quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Sírios voltam para Aleppo, cidade controlada por rebeldes e bombardeada por Assad


Depois de quase dois anos de guerra civil, grande parte da Síria não está mais sob controle do autocrata Bashar Assad, inclusive metade de Aleppo. Apesar dos bombardeios aéreos e dos ataques de foguetes, os moradores estão fazendo o que podem para estabelecer uma sociedade civil operante. Uma justiça incipiente resolve as disputas por aluguel enquanto os islâmicos fornecem farinha e pão.

Aleppo é uma cidade desalentadora, especialmente na metade leste, que é controlada pelos rebeldes e bombardeada pelo regime. Nesta vasta e sombria extensão urbana, arruinada pela guerra, as ruas estão cheias de silhuetas quebradas de prédios meio desmoronados e quartos rachados ao meio, entremeadas por fachadas intactas.

Muitos bairros só têm eletricidade intermitente e raramente têm água potável. O preço do gás de cozinha subiu 17 vezes. Em um parque da cidade, vê-se uma senhora usando uma espátula para cortar pedaços de madeira de um toco de árvore. Crianças vasculham o lixo em busca de garrafas plásticas.

Ainda assim, as pessoas estão voltando para essa cidade arrasada pela guerra, que já teve mais de 2 milhões de habitantes. Dezenas de milhares voltaram porque a Turquia recusou-se a aceitar mais refugiados, ou porque exauriram sua poupança ou porque preferem morar em casa, esperando que a próxima bomba caia em outro lugar, em vez de morar em tendas encharcadas no frio. À noite, grupos de pessoas se reúnem em torno de fogueiras nas calçadas e caminhonetes com metralhadoras montadas na traseira patrulham as ruas, enquanto se ouve ao longe dos bombardeios das forças aéreas sírias.

Não há uma pessoa no comando aqui, não há ninguém para evitar que as milícias rivais transformem a cidade em uma segunda Mogadício, mas até agora isso não aconteceu. As lojas e restaurantes ficam abertos até à noite e há menos ataques e sequestros do que havia pouco antes da guerra.

Há também algo de inquietante nessa normalidade, como se a cidade fosse um monstro sonolento que pudesse despertar a qualquer momento.

Reduzida a ruínas
Dois anos depois das primeiras manifestações por mais liberdade, a rebelião contra a ditadura de Bashar Al-Assad tornou-se uma guerra que está destruindo a Síria de duas formas: reduzindo as cidades a ruínas –e ameaçando destruir a coexistência pacífica dos grupos religiosos e étnicos por muitas décadas.

No final de fevereiro, a Organização das Nações Unidas registrou 900.000 refugiados nos países vizinhos à Síria e outros milhares fogem pelas fronteiras a cada dia. Mais do que isso, 2,5 milhões de pessoas foram desabrigadas dentro do país. Doenças como tifo, hepatite e leishmaniose, uma infecção de pele também conhecida como "bolha de Aleppo", estão se espalhando pelo país. Cerca de 70.000 pessoas morreram no conflito, e outras 100 ou 200 perdem a vida a cada dia. Houve mais mortes entre civis do que entre combatentes rebeldes ou soldados do regime.

Dois anos é um tempo muito longo para se passar na linha de tiro de um regime que, desde o início deste ano, além de tanques e caças, agora recorreu ao lançamento de mísseis Scud contra as partes do país que estão tentando escapar de sua opressão. Os mísseis em geral são lançados a partir de Damasco, Eles têm notavelmente pouca precisão e muitas vezes meramente deixam para trás enormes crateras em áreas não habitadas. Na segunda-feira dia 18, porém, um Scud voltou a atingir Aleppo, destruindo prédios semiabandonados e matando uma dezena de pessoas. Este foi seguido na sexta-feira por outro ataque de míssil que matou pelo menos 12 civis.

Dois anos é um tempo perigosamente longo quando o resto do mundo não consegue se decidir como lidar com o horror crescente deste conflito. Enquanto o ministro de relações exteriores da Alemanha, Guido Westerwelle, pede contenção, Moscou está fornecendo armas ao regime, o Irã envia Guardas Revolucionários de elite em apoio a Assad e um clérigo iraniano está publicamente referindo-se a Síria como a "35ª província do Irã".

Dado que centenas de milhares de pessoas participaram das maiores manifestações contra Assad em Hama e nos subúrbios de Damasco em 2011, é justo afirmar que a maioria dos sírios preferiria viver em um sistema livre e democrático sob um Estado de direito.

