quarta-feira, 27 de junho de 2012

Intriga corrói a China, mas censura camufla resultados na trama de corrupção


Com bom domínio do inglês, culto, metódico e bem conectado, o que protege e impulsiona sua carreira embora não seja membro do Partido Comunista Chinês (PCCh), o inspetor Chen Chao, que resolveu casos muito delicados - inclusive um que afetava o "Grande Timoneiro", Mao Tsetung - é o policial perfeito para destrinchar a novela de Bo Xilai. O ruim é que Chen Chao é um personagem de ficção criado pelo escritor de Xangai residente nos EUA Qiu Xiaolong, que, no entanto, certamente encontrou em Bo Xilai, 62, e sua esposa Gu Kailai, 53, toda uma fonte de inspiração para seus romances.

Hoje em dia se desenrola no Camboja o último episódio conhecido de uma trama truculenta na qual não falta nada: morte, tentativa de golpe, corrupção, espionagem, conflitos diplomáticos, escutas telefônicas e grandes somas de dinheiro. O governo cambojano reconheceu esta semana que, "a pedido e com a colaboração" de Pequim, deteve em 13 de junho o arquiteto francês Patrick Devilliers, residente em Phnom Penh desde 2005 e velho amigo do casal Bo.

Mas quem são os principais atores da trama? Comecemos por Bo Xilai, uma das estrelas mais brilhantes e populistas da política chinesa, cujo fulgor começou a se apagar em março passado, quando um rápido comunicado da agência oficial Xinhua informou sobre sua destituição como chefe do PCCh e prefeito de Chongqing, uma das quatro municipalidades da China e a mais populosa: 31 milhões de habitantes.

A demissão do líder da ala mais esquerdista e conservadora do PCCh, que supostamente entraria no próximo outono no órgão máximo do poder chinês, o Comitê Permanente do Birô Político - ou, o que é o mesmo, a direção colegiada da China exercida por um grupo de nove homens -, foi um verdadeiro estrondo. A demissão de Bo, que deixou as redes sociais em polvorosa, foi imediatamente vinculada à obscura visita que realizou seu braço-direito e chefe da segurança de Chongqing, Wang Lijun, em 6 de fevereiro ao consulado dos EUA na cidade vizinha de Chendu.

A mídia americana vazou que Wang tinha pedido asilo político nos EUA porque temia por sua vida. O Departamento de Estado não quis abrir uma crise sem precedentes com a China e ordenou que seus diplomatas informassem a Pequim e entregassem discretamente o funcionário. Ninguém voltou a ver Wang.

Mas é tal o sigilo que ronda o círculo de poder chinês que o autêntico escândalo só explodiu em 11 de abril. Foi a televisão oficial CCTV quem informou sobre a expulsão de Bo Xilai do Birô Político (de 25 membros) e do Comitê Central do PCCh, acusado de estar envolvido em "graves violações de disciplina". Minutos depois, a Xinhua anunciava que Gu Kailai, a mulher de Bo, tinha sido detida por ser "altamente suspeita" do assassinato do empresário britânico Neil Heywood, cujo cadáver apareceu em novembro no quarto que ocupava em um hotel em Chongqing. O relatório policial divulgado então indicava que a morte foi causada por um ataque cardíaco.

Os chineses não acreditaram. Gu era uma advogada famosa e Bo Xilai havia chegado tão alto em boa medida porque é filho de Bo Yibo, um dos oito veneráveis. Assim são chamados os oito fundadores do PCCh e participantes da Longa Marcha (1934-35) que foram purgados durante a Revolução Cultural (1966-76) e que depois da morte de Mao Tsetung em 1976 retomaram o poder. Entre esses oito veneráveis também se encontrava Deng Xiaoping, o promotor da reforma que transformou a China na segunda potência econômica do mundo. Os filhos desses veneráveis e de outros fundadores do PCCh são conhecidos como "príncipes" e em sua grande maioria formarão a nova geração de dirigentes que sairá do 18º Congresso do PCCh, cuja realização está prevista para meados do outono. Esse conclave eram o que Bo aguardava para dar seu salto definitivo ao poder.

Desencadeado o escândalo, Pequim ordenou que a polícia cibernética bloqueasse em todas as máquinas de busca da Internet chinesa os nomes dos protagonistas, mas não pôde evitar os vazamentos. Como é habitual, veículos da dissidência chinesa como "Boxun.com", estabelecido nos EUA, são os que divulgaram mais informação, com a qual se vai desfiando essa trama espetacular.

