Le Monde: Milícia leal ao governo de Assad dissemina terror na Síria

Veículos da Shabiha, milícia leal ao regime do ditador sírio Bashar al-Assad são atacados na Síria

A história dos shabiha, milícia de reserva do exército sírio, se confunde com a da família Assad, no poder em Damasco desde 1970. Ligados ao regime de maneira orgânica, esses valentões são a face abominável da ditatura baathista e a expressão de seus instintos profundos. “Os shabihas são o regime despido”, escreve o ensaísta sírio Yassin al-Haj Saleh em um estudo que dedicou a esse fenômeno.

Esses bandos começaram a saquear a Síria no final dos anos 1970, quando o país era dominado por Hafez al-Assad, pai do atual chefe do Estado. Na época, os shabiha eram gângsteres especializados em extorsões e tráfico de drogas. Em sua maior parte originados da comunidade alauíta (exceto pela província de Aleppo, onde são sunitas), assim como o clã Assad, os shabiha gozavam de uma impunidade quase total.

Seus protetores se chamam Rifaat e Jamil al-Assad, os dois terríveis irmãos de Hafez. A invasão do Líbano pelo exército sírio, em 1976, permitiu que esse submundo fosse promovido, expandindo lucrativos negócios de contrabando, principalmente no domínio de eletrônicos.

Seus líderes ficaram famosos por circularem a bordo de grandes Mercedes, em cujos porta-malas eles amontoavam suas pilhagens, um modelo de forma alongada, apelidado de “shabah” (fantasma), que teria sido a origem do nome “shabiha”. A menos que esse termo venha de “ashbah” (fantasmas no plural), uma alusão ao caráter turvo da atividade dos shabiha.

Os anos 1980 foram sua era de ouro. Eles exploraram sistematicamente a faixa costeira, o coração da terra alauíta. Rifaat al-Assad, que possui um porto privado em Latakia, os abastecia com armas através das brigadas de defesa, sua unidade paramilitar. “O simples uso do sotaque alauíta bastava para inspirar o terror”, escreve Yasshin al-Haj Saleh.

Esse período terminou no começo dos anos 1990, quando o filho mais velho de Hafez, Bassel, que se preparava para suceder seu pai, iniciou uma campanha de repressão aos shabiha. Sua morte em um acidente de carro em 1994 interrompeu a retomada de controle, que foi reiniciada por seu irmão Bashar, quando este chegou ao poder em 2000. Era difícil conciliar o modernismo demonstrado pelo novo presidente e sua política de atração de capitais estrangeiros com os delitos cometidos pelos bandidos de Tartus e Latakia. Para não desaparecer, eles precisavam ser discretos.

Foi preciso esperar a deflagração da revolta anti-Assad, em março de 2011, para que os shabiha voltassem a andar de cabeça erguida. Mas os tempos eram outros. A casa Assad passou a ser ameaçada e a máfia alauíta teve de assumir a linha de frente. Sob supervisão de Faouaz e Munther al-Assad (os filhos de Jamil), primos do presidente sírio, os gângsteres da costa se transformaram em executores dos negócios sujos do regime.

Veneno do confessionalismo
Seus músculos salientes, cobertos de tatuagens em homenagem ao clã Assad, são alugados a 2 mil liras (cerca de R$63) por dia. “É o proletariado da repressão”, escreve Yassin al-Haj Saleh. Eles atiram nos minaretes, atiçando o medo dos sunitas entre os alauítas, atacam os opositores a golpes de faca, sabre ou kalashnikovs.

Esses brutamontes fanáticos, reconhecíveis por suas camisetas pretas e cabeças raspadas, são encarregados de injetar o veneno do confessionalismo no movimento de protestos, de reerguer o muro do medo – do pavor, no caso sírio - , demolido pelos manifestantes. Duas ordens seguidas ao pé da letra no massacre de Houla – 108 mortos no mês de maio - , um vilarejo sunita onde os shabiha eram suspeitos de terem auxiliado o exército regular, degolando com armas brancas ou executando com uma bala na nuca dezenas de civis.

Será que o destino reservado ao clã Berri, a família de Aleppo a quem o regime sírio havia terceirizado a repressão e cujos líderes foram sumariamente executados na terça-feira, 31 de julho, terá alguma consequência sobre esse fenômeno? Alguns shabihas poderiam acreditar que estão sendo muito mal pagos, considerando os riscos, e voltar para a montanha alauíta. Mas a maior parte deles está com as mãos sujas demais de sangue para voltar atrás. Os “Frankensteins” da família Assad estão lutando pela sobrevivência.