Oito anos atrás, ou na época em que o Hezbollah ainda gostava de mim, quis entrevistar um dos líderes da organização em Beirute e encontrei-me preso nas engrenagens burocráticas bem lubrificadas da organização.
Primeiro, o "Departamento de Relações com a Mídia" me fez preencher um formulário. Ele incluía todas as perguntas habituais, tais como há quanto tempo eu era jornalista, onde e o quê eu tinha estudado, seguidas por um pedido de "por favor, forneça detalhes exatos" sobre nacionalidade e filiação religiosa, bem como a do meu pai e minha mãe, seguidos da minha data e local de nascimento. Então vinha a pergunta um pouco mais incomum, se eu já havia visitado a "entidade sionista".
É claro, eu sabia que esse era o termo que o Hezbollah, o "Partido de Deus" radical xiita, utiliza para descrever Israel. Mas não estava tão claro se eu deveria responder à pergunta com sinceridade. No final, decidi não mentir sobre minhas visitas a Jerusalém. Eu também havia publicado um livro sobre Israel no ano anterior, e ele também tinha sido editado em árabe. Assim, se o Hezbollah sentisse que este "contato com o inimigo" era motivo suficiente para rejeitar meu pedido para entrevistar um de seus líderes, que fosse assim.
Vinte e quatro horas mais tarde, recebi um telefonema dizendo para eu me apresentar à sede da organização no bairro de Haret Hreik, um subúrbio de Beirute, no final da tarde. Quando cheguei, fui cumprimentado por uma jovem vestindo jeans e uma blusa de gola alta. Ela me disse que o Hezbollah havia analisado minhas informações, e que meu livro sobre a Mossad, a agência de inteligência estrangeira de Israel, continha "alguns pontos verdadeiros com uma extensa propaganda inimiga". Eu não tive a chance de perguntar exatamente que pontos eram esses.
Então, as coisas ficaram sérias. A mulher de relações públicas colocou uma abaya preta, a bata que vai até o chão usada por muitas mulheres árabes, sobre sua roupa ocidental. Em seguida, fomos escoltados para o escritório de Mahmud Kumati, um dos vice-chefes do Hezbollah. Só então me ocorreu que eu não tinha mencionado meu livro no formulário.
A entrevista transcorreu com relativamente poucas surpresas. "Os judeus" haviam ocupado terras árabes e precisavam ser derrotados militarmente, disse Kumati. No entanto, ele continuou, o Hezbollah não tinha conhecimento de ter cometido qualquer ato terrorista contra civis - uma afirmação ousada dado os ataques que havia perpetrado na Argentina, em meados da década de 1990. Ele também afirmou que a organização luta apenas "em nossa própria terra e por nossa própria terra", o que aparentemente inclui todo o estado de Israel. O Hezbollah, acrescentou ele, não é apenas uma milícia, mas também uma organização social e um partido político normal que obedece o processo democrático. Ele disse que Irã e a Síria apoiam o Hezbollah, mas que não sabia nada sobre entregas de armas desses dois estados.
A Spiegel publicou trechos desta entrevista no verão de 2005. Quatro meses depois, recebi um cartão de Ano Novo do "Departamento de Relaçãoes com a Mídia do Hezbollah". No janeiro seguinte, recebi novamente seus votos pelo correio. Eu me gabei do cartão, sentindo-me privilegiado --isto é, até que conheci Neil MacFarquhar, que havia sido correspondente do New York Times no Oriente Médio por vários anos. MacFarquhar mostrou-me silenciosamente seu próprio cartão do Hezbollah, que ele havia recebido com uma saudação personalizada por seu aniversário.
Anos se passaram, e nunca recebi uma saudação de aniversário do Hezbollah (talvez eu tivesse escrito minha data de nascimento de forma ilegível no formulário). Mas os cartões de Ano Novo continuaram a chegar como um relógio --pelo menos até eu terminar na lista negra do Hezbollah.
Esquadrão de atiradores
Isso aconteceu depois que Rafik Hariri, primeiro-ministro sunita do Líbano durante muitos anos, foi assassinado em fevereiro de 2005. A pedido do Parlamento libanês, um comitê independente das Organização das Nações Unidas iniciou uma investigação.
Na primavera de 2009, fontes envolvidas no tribunal do Líbano em Haia me forneceram documentos mostrando que os juízes tinham provas do envolvimento do Hezbollah no assassinato, e que quatro membros da organização seriam indiciados. A Spiegel publicou esta informação, incluindo os nomes dos supostos terroristas. O Hezbollah negou veementemente as acusações.
Mais de um ano depois, no entanto, o Tribunal Penal Internacional confirmou o que a Spiegel havia publicado, considerando o Hezbollah culpado e emitindo mandados para a prisão dos quatro membros do alto escalão da organização citados no artigo da Spiegel como principais suspeitos.
O líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, anunciou num discurso transmitido pela televisão que prestaria queixa por difamação no Líbano contra mim, como autor, e contra os editores da Spiegel. E, claro, acrescentou, não entregaria os acusados --que eram "combatentes louváveis"-- para o tribunal. Na verdade, ele ameaçou cortar a mão de quem tentasse fazer isso.
Quando janeiro chegou, não recebi o cartão de Ano Novo habitual do Hezbollah.