Segundo esses veículos, Wang Lijun entregou ao cônsul americano, para sustentar seu pedido de asilo nos EUA, centenas de documentos que vinculavam Gu Kailai ao assassinato que Heywood e Bo Xilai a uma rede ilegal de escutas contra os dirigentes máximos chineses, incluindo o presidente Hu Jintao. Além disso, revelou subornos milionários e a fuga de volumosas quantias do país.

Tudo indica que Pequim quer interrogar o arquiteto francês detido agora no Camboja sobre os negócios dos Bo no estrangeiro e a lavagem de dinheiro e capital evadido dos cofres chineses. Apesar de a China e o Camboja terem um acordo de extradição assinado em 2000, Pequim quer, para agilizar o processo, que Phnom Penh expulse Devilliers para a China. A França já exigiu que o Camboja esclareça os motivos pelos quais deteve seu cidadão. "No Camboja ele não fez nada de mau; se não houver provas claras contra ele, será posto em liberdade", disse um porta-voz do governo. Mas não será tão fácil. A China é o principal doador do Camboja e seu principal investidor.

Devilliers, 52, trabalhou na urbanização de Dalian quando Bo Xilai era prefeito dessa cidade no nordeste da China (1992-2000). Ele e Heywood foram os dois estrangeiros com maior ligação com a ascendente família Bo nesses anos. Depois de revelado o assassinato do britânico, os jornalistas encontraram o francês em Phnom Penh. "Não tenho nada a esconder", disse Devilliers em maio ao jornal "The New York Times".

A imprensa britânica indicou que Heywood foi envenenado porque ameaçou Gu de revelar seu plano de tirar da China uma grande soma de dinheiro se não lhe pagasse a elevada comissão que exigia pela transação. Fazia tempo que Devilliers havia se afastado, mas sabe-se de pelo menos duas empresas conjuntas com a ambiciosa Gu. Uma, a Bournemouth, fundada em Hong Kong, que deixou de operar em 2006 depois da compra de uma residência no luxuoso bairro londrino de South Kensington pela qual foram vistos tanto Gu como o filho do casal, Bo Guagua. A outra empresa, Adad Ltd, segundo o jornal francês "Le Monde", coordenava diversos escritórios de arquitetura estrangeiros no desenvolvimento de Dalian, o porto mais importante do nordeste da China. Para o pai do arquiteto detido, Michel Devilliers, não há dúvidas: "Meu filho foi manipulado por essa mulher", disse ao jornal "The Telegraph".

A proximidade do congresso do PCCh - tem 80 milhões de membros - acelera a urgência dos dirigentes chineses em encerrar o capítulo mais penoso de sua história desde a chacina da Praça Tiananmen em 1989. Daí seu interesse em interrogar Devilliers o quanto antes. Mas a proximidade do conclave também foi o que promoveu a feroz luta de poder que ficou a descoberto.

Segundo o site "Chariweb.com", Gu, para reduzir sua condenação, denunciou que seu marido e Zhou Yongkang, o czar da segurança chinesa e um dos atuais nove membros do Comitê Permanente do Birô Político, planejavam um golpe para impedir que Xi Jinping ascendesse no outono à secretaria geral do PCCh e à chefia do Estado na primavera de 2013. Xi, substituto previsto de Hu, é considerado "progressista demais" pelo conservador Zhou. A detida declarou que Zhou era "o cérebro do golpe" e o qualificou como a "maçã podre" da direção colegiada.

Essa informação foi revelada por ativistas do Boxun e, como é óbvio, não pode ser confirmada. Mas em um fato insólito, um grupo de 15 veteranos do PCCh redigiu em maio passado uma carta aberta a Hu Jintao na qual pediam a destituição de Zhou Yongkang por seu apoio a Bo Xilai e ao chamado modelo de Chongqing. Quer dizer, as campanhas lançadas por Bo: uma contra a corrupção e a máfia nessa municipalidade - na qual seus críticos afirmam que utilizou sem hesitação a tortura e outros métodos ilegais -, e outra para reviver a parafernália e as canções maoístas para aumentar seu poder e o da facção ultraesquerdista.

Zhou continua em seu cargo. Já estava previsto que seria aposentado no 18º Congresso, e depois do mal-estar que representou para a China que sua roupa suja fosse lavada em um consulado americano a direção optou pelo silêncio para acalmar as turbulentas águas do partido.

O fim da novela ainda não foi escrito, mas, seja qual for, a censura nos deixará saber somente a metade.

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