sexta-feira, 7 de março de 2014

Que lições podemos tirar da crise da Ucrânia?

Que lições podemos tirar até esse momento da impressionante crise na Ucrânia, que por tanto tempo foi o "fantasma da Europa", para usar uma expressão do ex-dissidente Leonid Plyushch?

1. A diplomacia russa é um tremendo rolo compressor que avança incessantemente, no estilo Gromyko dos anos 1970, na direção de objetivos com grande persistência. Moscou quer a criação de uma ordem pan-europeia revisada, afastando os americanos. Isso não vem nem de ontem nem de Putin, mas sim da visão que já era tida pela URSS no tempo dos acordos de Helsinque de 1975. Todos se lembram de que o objetivo da Otan era, segundo seu primeiro secretário-geral, "manter os americanos do lado de dentro, os russos do lado de fora e os alemães embaixo."

Em 2008, o jovem presidente russo Dmitri Medvedev havia inaugurado seu mandato propondo aos ocidentais um acordo de segurança coletiva na Europa saído diretamente da naftalina da era Brejnev. Esse texto proibia a cada Estado europeu de se juntar a uma aliança ou entidade internacional caso essa escolha entrasse em conflito com os interesses de um outro Estado europeu. O revisionismo opressivo de Vladimir Putin constitui um grande desafio para os europeus hoje.

2. Com razão ou não, Moscou sentiu no presidente Obama fraquezas que podem ter incentivado o líder do Kremlin a empregar o método da força bruta contra o vizinho eslavo. Para explicar essa percepção, podemos citar o desinteresse pessoal de Barack Obama pela Europa, o "reset" (retomada da relação bilateral com Moscou) pouco convincente, e o "redirecionamento" para a Ásia que marcava uma retirada estratégica americana do Velho Continente paralelamente aos desengajamentos no Afeganistão e no Iraque. Seriam oportunidades se abrindo aos olhos de Moscou.

As hesitações de Obama quanto à Síria, no início de setembro de 2013, que desistiu de defender sua "linha vermelha" quanto às armas químicas, puderam ser interpretadas como covardia, episódio rapidamente explorado por Moscou. O efeito dessas sequências sobre Vladimir Putin teria sido suficientemente analisado? Seis meses mais tarde, vemos a relação de forças na Crimeia.

Barack Obama havia guardado de sua experiência como senador do Congresso americano a imagem de uma Rússia muito diminuída. Sua única viagem a esse país antes de se tornar presidente fora para visitar locais de armazenamento de materiais nucleares, e ele voltou chocado de lá pelo estado de decrepitude das instalações. Para Obama, a Rússia foi nos últimos anos uma interlocutora difícil em vários assuntos, mas ela certamente não era considerada uma ameaça.

3. A questão das prioridades ocidentais, portanto, foi colocada em segundo plano. A obsessão antiterrorista desde 2001, as poderosas redes de vigilância da NSA e de seus aliados empregadas contra a Al-Qaeda fizeram perder de vista ameaças mais "clássicas", e portanto, consideradas coisas do passado nessa Europa banhada por um espírito kantiano e pelo princípio da regra normativa.

Foi redescoberta, a duas horas de voo de Paris, a capacidade de um Estado - a Rússia - de empregar a força contra a soberania de um outro Estado em nome da proteção de seus cidadãos ou de russófonos. Após a queda da URSS, e até 1994, a CIA havia avaliado que existia um risco de conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia, mais precisamente na Crimeia. Com o tempo, esse cenário passou a parecer pura ficção. O despertar foi brutal.

Acostumados com a espionagem russa relançada em todas suas formas, os ocidentais foram incapazes, em tempos recentes, de compreender exatamente a atitude de Putin quanto à Ucrânia, ou de antecipar sua obsessão sobre essa questão. Angela Merkel o teria descrito recentemente como "desconectado da realidade."

4. A ingenuidade na análise de alguns europeus agora equivale a um erro estratégico. Em Paris, não faltaram sicofantas do sistema Putin desde que ele chegou ao poder, em uma mistura de visão fantasiosa de uma aliança franco-russa romântica e redes de dinheiro e de negócios, até o domínio militar.