O anúncio de Nasrallah tornou impossível que eu viajasse para o Líbano e transformou Beirute, uma das minhas cidades favoritas, numa área fora dos meus limites. Na verdade, uma agência de inteligência ocidental diz saber da existência de um esquadrão de atiradores esperando por mim caso eu apareça por lá. Isso me parece um pouco improvável. Mas, considerando outros atos sangrentos de vingança do grupo contra "traidores" no passado, não pode ser totalmente descartado.
Envolvimento arriscado na Síria
O Hezbollah enfrenta questões existenciais nos dias de hoje, principalmente por causa do conflito na Síria. Parece que, no princípio, o Hezbollah de fato tentou se manter fora do conflito entre os rebeldes e o governo do presidente Bashar Assad. A luta armada da milícia xiita radical supostamente teria como objetivo atacar apenas "ocupantes sionistas", como foi enfatizado durante a minha entrevista na sede do Hezbollah em Beirute. Nasrallah indubitavelmente sabia que o preço de lutar contra um adversário árabe num país árabe seria uma perda de apoio tanto para o Hezbollah quanto para ele próprio. Mas, como seus aliados na Síria continuavam perdendo terreno, Nasrallah finalmente decidiu enviar seus combatentes do Hezbollah para o conflito.
Foi só no final de maio de 2013 que o Hezbollah admitiu publicamente estar lutando ao lado de Assad. Na batalha pela cidade estrategicamente importante de Qusair, combatentes do Hezbollah chegaram a assumir o comando geral da operação, colaborando com a vitória das forças de Assad.
A máquina de relações públicas do Hezbollah também entrou em jogo neste caso, organizando viagens para a frente de batalha para ônibus cheios de jornalistas. Esses repórteres foram até levados a algumas centenas de metros dentro do território sírio, onde foram autorizados a gravar suas matérias com colunas de fumaça ao fundo. O Süddeutsche Zeitung, um dos principais jornais alemães, apelidou este show altamente televisivo, porém macabro, de "Hezbollywood".
Problemas em várias frentes
Ainda assim, a situação geral do Hezbollah não é nenhum motivo de piada. Nos últimos meses, a força aérea israelense bombardeou várias entregas de armas modernas destinadas aos combatentes na região ao longo da fronteira sírio-libanesa, e os rebeldes sírios dispararam foguetes contra alvos individuais no sul de Beirute, em retaliação pelo envolvimento do Hezbollah em Qusair. Além disso, o ressentimento está crescendo entre os habitantes do Líbano, onde o Hezbollah há muito tempo não era tão impopular.
Além disso, esta queda trará um constrangimento maior, quando o tribunal em Haia começar a julgar "in absentia" os quatro membros do Hezbollah indiciados.
E, em 22 de julho, a União Europeia acrescentou a ala militar do Hezbollah à sua lista de organizações terroristas, congelando as contas bancárias de seus integrantes. Isso veio em resposta a um atentado suicida em Burgas, na Bulgária, em junho passado, que matou seis turistas israelenses. Um rastro claro de provas levou até a sede do Hezbollah em Beirute.
Uma cidade como nenhuma outra
Ainda assim, houve um lado positivo para campanha de relações públicas do Hezbollah: presumivelmente, para evitar dar a impressão de que considera algumas pessoas culpadas por associação, integrantes sob o comando de Nasrallah isentaram expressamente meu colega, o correspondente da Spiegel Online no Oriente Médio Ulrike Putz, de um processo criminal.
Meus amigos e conhecidos dizem que Beirute ainda é a cidade mais livre e alegre do Oriente Médio, um lugar onde todas as noites, quando o calor do verão se ameniza, pessoas jovens e bonitas passeiam pelas avenidas da praia --hora do show no Levante.
Esta é a Beirute da qual eu me lembro de minha primeira visita há 45 anos, quando coloquei minha mochila nas costas e embarquei num ônibus de Damasco com destino a Beirute, via Baalbek. Naquela época, o Líbano era conhecido como a "Suíça do Oriente Médio".
Na minha última visita, em 2009, Beirute ainda era uma cidade como nenhuma outra. Jovens cristãs em jeans apertados, saltos altos e tops minúsculos flertavam com garotos de praia bronzeados, enquanto as jovens sunitas passeavam vestidas de forma mais recatada, com lenços de cabeça coloridos enrolados casualmente e jeans de grife. Aqui e ali havia apenas algumas mulheres cobertas da cabeça aos pés, às vezes ridicularizadas como "ninjas" ou "objetos negros em movimento" por rapazes desrespeitosos, mas geralmente respeitadas por todos.
A guerra da Síria invadirá o Líbano?
Em seus melhores momentos, esta cidade é um lugar de eterna avant-garde, unindo sem esfroço aquilo que é aparentemente irreconciliável. De fato, Beirute é uma bastarda de sangue azul, filha de pais ocidentais e mães árabes, viciada no prazer, suscetível à catástrofe --mas resiliente, extremamente resiliente.
Em minha última visita, parecia que o perigo de ver uma repetição do pior dos tempos havia sido evitado. Mas, agora, ninguém mais pode ter tanta certeza. Parece que os combates na Síria poderiam muito bem se espalhar para o Líbano, onde um Hezbollah fortemente armado funciona como um estado imprevisível dentro do Estado.
Quem sabe, talvez este ano eu receba um cartão de aniversário do escritório de relações com a mídia do Hezbollah, informando-me de que o meu "caso" não está mais sendo processado e trazendo um convite para o Líbano.
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