Heba Morayef votou em Mohammed Mursi no ano passado. O candidato da Irmandade Muçulmana era uma opção incomum para uma mulher egípcia liberal, diretora do escritório da Human Rights Watch no Cairo, mas ela detestava a velha guarda de Hosni Mubarak, queria mudanças e acreditava que Mursi poderia ser inclusivo.
"Eu me senti extremamente em conflito na última semana", me disse Morayef. "Eu não apoio golpes militares. Mas para mim, como eleitora, Mursi traiu a confiança que os egípcios pró-reforma depositaram nele. Isso é o que levou 14 milhões de pessoas às ruas em 30 de junho. Não se tratava de incompetência, mas sim da agenda autoritária, da Irmandade tentando consolidar seu controle a todo custo."
Mursi não entendeu a Primavera Árabe. O levante que colocou fim a décadas de ditadura e levou à primeira eleição presidencial livre e justa do Egito no ano passado tratava do direito de votar. Mas em um nível mais profundo, tratava-se de empoderamento pessoal, uma exigência de ingresso no mundo moderno, de viver em uma sociedade aberta governada pela lei, não por um capricho despótico.
Em uma nação muçulmana, onde vivem cerca de 25% de árabes, também era exigido do Islã político que rejeitasse o autoritarismo religioso, respeitasse as diferenças e defendesse a cidadania baseada em direitos iguais a todos.
Em vez disso, Mursi se colocou acima da Justiça em novembro passado, aprovou à força uma Constituição falha, permitiu que os capangas da Irmandade espancassem os oponentes liberais, instalou comparsas no Ministério da Informação, aumentou as perseguições por blasfêmia, rendeu-se a uma mentalidade de cerco, perdeu o controle de uma economia arruinada e presidiu uma crescente violência sectária. Para a Irmandade, o movimento islamita mais proeminente da região, a mudança repentina de fora da lei perseguida a detentora do poder em um país chave do mundo árabe provou ser um salto alto demais.
Como Mohamed ElBaradei, o diplomata ganhador do Prêmio Nobel, colocou em um recente artigo na revista "Foreign Policy": "O levante não visava mudar pessoas, mas mudar nossa mentalidade. O que vemos agora, entretanto, é apenas uma mudança de rostos, com o mesmo modo de pensar da era Mubarak –só que agora com uma cobertura religiosa no bolo."
Esse foi o fracasso central de Mursi. Ele sucumbiu ao autoritarismo islâmico em um país cuja revolução foi diversa e exigia inclusividade. A lição para a região é fundamental. O Egito é seu experimento mais importante na combinação do Islã com modernidade democrática, a única forma a longo prazo de superar a violência sectária que ocorre na Síria e em outros lugares.
ElBaradei é um modernizador liberal. Mas ele apareceu ao lado do general Abdul-Fattah el-Sisi enquanto a tomada de poder era anunciada, uma que derrubou um presidente escolhido em uma eleição livre, suspendeu a Constituição e instalou um governo interino. Apesar dos esforços de todos os generais em insistir que eles não têm interesse na política e evitavam a palavra "golpe", tratava-se de um golpe. Ele colocou os militares de novo à frente –um precedente ruim e um golpe à democracia civil. A presença de ElBaradei na coreografia desse ato –como o conflito mental de Morayef– demonstra quão desesperada se tornou a situação do Egito.
"A rejeição foi muito além da comunidade liberal", disse Morayef. "A vasta maioria das mulheres nas manifestações usava véu. Muçulmanos praticantes, egípcios não ocidentalizados, estavam dizendo não ao Islã político e ao autoritarismo religioso. Nós nunca vimos nada assim no mundo árabe."
Evitar um golpe teria sido muito melhor. Se Mursi tivesse convocado novas eleições quando 14 milhões de egípcios foram às ruas, teria sido possível. Ele não o fez, provando novamente sua insensibilidade. Assim, mesmo em conflito, eu digo que ele tinha que cair.
Agora tudo dependerá do exército ser capaz de manter o espírito da revolução. Isso exige que ninguém sequestre as aspirações modernizadoras do Egito –nem a Irmandade, nem os militares, nem os liberais não liberais que gostam apenas da democracia se ela apoiar seus candidatos, não os capangas da velha guarda.
É fundamental que a violência polarizadora seja evitada e que a Irmandade continue exercendo um papel importante na política do país (forçá-la à clandestinidade seria a morte da democracia). Novas eleições devem ser realizadas o mais breve possível e o exército deve manter seu compromisso de "permanecer fora da política". Uma nova Constituição deve ser elaborada. Os liberais do Egito, que provaram ser um grupo briguento, devem superar a mesquinhez e se unir em um grupo político crível. Sem uma gestão eficaz da economia que restaure a ordem, todas as tentativas de estabelecer um consenso e recolocar o Egito no curso fracassarão.
Tudo isso representa uma tarefa imensa. Mas o Egito, o Estado mais antigo do mundo e não um país árabe desenhado em um mapa por burocratas britânicos com má digestão, conta com reservas imensas de talento e sabedoria. Não é uma tarefa impossível: a juventude inspiradora do Egito mostrou sua determinação.
Todo o furor no Egito nos últimos dois anos antes era desviado para fora do país contra inimigos imaginários ou conspirações. Foi um desperdício colossal. Ele agora está focado onde deve –no fracasso árabe em produzir a nova "mentalidade" sobre a qual ElBaradei escreveu.
O exército não pode proporcionar isso, mas –possivelmente– ainda pode ser sua incubadora. O autoritarismo islamita, assim como a ditadura secular que veio antes dele, não pode.
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