terça-feira, 27 de agosto de 2013

Conheça a história do Coronel Harley Alves que foi sequestrado na Bósnia em 1995

Entrevista com o Coronel Harley Alves, militar sequestrado na Bósnia por militares Sérvios, em 1995, quando atuava como observador militar da ONU.

Coronel Harley Alves (centro)
Pergunta: Coronel Harley, o Sr pode nos contar um pouco sobre sua missão como Observador Militar da ONU e a experiência pessoal como refém?
Cel Harley: Essa experiência aconteceu em 1995, na Bósnia-Herzergovina, território seccionário da ex-Iugoslávia, em um período de ressurgimento das operações de paz das Nações Unidas, como consequência do fim da Guerra Fria.

Éramos cerca de 30 observadores militares brasileiros, das três Forças Armadas, juntamente com tropas e civis do mundo inteiro, no meio de um dos conflitos mais intensos ocorridos em solo europeu, desde a II Guerra Mundial.

Pergunta: Como era atuar como soldado pela paz na Bósnia?
Cel Harley: Era desafiador. A missão da ONU, chamada UNPROFOR, tinha altos e baixos: em determinado tempo e lugar éramos respeitados pelas partes em guerra e úteis à população sofrida; em outro, éramos hostilizados por todos. De maneira geral, nos superávamos dia-a-dia, entusiasmados pela riqueza da experiência humana e militar.

Nosso capacete era azul, mas a Bandeira do Brasil no uniforme era nossa maior motivação e uma chave para corações e mentes. Como observadores militares atuávamos desarmados, em equipes multinacionais, cumprindo missões de negociação com as partes, patrulhas e monitoramento dos acordos de cessar-fogo e suas violações.

Pergunta: E o que veio a dar errado na missão, que o levou à situação de refém?
Cel Harley: A imparcialidade da ONU na mediação do conflito foi comprometida pelo jogo político das potências; os acordos fracassaram, a guerra voltou e com ela as vítimas civis, principalmente. A solução foi então recorrer aos bombardeios da OTAN para impor a paz.

A essa época, eu e mais alguns brasileiros atuávamos na cidade de Sarajevo, um dos centros de gravidade do conflito, cujo flagelo da população era transmitido em tempo real pela mídia internacional. Foi justamente a partir daí que a OTAN determinou uma zona de exclusão de 20 km para retirada do armamento pesado das tropas em guerra, o que deveria ser cumprido por ambos os lados, segundo um ultimato de 24 horas, sob pena de ataques aéreos lançados a partir da base aérea de Aviano, na Itália.

Os bósnios-muçulmanos cumpriram de imediato, mas a reação dos sérvios foi receber o ultimato como uma declaração de guerra contra a autoproclamada República Sérvia da Bósnia e reconhecer todo componente da ONU no seu território como inimigo. Resolveram, então, aprisionar os observadores militares, utilizando alguns como escudos-humanos, diante de prováveis alvos estratégicos dos ataques aéreos da OTAN, previstos para o dia seguinte.

Pergunta: Nessa experiência como refém e escudo-humano, quais foram os momentos mais tensos? O Sr sentiu medo? O que lhe passava pela cabeça?
Cel Harley: Sem dúvida, os momentos mais tensos foram os do aprisionamento e os dias que se seguiram, em torno do cumprimento do ultimato. Enquanto alguns mercenários juntamente com uma patrulha sérvia irrompiam em nossa casa, avisamos ao QG de Sarajevo pelo rádio, e ao comandante sérvio do batalhão local, Coronel Petrovic. Desconhecendo aquela ação em seu território, o Comandante questionou-os, até ser informado que obedeciam a ordens superiores. Fomos levados para uma base, onde ficamos aprisionados até o dia seguinte, o dia do ultimato. Dali, ainda pela manhã, fui levado com outro observador polonês para uma base de comando e controle nas montanhas de Sarajevo, onde fomos deixados os dois, algemados cada um em uma grande antena, esperando a hora-H do ultimato, ao meio-dia, enquanto nos sobrevoavam, soltando “flares” antimísseis, os aviões F-14 Tomcat da OTAN, aguardando a ordem de ataque que nunca veio.

Sim, senti medo várias vezes durante os 23 dias de prisão, mas não naqueles longos minutos na montanha, de muita meditação, paz e dignidade. O bombardeio, enfim, não aconteceu; e os dias que se seguiram foram cheios de acontecimentos, acompanhando o desenvolvimento do conflito, tentando negociar nossa situação de prisioneiros-de-guerra, buscando contato com a família, minha maior preocupação.

Pergunta: Como tudo terminou? Qual a avaliação que o Sr faz daquela Missão de Paz?
Cel Harley: A Crise dos Reféns, como ficou conhecido o episódio, selou o fim da Missão e a entrega da responsabilidade das operações internacionais nos Bálcãs à OTAN. Após nossa libertação e retraimento da ONU, uma Força Multinacional de Estabilização, com efetivo de 22 mil, atacou os sérvios por terra e ar e os obrigou a capitular sob o acordo de Dayton, assinado por Bill Clinton e Slobodan Milosevic, Presidente Sérvio, que se suicidou posteriormente em uma cela do Tribunal de Haia.

O fracasso na Bósnia mudou a história da ONU, que aperfeiçoou sua doutrina, amargando os erros cometidos. Soube-se depois que durante nosso cativeiro as forças sérvias executavam mais de 6.000 bósnios, na localidade de Srebrenica, uma área sob proteção da ONU, vizinha a Sarajevo, jogando os corpos em valas comuns. A partir desses eventos, a ONU criou e passou a praticar até hoje o conceito de Operações Robustas, onde as forças têm equipamentos e armamentos mais eficazes e regras de engajamento mais fortes. Fico feliz pelo Brasil estar presente naquele momento, e continuar contribuindo por operações mais bem sucedidas, como é o caso no Haiti, onde fomos nós que fizemos doutrina.

Pergunta: Qual a lição ou lições aprendidas o Sr traz dessa experiência, neste Dia do Soldado?
Cel Harley: Em primeiro lugar, que a realidade dura dos conflitos regionais permanecerá, e que a segurança coletiva internacional é uma responsabilidade de todos, apesar de critérios políticos muitas vezes mal aplicados. Nesse sentido, o Exército do Século XXI deve possuir capacidade expedicionária, adestramento e praticar seus valores.

A experiência real em zona de conflito transforma o soldado para melhor. Eu me lembro com orgulho, em um ano na Bósnia, a atitude homogênea de todo nosso grupo de observadores militares brasileiros: compromisso, camaradagem, profissionalismo, humanidade, solidariedade, espírito de sacrifício, coragem. Adjetivos que se repetem a cada missão em que o soldado brasileiro é chamado; como vimos há pouco naqueles que pereceram no Haiti; nos soldados de engenharia, cavando nos escombros do terremoto com as próprias mãos, em busca de sobreviventes.

Autoconfiança em nós mesmos, como soldados, é a grande lição que fica em todos nós, a partir de nossas experiências internacionais em zona de conflito. Só nos conhecemos verdadeiramente, quando nos colocamos à prova. Se me cabe resumir em uma palavra o aprendizado daquele ano na ex-Iugoslávia, eu diria “Orgulho”. Orgulho de pertencer àquele grupo, orgulho de ser soldado do Brasil, soldado do Exército Brasileiro!

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