Enorme e complexa
Mas como a sociedade civil vai sobreviver diante da violência excessiva dos governantes do país? Cada ataque aéreo, cada massacre pela famosa milícia Shabiha de Assad leva mais pessoas a resistirem, inclusive aquelas que não tomaram as ruas para se manifestar em favor da democracia e da liberdade, mas que agora estão pegando em armas para vingar seus mortos. Elas estão inchando as fileiras dos rebeldes. Mas também estão mudando a natureza de seus objetivos: os que só estão interessados em vingança, em geral, ligam menos para o que acontece depois que Assad for derrubado.

Aleppo é um bom indicador da devastação, em todos os aspectos. Esta é uma cidade enorme e complexa: não foi a população local que protestou e pegou em armas em primeiro lugar, como em Homs e Deir Al-Zor. Apenas os estudantes e advogados se rebelaram, mas na maioria, a cidade permanecia calma, mesmo depois das pessoas nas cercanias já terem mudado de lado. Os clérigos leais ao regime, empresários e clãs mafiosos locais ajudaram a manter esse centro financeiro e comercial firmemente sob o controle de Assad.

Foram os rebeldes do campo, das cidades e aldeias vizinhas que lideraram o ataque em julho do ano passado e, em semanas, capturaram metade da cidade –ou a liberaram, dependendo do ponto de vista. Assim, querendo ou não participar das batalhas, os moradores desta metade da cidade tornaram-se vítimas dos contra-ataques do regime, que usou artilharia, tanques e aviões para arrasar quarteirões inteiros.  A fronteira entre o mundo dos rebeldes e a antiga Aleppo corre em ziguezague do Sudeste ao Norte –e continua quase sem mudanças há meses.

Mas como esta metade da cidade funciona e o que a mantém unida? Rafat Rifai, um dos organizadores do conselho transicional da cidade, lista os agentes mais atuantes na seção liberada: os rebeldes da Brigada Tawhid, o conselho da cidade, a Associação de Advogados da Síria Livre (Fsla), os tribunais, a associação de médicos e os islâmicos da Frente Al-Nusra.

De acordo com Rifai, pode-se dizer que não há ninguém no comando: "O que mantém Aleppo unida é o contrato social entre seus moradores  –o respeito mútuo e a capacidade de diálogo –ao menos por enquanto", diz ele.

Em busca de justiça
Equipes de eletricistas remendam constantemente as linhas de energia rompidas. Hospitais subterrâneos continuam em operação, mantêm bancos de sangue e fazem campanhas de vacinação. O Estado não fornece mais farinha, mas ainda se assam entre 30 e 70 toneladas de pão por dia. Esses são os primeiros sinais de um governo civil operante.

Marwan Kaïdi foi um dos primeiros juízes em Aleppo a mudar de lado. Nos últimos quatro meses, presidiu o tribunal no distrito de Ansari, um trabalho que parece mais fácil do que é. "Primeiro tivemos que conseguir que todas as unidades rebeldes nos reconhecessem como corpo legal para impedi-los de prenderem-se uns aos outros quando brigam", disse ele. "Queremos salvar o Estado –mas com que sistema de justiça?"

Eles estão improvisando uma mistura de normas jurídicas defendidas pela Liga Árabe e os preceitos da lei islâmica. "Mas nós dependemos primariamente da mediação", admite. "Não podemos colocar um ladrão atrás das grades por três anos!"

Quando perguntamos se havia algum processo em curso que pessoas de fora pudessem observar, ele deu de ombros e olhou seus papéis. Depois acenou e guiou o caminho em meio ao prédio lotado até um pequeno escritório, onde um juiz civil barbado e um juiz de sharia sem barba, um secretário, o querelante e seu irmão estavam sentados em cadeiras coloridas de camping em torno de uma mesa.

Surpreendentemente, o caso tem a ver com uma briga por causa do aluguel –em uma cidade onde se ouve tiroteios a cada poucos minutos e onde os corpos dos mortos descem pelos rios todos os dias da zona ocupada pelo regime. Uma briga por aluguel.

O querelante havia alugado um apartamento em seu prédio até 31 de dezembro de 2012. Semanas antes disso, porém, o locatário simplesmente desapareceu sem pagar –mas tampouco levou seus bens. O senhorio poderia simplesmente arrombar o apartamento e mudar a chave, ao menos nesses tempos de guerra e agitação. "Mas isso poderia ser desastroso", diz um dos dois juízes. "Depois, o locatário poderá dizer que seus bens foram roubados e vir atrás do senhorio com uma arma. Temos que manter a ordem, especialmente agora!"

Grandes pilhas de lixo
O juiz então diz que decidiram dar um prazo de sete dias, pregando uma advertência na porta do apartamento. Quando o prazo expirar, o apartamento será aberto na presença de dois homens da polícia revolucionária e todos os pertences do locatário desaparecido serão registrados.

