Uma família foge da violência perto de Aleppo |
As pessoas vinham de longe até Aleppo, mesmo das cidades vizinhas, para comprar legumes no mercado de Shahar. Nessa época do ano, a rua principal normalmente ficaria vermelha de tomates, enfileirados em centenas de caixas de madeira na entrada das lojas. Desde o início da revolta contra o regime de Bashar al-Assad, 15 meses atrás, não existe mais mercado, nem tomates, nem calçadas repletas de gente. Mais nada, exceto pela delegacia, ao lado do cemitério. Por temor de um ataque, a polícia havia anexado a maior parte da rua.
Na tarde de quarta-feira, o principal posto policial de Shahar foi cercado pelas tropas do Exército Livre Sírio (ELS), que entraram em peso em Aleppo três dias antes. Em um país dominado pelo medo há mais de 40 anos, a operação representa bem mais que a tomada de uma simples delegacia de bairro. “Entrar como vencedor e finalmente ver o que há lá dentro é uma total fantasia, algo que eu nunca teria imaginado seis meses atrás”, diz um oficial do Exército Livre.
Sacos de areia e uma guarita vazia --decorada com um retrato de Bashar al-Assad grande o suficiente para ser visto de longe-- guardam portas de ferro fechadas. Na parte de trás, haveria “cerca de 20 policiais emboscados”, acredita um policial, e, no porão, prisioneiros, detidos por causa da insurreição. Esses prisioneiros tiveram sorte, diz um estudante de medicina da faculdade de Aleppo. Ele descreve o campus da universidade sendo invadido por shabihas --os asseclas do regime-- no dia seguinte a uma manifestação, seus colegas que ele viu sendo jogados pela janela do quinto andar do alojamento estudantil, outros cortados por sabres, 20 no total, segundo ele. “Os shabihas nem mesmo tentaram prender os agitadores”, lembra o estudante. “Eles matavam quem estivesse lá”.
E quando foi isso? O estudante se confunde. Há dois meses, talvez. Ele não sabe mais. Parece que não quer mais se lembrar, que vai chorar. É a primeira vez que ele fala a respeito. “Ficamos sozinhos por tanto tempo em Aleppo, sem ONGs, sem observadores internacionais, sem jornalistas,” ele diz. “Mesmo com pessoas da cidade não tínhamos coragem de falar, por medo de sermos acusados de terrorismo”. Ele tem 21 anos e conduz um dos centros médicos da cidade sozinho. “Nenhum outro médico quer mais vir desde que outros três foram queimados vivos.”
Em frente à delegacia, os soldados das Forças Armadas Livres esperam em emboscada em uma loja de sanduíches. Eles fabricam bombas com os botijões de gás do bairro, coquetéis Molotov com o que encontram. Sempre esse problema de armamentos. Eles até receberam munições e kalashnikovs, mas nada mais. Um avião de caça passa por cima de suas cabeças, depois um helicóptero atira aleatoriamente.
De repente, quatro homens saem correndo da delegacia, gritando que se rendiam. Eles saem em fila, com os braços para cima. Há gritos para todos os lados. Eles tremem.
Com quem poderia estar falando o gordinho, que de alguma forma conseguiu baixar um dos braços para atender ao telefone? É para ele que de repente um soldado insurgente aponta: ele deve tirar o retrato de Bashar al-Assad da guarita, jogá-lo no chão e pisoteá-lo, junto com seus três outros colegas. E eles o fazem. Na rua, uma multidão grita “Allah akbar!” [Deus é grande] enquanto cá e lá pequenos grupos permanecem em silêncio.
Banalidade assustadora
Por volta das 18h de quarta-feira, a delegacia é tomada de assalto: ao menos 7 mortos e 13 presos, entre eles o chefe de polícia. A porta é empurrada, e todos se acotovelam para finalmente ver que cara aquilo tem. E entram no recinto que é de uma banalidade assustadora, com baralhos de cartas, chaleiras, todas as tranqueiras da vida de escritório.
Na sala do chefe, tentam arrombar um cofre à base de chutes. Por fim, ele se abre revelando uma bagunça de pilhagens, cigarros de luxo com ponta dourada, um farol de neblina, coleções de pendrives e um boné escrito “I Love New York City”. No porão, um prisioneiro --o único-- logo é solto sem nenhuma pergunta. Os homens do ELS já estão embarcando as armas, os cassetetes, as munições, os carros.
Os armários de aço, onde os policiais guardavam suas coisas, são escancarados. No lado de dentro, onde todos os policiais do mundo colam suas fotos eróticas ou de suas famílias, eles fizeram pequenos altares em devoção ao presidente Bashar al-Assad: imagens recortadas de jornais, cuidadosamente coladas nas paredes de metal e enfeitadas mostrando Bashar na praia, Bashar soldado, Bashar com a família.
Alguém pergunta: “Mas não existe um lugar onde se torturava?”, e um soldado responde: “Um lugar especial? Não, era em todo lugar”.
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