com a cidade e o governo ainda não encontrou o tom correto para lidar com o leste da Ucrânia. Outros –aqueles que por décadas veem a região como um domínio extraterritorial e que agora desejam controlá-la à força– tiraram proveito da situação.
Alexander Zakharchenko, o novo primeiro-ministro dos rebeldes, é um desses. Ele é major nas forças armadas e agora está sentado no prédio do governo da chamada República Popular de Donetsk.
Ele tomou recentemente o lugar de Alexander Borodai, um bacharel em filosofia em Moscou. Atualmente, muitos dos líderes políticos da República Popular estão sendo substituídos por soldados, um sinal de que os dias da república podem estar contados. Uma liderança firme agora se faz necessária.
Defesa da pátria russa?
O próprio Zakharchenko vem às reuniões de gabinete vestindo uniforme de camuflagem. Na semana passada, eu visitei uma dessas reuniões e o líder rebelde chegou com a Cruz de São Jorge 4ª Classe, uma condecoração militar russa, no peito. Normalmente, medalhas não costumam ser usadas em fardas de campo, mas Zakharchenko se orgulha da condecoração.
Mas Zakharchenko, um ucraniano, foi escolhido para o cargo para que o mundo não pudesse mais acusar a República Popular de Donetsk de ser dirigida por um fantoche de Moscou. Mas e a Cruz de São Jorge russa, concedida por feitos militares especiais em defesa da pátria russa?
O major trabalhava como eletricista em uma mina antes de ir para a academia de polícia. Ele fala do "regime fascista em Kiev" e diz que os soldados ucranianos deveriam ser "liquidados, por serem tão imprudentes no bombardeio à cidade". Não é o tipo de linguagem usada por Borisenko, mesmo que o professor também não seja um grande fã de Kiev. De fato, Borisenko nem mesmo disse que foi um projétil de artilharia ucraniano que atingiu seu prédio. Afinal, ninguém pode dizer quem disparou o projétil mortal. E a maioria nem mesmo se importa. Esse é o nível de resignação na qual a maioria aqui se encontra.
Eu transformei em hábito nunca usar táxis em cidades estrangeiras, preferindo bondes ou ônibus. Só assim eu posso ouvir a conversa das pessoas. Em Donetsk, a linha 8 do bonde liga as margens do centro da cidade ao bairro dos mineiros. Velhos bondes Tatra tchecos sacodem por quilômetros por campos não usados ou minúsculas colônias de horticultura até chegarem à próxima área residencial. São áreas cujo acesso só é possível por pequenas estradas e você vê coisas que nunca veria de um carro.
Em uma parada, alguém pichou a frase: "República Popular de Donetsk: Isso significa empobrecimento da Bacia de Donetsk". Uma mensagem na parada seguinte diz: "República Popular de Donetsk: Eles são assassinos". E então: "Respeito à Ucrânia". Essas mensagens também fazem parte do sentimento em Donetsk.
'Não nos esqueçam'
Não longe da sede do governo rebelde, um café fechou as portas na semana passada. Ele era um dos últimos que permaneciam abertos na cidade e seus proprietários colocaram um aviso na porta. Ele está escrito em ucraniano, o que, em Donetsk, é visto como sacrilégio ou como um protesto.
Meu ucraniano não é muito bom e peço ajuda a uma idosa de passagem. A mensagem pendurada na porta não está cheia das formulações habituais que indicam que o estabelecimento está fechando "devido à situação presente". Não, esta é completamente diferente.
"Por favor, nos desculpem por não podermos oferecer no momento nossos sorrisos, nossos doces e nossos famosos chocolates. A tragédia que se abateu sobre nossa amada cidade simplesmente se recusa a chegar ao fim. Nós veremos vocês de novo. Por favor, não nos esqueçam."
O café é uma filial da Fábrica de Chocolate Lviv, da cidade de mesmo nome no oeste da Ucrânia, uma região não amada pelos cidadãos de Donetsk e um local onde as pessoas falam ucraniano mais facilmente do que russo. Oficialmente, Lviv se encontra em território inimigo.
Mas em Donetsk, ninguém parece particularmente incomodado com o aviso e ninguém o arrancou. Será que o muito discutido conflito entre os russos, o Ocidente e os ucranianos do leste realmente não existe?
Quanto mais tempo permaneço nesta cidade, mais eu acredito que muito do que é dito sobre a guerra no leste da Ucrânia não é verdade. Outros importaram o conflito.
Na tarde de sexta-feira, chega a notícia de que os ucranianos teriam destruído blindados militares russos no lado ucraniano da fronteira. Moscou nega, dizendo que veículos militares nunca cruzaram para a Ucrânia. O jogo perigoso continua.
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