Mais cedo, o juiz Kaïdi disse que manter a ordem pública é um problema menor do que o número crescente de devotos dos radicais. "Além de combater Assad, eles querem combater os infiéis", alega. "Mas aos seus olhos, isso inclui 99% das pessoas aqui".

Jabhat Al-Nusra, o grupo radical vago mas proeminente ao qual Kaïdi se refere, é significativamente menos impressionante militarmente em Aleppo do que o grupo rebelde principal, bastante organizado, o Exército da Síria Livre (FSA). A Frente Al-Nusra tem entre 500 e 1.000 combatentes, comparados com os 20.000 do FSA. A popularidade do grupo radical se baseia em dinheiro, não em vitórias militares.

O grupo islâmico tem dinheiro suficiente para comprar centenas de toneladas de farinha de um comandante local do FSA –o suficiente para abastecer as padarias de Aleppo por semanas. Eles também têm dinheiro para distribuir gás e diesel pelo preço antigo subsidiado e, no início de fevereiro, para fazer o sistema de coleta de lixo voltar a funcionar, que desde então removeu enormes pilhas de lixo e destroços.

Ninguém sabe de onde vem o dinheiro, nem mesmo um antigo membro da organização, que diz que "provavelmente vem da Arábia Saudita ou do Kuwait", onde os pregadores coletam grandes quantidades de doações. Mas nem mesmo o próprio pessoal da organização sabe exatamente de onde vem o dinheiro, nem quem lidera a Frente Al-Nusra: "Os dois emires em Aleppo mudam de nome constantemente e ninguém sabe se tem alguém acima deles", diz ele.

O antigo membro do grupo revela que a maior parte dos oficiais vem do círculo de islamistas sírios que foram combater na jihad no Iraque em 2003, foram presos ao voltarem e depois liberados novamente em março de 2011. Os emires não falam com jornalistas.

A Al-Nusra tem grupos em outras cidades também, mas Aleppo é seu reduto –para o desapontamento dos comandantes do FSA que esperaram um longo tempo por ajuda do Ocidente que nunca chegou. "Tivemos várias reuniões com os americanos", disse Abu Jumaa, segundo mais alto oficial na Brigada Tawhid, a maior unidade rebelde de Aleppo, com mais de 8.000 homens.

"O que o Ocidente quer?"

"Eles nos disseram que devíamos formar uma liderança militar conjunta e reconhecer a coalizão da oposição síria no exílio. Fizemos isso", observa. "Depois disseram que iam nos fornecer armas, mas não forneceram, nem mesmo equipamento civil. Eles não querem que a gente ganhe. Talvez eles não queiram que percamos tampouco –mas qual é o objetivo deles?"

Jumaa, que tem 50 e muitos anos e foi proprietário de uma fábrica antes da revolução, confirma as experiências dos outros comandantes: "Os americanos alegam que querem deter os radicais", diz ele. "Mas enquanto eles recebem dinheiro da Arábia Saudita e de outros lugares, eles se tornam mais fortes, e nós, mais fracos". Ele salienta que esta não é uma questão ideológica. Quem paga manda.

No dia 7 de fevereiro de 2013, em uma audiência no Senado em Washington, o secretário de defesa Leon Panetta, em vias de ser substituído, deu uma explicação para os muitos meses de inação política. Ele disse que defendia o envio de assistência militar para os grupos rebeldes, assim como a secretária de Estado Hillary Clinton e o diretor da CIA na época, David Petraeus. Mas que o presidente Barack Obama, no final, decidiu contra.

Washington aparentemente prefere negociar com Moscou. Mas isso não levará a uma interrupção nas batalhas ou colocará fim à guerra. Os dois lados na Síria estão exaustos. Os rebeldes não têm armas, enquanto o regime de Assad está ficando sem tropas. A situação está evoluindo lenta e gradativamente em uma direção: aldeia por aldeia, distrito por distrito, posto militar por posto militar, os rebeldes estão ganhando controle do país e apreendendo armas.

Em vez da guerrilha, os rebeldes estão usando seu controle de grandes áreas do campo para fazer táticas de cerco quase medievais, cortando rotas de fornecimento e matando as tropas de fome. Elas não sofrem com falta de munição, mas estão ficando sem pão. Por enquanto, nenhuma capital de província caiu, mas Idlib, Deir Al-Zor, Rakka e Aleppo estão cercadas.

"O que o Ocidente quer?", pergunta o comandante rebelde Juamma. Sem esperar a resposta, ele diz: "Neste momento, eles meramente estão prolongando o banho de sangue. Mas por quê?"

Um comentário:

  1. os caras n conseguem terreno e ficam mentindo nos jornais, tosco.

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