domingo, 26 de agosto de 2012

Brasil em Armas: 'Um companheiro me disse: 'Não vou morrer mais'. Tínhamos sobrevivido'


Depoimento: Jacob Gorender, jornalista e historiador, lutou na Itália

Jacob Gorender, jornalista e historiador, lutou na Itália
Meu pai era um homem muito pobre e minha mãe também. Eles se uniram já um tanto idosos, com 33 anos e tiveram cinco filhos. Hoje são vivos eu e um segundo. Os outros três faleceram... Meu pai era um homem muito pobre e, apesar de judeu, não sabia fazer dinheiro. Eu passei uma situação muito difícil na infância e na adolescência. Foi difícil estudar. Eu não tinha roupa para frequentar o ginásio. Usava um tênis de última qualidade, furado às vezes. Eu botava um papelão em cima do buraco para poder andar. Comecei a me estabilizar quando me tornei jornalista e passei a ganhar algum dinheiro. Com isso a minha situação começou a ficar estável, pois eu já não dependia da família. Eu devia ter então uns 17 anos. Eu estava no ginásio da Bahia, depois eu sai e fui aluno da Faculdade de Direito até o quarto ano. Aí eu fui para a FEB, fui soldado da FEB e a minha vida deslanchou.

Eu me incorporei em Salvador como voluntário. É preciso compreender o contexto daquela época. Os submarinos alemães torpedearam navios mercantes brasileiros e centenas de brasileiros morreram nesses naufrágios. Isso gerou uma indignação muito grande e eu participei das manifestações em Salvador, onde eu residia. Manifestações contra o Eixo e pela declaração de guerra, o que acabou ocorrendo. Getúlio Vargas, presidente do Brasil, acabou declarando guerra. Aí abriu-se o voluntariado em vários lugares do Brasil. O que ocorreu, um episódio curioso, o general que comandava a região de Salvador – eu me lembro o nome dele: general Demerval Peixoto – fez o seguinte desafio: "Os estudantes que pediam guerra, declaração de guerra tem agora a oportunidade de se apresentar como voluntários". Eu considerei isso como um desafio pessoal e resolvi me apresentar. Fui ao quartel-general e me apresentei e acabei aceito. Já em Salvador fui incorporado e fui transferido para São Paulo, onde fiz algum treinamento. Depois fui transferido para a Itália.

Na época, eu já era do Partido Comunista. Ele estava meio desagregado naquela época por causa da repressão. Militei com Mário Alves – ele não foi incorporado porque não tinha condições físicas (Alves foi um importante dirigente do PCB e acabou assassinado durante o regime militar). O fato de eu ser comunista – o prestígio da União Soviética, que estava em guerra contra os nazistas – pesou na minha resolução. Quando chegamos à Itália já havia brasileiros em combate. Eu era da companhia de transmissões do 1º Regimento de Infantaria. Nosso comandante era o coronel Caiado de Castro, mais tarde chefe do gabinete militar de Getúlio Vargas. Eu era um simples soldado. Não fui mais do que isso. Era do pelotão de transmissões. Particularmente a minha tarefa e a da equipe a qual eu pertenci era de zelar pelos fios de transmissão, que, como o front estava estabilizado, eram rompidos por granadas. Às vezes éramos obrigados a sair da cama, nós estávamos na casa da camponeses italianos, para consertar o fio. Isso era uma tarefa penosa e perigosa, pois ficávamos expostos à agressividade da artilharia nazista.

O fato de ser judeu não tinha para mim nada de especial. Eu convivi como soldado igual aos outros. Não teve influência nem positiva nem negativa. Mas eu tinha uma noção de que se eu caísse nas mãos dos nazistas, eles facilmente saberiam que eu era judeu, circunciso, e eu estaria perdido. Não tinha jeito.

Vi a queda de Monte Castelo. Eu estava no sopé do monte. O que se deu é que anteriormente as tentativas de tomar monte castelo fracassaram por falta de experiência e insuficiência de tropa, mas naquele momento, em 1945, a tropa americana, que estava ao nosso lado tomou o Monte Belvedere, que ficava a cavaleiro de Monte Castelo, e isso facilitou a tomada do Castelo.

No fim da guerra testemunhei centenas e centenas de alemães soldados de braços levantados se rendendo. Até hoje eu gravei na memória o episódio de dois oficiais nazistas vestidos a capricho, uniformizados, se rendendo naquela fase final da guerra, para o major Sizeno Sarmento, que era comandante de uma unidade da Força Expedicionária. Eu me lembro desses dois oficiais nazistas claramente o que eles disseram: "Nicht mehr krieg", Não queremos mais guerra.

Um certo dia tivemos a notícia de que os alemães tinham se rendido incondicionalmente. E aí a guerra foi oficialmente, pelo nosso comando aliado, declarada vencida e terminada. Aí foi uma alegria tremenda. Nós nos abraçamos e cantamos. Foi uma alegria e – é claro – bebida tinha também, pois já não havia mais o perigo de morrermos em combate. Acabou-se esse perigo. Lembro de um companheiro dizendo: "Não vou morrer mais, não vou morrer mais!" Tínhamos sobrevivido. Durante a guerra, a perspectiva de morrer existia. Não vou dizer que não era constante. Mas a gente tinha de superar e se habituar a essa situação e viver para a frente.

De vez em quando me ocorrem lembranças daquela época... Eu me vejo uniformizado... Andando na lama... Subindo a rampa... Enfim essas coisas de vez em quando voltam à memória. A sensação que isso desperta em mim não é agradável. Eu prefiro não me lembrar... A guerra é sobretudo sujeira, lama, desconforto, perigo, sensação constante de perigo e a perspectiva da possibilidade de morrer.

Em agosto de 1945 voltei para o Brasil e continuei minha militância. Durante muito tempo no partido havia uma quantidade grande de quadros militares. Apolônio (Apolônio de Carvalho), o Agildo Barata e outros. A presença deles era forte no partido e influenciou. E o fato de Prestes ser um militar. O grande ícone. Ele estava na ocasião ainda preso. Cumpriu dez anos de prisão e era uma lenda, uma figura lendária (Luis Carlos Prestes era o secretário-geral do partido e havia sido preso após o levante comunista de 1935).

Nasci em 20 de janeiro de 1923. Estou com 89 anos, uma idade interessante. Ao lado de minha militância, a guerra foi uma das mais experiências mais importantes da minha vida. Tive outras: família, enfim, perigos que passei na vida clandestina de militante comunista. Fui preso, torturado. Minha vida teve momentos bons e momentos muito difíceis. Eu acho que atravessei essa trajetória honradamente. Não tenho nada do que me envergonhar. Não delatei. Não coloquei ninguém me perigo. Pra mim isso é honroso. Nem todo mundo pode dizer isso.

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