terça-feira, 24 de junho de 2014

Der Spiegel: A batalha pelo leste da Ucrânia torna-se mais sangrenta

Combatentes da região do Cáucaso da Rússia juntaram-se aos separatistas no leste da Ucrânia enquanto Kiev intensifica seus esforços para retomar o controle da região. Apenas 10 dias após a eleição presidencial, o conflito está se transformando rapidamente em uma guerra.

O homem de barba preta cheia parece satisfeito, sentado em sua cadeira de madeira. Ele está usando um boné de beisebol de listras brancas e sua Kalashnikov está apoiada na mesa ao lado. Os guerrilheiros se referem a ele respeitosamente como "Komandir". Seus gestos casuais determinam quem tem permissão para entrar na sede da administração regional de Donetsk. Em resposta a perguntas, o Komandir responde em russo, com um forte sotaque do Cáucaso.

O senhor é o chefe aqui? "Sim, aparentemente". Mas o senhor não é daqui? "Como você pode ver". Então, seu celular toca e ele fala em uma língua caucasiana. É tchetcheno? "Por que você quer saber, meu amigo?"

Depois de meses de ofuscação, o envolvimento direto da Rússia no leste da Ucrânia está se tornando visível. Na semana passada, ficou mais claro do que nunca que mercenários russos e tchetchenos estão apoiando os separatistas de Donetsk, lutando lado a lado com os ucranianos contra as tropas enviadas por Kiev. No início, a presença de caças russos era apenas um rumor, mas depois, na quinta-feira (05/6), uma coluna de veículos transportando 34 caixões cobertos com um pano vermelho deixou Donetsk em direção à fronteira. Dois terços dos cerca de 50 rebeldes que morreram em combates pesados há 10 dias eram cidadãos russos.

Alguns dos combatentes de Donetsk disseram abertamente aos jornalistas que eles vieram "por ordem de Kadyrov". O presidente tchetcheno Ramzan Kadyrov disse em sua página no Instagram apenas: "Se algum tchetcheno foi visto na zona de conflito, é uma questão pessoal dele".

No início da semana passada, parecia que as tropas de Kiev, depois de semanas de hesitação, finalmente estavam levando vantagem. O exército foi capaz de recuperar rapidamente o controle do aeroporto de Donetsk, que havia sido ocupado pelos separatistas. Mas o flanco oriental permaneceu aberto: na estrada da fronteira da Rússia para Donetsk, nem um único soldado ucraniano podia ser visto; nos limites da cidade, havia combatentes do batalhão separatista chamado Vostok, ou Leste, com seus Kalashnikovs em punho.

Conflito territorial sério
O batalhão agora é o principal poder de Donetsk. Talvez consista de apenas algumas centenas de combatentes, mas eles estão armados com armas antitanque, metralhadoras e armamento antiaéreo. E o que começou em abril como a ocupação do prédio do governo regional, desde então se tornou um conflito territorial sério.

Nesta semana, houve intensos combates no leste da Ucrânia, enquanto Kiev lançou uma ofensiva contra os rebeldes pró-russos na área de Sloviansk, ao norte de Donetsk, na terça-feira de manhã. A medida seguiu um ataque contra posições rebeldes em Luhansk, localizada perto da fronteira com a Rússia, na segunda-feira. Houve relatos de várias vítimas de ambos os lados.

"O que está acontecendo no leste é uma repetição da Revolução de Outubro", disse Yuri Lutsenko, assessor do presidente ucraniano eleito Petro Poroshenko, em Kiev, a 600 quilômetros de distância. "No início, as barricadas eram compostas de aventureiros, criminosos e desempregados, assim como em Petrogrado em 1917. No início, Viktor Yanukovych pagava a cada combatente US$ 400 por dia, assim como os generais alemães pagaram ao pessoal de Lênin. Mas agora, há mercenários e armas russas".

Lutsenko, 49 anos, foi um dos pioneiros da Revolução Laranja. No governo do primeiro-ministro Yulia Tymoshenko, foi duas vezes ministro do interior. Mas depois que Yanukovych chegou ao poder, Lutsenko foi preso por "abuso de poder" e libertado em abril de 2013 após pressão Europeia. Agora, ele está trabalhando para Poroshenko, que tomará posse no final desta semana. Acredita-se que Lutsenko vai ser aproveitado na direção do Conselho de Segurança Nacional da Ucrânia e ajudará a desenvolver o Partido de Solidariedade do Poroshenko –que tinha um papel mínimo na política ucraniana antes da eleição 25 de maio– para que se torne uma base sólida de poder.

Até lá, porém, ele está trabalhando nos escritórios do centro de estudos que ele fundou no bairro de Podil em Kiev. Na parede, uma pintura a óleo chamada "Pershy" mostra um ucraniano exausto, com os olhos fechados como se estivesse tentando reunir o que restava de sua força. Para Lutsenko, é simbólico das manifestações de Maidan, que levaram à derrubada de Yanukovych em fevereiro.

"Uma guerra europeia"
"Fique de olho no que está acontecendo agora no leste", diz Lutsenko. "Há muito que os separatistas deixaram de reivindicar o federalismo ou um maior status para a língua russa. Eles querem dividir a fortuna dos oligarcas entre eles. Neste caso, a do bilionário Rinat Akhmetov". Lutsenko pega um pedaço de papel e desenha os contornos da Rússia e da Ucrânia. "Putin não quer a região do Donbass. Ele tem outros objetivos. Primeiro, ele quer semear anarquia na região, que é extremamente importante para a nossa economia. Sem ela, os ucranianos nunca voltarão a andar com seus próprios pés", diz Lutsenko. "E em segundo lugar, ele quer que os separatistas ganhem tanta independência que possam vetar qualquer decisão proveniente de Kiev. Isso paralisaria o Estado e significaria um governo de fato a partir de Moscou".

