Ao que consta, os generais removeram o presidente democraticamente eleito, colocaram-no na prisão, prenderam seus aliados e suspenderam a Constituição. Veículos do Exército e soldados da tropa de choque percorreram as ruas, enquanto caças rugiam pelos céus.
Mas terá sido um golpe militar? Para a Casa Branca e o novo governo egípcio, essa é a pergunta de US$ 1,5 bilhão (em torno de R$ 3 bilhões).
O governo do presidente Barack Obama revisou na quinta-feira (4) as implicações da deposição do presidente Mohamed Mursi para a ajuda americana ao Egito. Sob a lei dos Estados Unidos, o governo não tem escolha senão cortar a assistência financeira ao país se ficar determinado que houve um golpe militar. As autoridades egípcias rapidamente argumentaram que o que aconteceu não foi um golpe de Estado, e sim um levante popular.
Por enquanto, Obama parece se satisfazer em aguardar o debate se desenrolar, na esperança de usar a possibilidade de um corte na ajuda influenciar a situação, sem de fato puxar o gatilho. Em sua única declaração pública desde a queda de Mursi, Obama evitou cuidadosamente usar a palavra "golpe", empregada por alguns em Washington, apesar de sua descrição dos eventos certamente soar como um golpe. Entretanto, seus assessores deixaram claro que sua resposta ficaria mais séria, dependendo do caminho que o exército egípcio tomasse a partir de agora.
A questão toca no cerne da forma como Obama lida com o Egito. Há muito que o Egito depende da ajuda de Washington, sendo um dos que mais recebe assistência norte-americana, e Obama, como seus antecessores, tem sido relutante em fechar a torneira, para manter o país comprometido com o seu acordo de paz duradouro com Israel. Enquanto a Casa Branca duvidava que a tomada de poder por parte dos militares seria rapidamente revertida, ela esperava usar sua influência para evitar atos de violência.
Alguns especialistas, entretanto, disseram que o corte da ajuda deveria ser invocado imediatamente. "A lei existe por uma razão", disse Tamara Cofman Wittes, diretora do Centro Saban para Política do Oriente Médio da Brookings Institution e ex-funcionária do Departamento de Estado de Obama. "Está lá para incentivar os governos impostos por golpe militar a retornarem para um regime democrático o mais rápido possível".
No Cairo, os adversários de Mursi argumentam que sua remoção não representou um golpe militar porque só ocorreu depois que milhares de manifestantes tomaram as ruas -um argumento que foi rapidamente adotado pelo governo. "Não é um golpe de Estado, porque os militares não tomaram o poder", disse o embaixador egípcio em Washington, Mohamed Tawfik, à revista "Foreign Policy". "Os militares não iniciaram o movimento, foi uma revolta popular. Os militares entraram em cena a fim de evitar a violência".
Entretanto, as medidas do governo de prender dezenas de membros da Irmandade Muçulmana podem levar alguns a questionarem esse argumento.
"O mundo inteiro está chamando isso de golpe de Estado, menos o governo americano, por quê?", perguntou Haddara Wael, assessor de Mursi. As "acrobacias verbais" do governo negam o óbvio, acrescentou. "O que é um golpe de Estado? Vamos entrar em uma discussão orwelliana aqui".
Um monte de dinheiro está em jogo. Desde 1979, o Egito tem sido o segundo maior destino da ajuda americana, depois de Israel. O orçamento de Obama para o ano fiscal que começa no dia 1º de outubro dedica US$1,55 bilhão para o Egito, com US$ 1,3 bilhão para os militares e US$ 250 milhões como ajuda econômica.
A Lei de Ajuda Externa diz que não pode haver outro tipo de ajuda senão para a promoção da democracia em "países cujo chefe de governo eleito foi deposto por golpe militar", ou onde "os militares têm um papel decisivo" em um golpe. A lei não permite que o presidente perdoe dependendo do caso, e diz que a ajuda não pode ser restaurada até a posse de "um governo democraticamente eleito".
Como uma questão prática, haveria pouco impacto imediato se Obama concluísse que a crise constituiu um golpe de Estado, porque Washington já desembolsou a ajuda militar deste ano, em maio, e provavelmente não faria outros pagamentos antes do próximo inverno ou primavera. Contudo, complicaria um relacionamento há muito baseado no fluxo de dinheiro americano.
"A lei por seus termos dita uma coisa, e a política sensata dita que não devemos fazer isso", disse Howard Berman, democrata que foi presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara. "É por isso que cabe ao Poder Executivo decidir se é um golpe ou não. De acordo com o significado literal, houve um golpe de Estado". Mas no que diz respeito às verbas, ele acrescentou: "Eu não cortaria", e ele pediu ao governo para "ser mais assertivo" no uso da ajuda como forma de pressionar as autoridades egípcias a protegerem ou restabelecerem as liberdades.
Washington cortou sua assistência em eventos anteriores em que os militares derrubaram governos civis na Costa do Marfim, República Central Africana, Fiji e, em certa altura, no Paquistão. Mais recentemente, e mais relevante, o governo Obama recusou-se a ver um golpe quando os militares egípcios ajudaram a derrubar o antigo presidente Hosni Mubarak, em 2011, um movimento que também teve amplo apoio popular.
Mas Mubarak nunca tinha sido uma escolha genuinamente livre, enquanto a eleição subsequente de Mursi, apesar de incomodar a muitos em Washington por causa de sua afiliação à Irmandade Muçulmana, foi considerada democrática, mesmo que algumas de suas ações no cargo não tenham sido.
"Muitas vezes, os golpes militares são impulsionados pela mobilização popular e recebidos com aclamação popular, mas isso não muda o que são", disse Marc Lynch, acadêmico do Oriente Médio na Universidade George Washington. "É possível, é claro, que este seja o tipo de golpe que promove um recomeço na arena política e repõe rapidamente um governo civil. Os militares não podem deixar de ter aprendido as lições de 2011, quando seu governo saiu-se tão mal. Mas ainda assim é um golpe".
O processo de determinar se um golpe é um golpe geralmente cai nas mãos do consultor jurídico do Departamento de Estado, e isso pode levar semanas ou até mesmo, como no caso de Honduras em 2009, meses. "O Departamento de Estado pode ser capaz de evitar as sanções, ao considerar que um governo civil ainda está no controle, mesmo que pareça um exagero", disse por e-mail John B. Bellinger III, que realizou esse tipo de trabalho no governo de George W. Bush.
Enquanto isso, é possível que a Casa Branca não sofra sob muita pressão do Congresso para cortar a assistência. O senador Patrick J. Leahy, democrata de Vermont e presidente de um subcomitê de ajuda externa, disse que iria "rever a futura ajuda para o governo egípcio", mas outros líderes do Congresso expressaram pouco apetite para tanto, em parte porque a Irmandade Muçulmana não é nenhuma favorita em Washington.
"A nossa cooperação de longa data com o Egito, que é essencial para a estabilidade na região, deve continuar a ser uma prioridade", disse em um comunicado o senador Bob Corker de Tennessee, o republicano mais importante no Comitê de Relações Exteriores.
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