A venda para a Rússia do Mistral, navio indicado para invadir um território como a Crimeia, é o exemplo manifesto de uma política míope. Os italianos, com a ENI, e sobretudo os alemães, com seu poderoso lobby industrial, foram os arquitetos de uma dependência europeia dos hidrocarbonetos russos.

A Europa também ignorou o passado ao virar com pressa a página da invasão parcial da Geórgia em 2008, após uma mediação que não resolveu nenhum dos problemas de fundo. O desprezo de Putin era visível durante seu discurso recente para a televisão, largado em uma poltrona, com as pernas afastadas, dando sua visão de um Ocidente decadente. Agora será preciso definir quais podem ser os instrumentos europeus de uma relação lúcida e construída junto com uma Rússia cuja impulsividade não pode mais ser descartada.

5. As turbulências às quais temos assistido lembram que a democratização do espaço europeu não foi completa. A Ucrânia foi no século 20 uma terra de sangue, concentrando em seu território os crimes mais terríveis: a fome e as repressões stalinistas dos anos 1930, e depois o "Holocausto por balas". Em 1986, o desastre nuclear de Tchernobyl provocou um abalo decisivo do sistema soviético. Os acontecimentos da Praça da Independência em Kiev, onde dezenas de pessoas morreram exigindo o fim de um governo cleptocrata e a aproximação com a União Europeia, podem marcar uma forma de reconquista democrática da Europa.

Depois de 1945, após as transições da Grécia e da Espanha, após a cesura de 1989, após a decomposição violenta da Iugoslávia, após as "revoluções coloridas", a cartografia europeia política está novamente em movimento. Existem milhares de incertezas, mas conseguir ter a dimensão dessa tendência é entender o pavor de um Vladimir Putin, que sabe que nada mais será como antes se a Ucrânia se democratizar de maneira estável.

A Ucrânia é a etapa crucial na direção de uma Europa democrática desde o Atlântico até os Montes Urais, uma ameaça ao coração do sistema putiniano. O acompanhamento desse movimento que o historiador Francis Fukuyama descreveu com sutileza voltou a se tornar o grande assunto de todos. A União Europeia tiraria dali motivo para se reencantar.

2 comentários:

  1. Caro Michel

    De onde saiu este texto? Meio estranho, porque não fala hora nenhuma nas arruaças americanas que desaguaram nisto que aí está.

    Grato Michel.

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    1. Sei que sua pergunta não foi direcionada a mim, mas o texto não está preocupado em descrever "arruaças americanas", e sim a expor o fato de que os EUA: 1- numa linguagem bem simples, "se distraíram" tanto com outras questões geopolíticas que deixaram um certo vácuo em termos de "presença estratégica" na Europa; 2- não são mais os mesmos das últimas décadas, sobretudo no governo Obama, que tem adotado uma postura "fraca" diante de diversos embates internacionais (ex: não cumpriu sequer sua ameaça de bombardear a Síria em caso de uso de armas químicas, muito menos se engajou de forma substancial, visível no conflito).

      Eu particularmente, tenho ficado boquiaberto com a omissão dos EUA (governo Obama) em questões particularmente sensíveis à sua posição no cenário político mundial, não parecem nem sombra da "superpotência" algum tempo atrás. Creio que isso ficou patente na crise Ucraniana. Obama não foi sequer capaz de se expressar, ainda que verbalmente, à altura das ações de Vladimir Putin, que rapidamente colocou, segundo algumas fontes, milhares de soldados na Crimeia, e vai mesmo anexá-la.

      Hillary Clinton disse que Putin, ao anexar a Crimeia, estava agindo como Hitler quando este anexava diversos territórios e países inteiros sob o fundamento de proteger pessoas de sangue alemão. Estando ela certa ou não, eu ouso dizer que Obama, por sua vez, está agindo como Chamberlain, Roosevelt etc, que assistiram tudo com o rabo entre as pernas...

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