Lutsenko se inclina para trás, respira fundo e diz: "Não temos escolha. Se abandonarmos Donetsk, Putin em breve estará em Odessa. Ele está no processo de estabelecer um cordão sanitário em torno da Rússia. A Ucrânia hoje é como foi a Polônia, uma zona de tampão para a Europa. Isso não é uma guerra local, é uma guerra europeia".

E, no entanto, apesar do uso de artilharia e ataques aéreos, os militares de Kiev não parecem conseguir recuperar o controle das regiões separatistas. De acordo com Lutsenko, cerca de 12.000 militantes pró-russos estão combatendo as forças do governo na área de Donetsk, com um adicional de 5.000 na região de Luhansk. E estes homens estão mais bem organizados e armados do que o exército, o serviço secreto e a polícia. Na quinta-feira da semana passada, os rebeldes conseguiram abater um helicóptero de transporte Guarda Nacional, matando pelo menos 12 pessoas.

O exército não tem dinheiro ou combustível, diz Lutsenko, acrescentando que nem sequer existe como uma força de combate. Eles precisam de helicópteros para a luta contra os separatistas, mas os generais venderam a maioria deles para a África. Os poucos helicópteros russos que ainda possuem são mal armados e podem ser abatido como se fossem balões, diz ele. "Nós nem sequer temos granadas de efeito moral para avançar contra os combatentes da cidade -não podemos entrar em Sloviansk com tanques". Ele acrescenta que a Polônia, pelo menos, enviou um suprimento de granadas. A Guarda Nacional da Ucrânia disse na quarta-feira que tinha abandonado uma batalha em Luhansk após ficar sem munição depois de um tiroteio de 10 horas contra os militantes pró-russos.

A eleição de 25 de maio, no entanto, trouxe alguma mudança: Petro Poroshenko foi eleito para a presidência com um resultado surpreendentemente forte, de 54,7%. Até mesmo sua rival Tymoshenko recuou. Ela tinha planejado enviar 50.000 seguidores às ruas para contestar os resultados, mas com uma diferença de 42 pontos percentuais entre seu resultado e o dele, acusá-lo de fraude eleitoral pareceria absurdo.

Tarefas enormes
Além disso, o resultado da eleição também refuta a alegação de Moscou de que o país está irremediavelmente dividido. Mesmo em regiões como a Odessa ou Zaporizhia, lugares onde os moradores tendem a ser a favor da Rússia, 40% dos votos foram para Poroshenko.

Mas as tarefas diante do novo presidente são imensas. Não há um corpo policial, nenhuma autoridade fiscal, nem controle eficaz das fronteiras ou um verdadeiro poder judiciário. O ultimato de gás natural emitido pela Rússia expirou, embora a companhia de gás estatal russa Gazprom na segunda-feira tenha dado a Kiev mais seis dias para as negociações em curso em Berlim. E Maidan tem que ser limpa e o Parlamento dissolvido. Na quarta-feira, o presidente eleito reuniu-se com o presidente dos EUA, Barack Obama, em Varsóvia, e planeja voar para eventos de comemoração do Dia D na Normandia na sexta-feira. Sua posse está prevista para sábado. E então ele está pensando em voar para a região de Donetsk, onde a operação militar está em andamento.

"Poroshenko quer guiá-los de forma mais eficaz", diz seu assessor Lutsenko. "Ele quer integrar a Guarda Nacional, os serviços secretos e o exército em uma única cadeia de comando". O presidente também está esperando receber armas, combustível e comida barata dos americanos, em um novo "Lend-Lease", em referência à ajuda que o presidente dos EUA Franklin D. Roosevelt forneceu aos aliados na Segunda Guerra Mundial.

Mas vai demorar um pouco até os planos tomarem forma, e é por isso que Poroshenko está atualmente dependendo de Rinat Akhmetov, que emprega cerca de 300.000 pessoas, a maioria delas no leste da Ucrânia. O oligarca já disse que seus trabalhadores formariam uma força de defesa civil desarmada, mas Akhmetov permanece em Kiev, com medo de voltar a Donetsk.

Sem futuro
Lá, o poder está deitado na rua, como diz um ditado russo. A "República Popular de Donetsk" está fazendo o que pode para tomar esse poder. A sede de 11 andares do governo regional, que se tornou um abrigo para ambos os criminosos e os sem-teto desde a sua ocupação, foi "limpa" pela milícia Vostok na última quinta-feira, como disse o autoproclamado "premier" Alexander Borodai. No mesmo dia, tratores limparam as barricadas em frente à estrutura. O momento de revolução caótica já passou, diz Borodai. "A partir de hoje, esta é a sede oficial do governo da República Popular de Donetsk."

A maioria das lojas no centro da cidade permaneceu fechada nos dias seguintes à batalha pelo aeroporto, com grande parte da população chocada com a violência. O referendo realizado em maio enviou uma mensagem clara para a "junta fascista em Kiev", pelo menos de acordo com a propaganda russa. Mas agora, uma guerra está sendo travada em sua cidade.

As pessoas que se opõem à transformação de sua cidade natal em uma república independente só se dispõem a falar em privado "como nos tempos soviéticos", diz Alexander, um eletricista de 30 anos de idade. Poucos dias antes, ele viu um caminhão cheio de "caucasianos barbudos" passando pela cidade. "Por que esta gentalha está aqui?", ele se pergunta. Pai de dois filhos, Alexander diz que não vê um futuro para sua família na "República Popular de Donetsk".

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