quarta-feira, 16 de maio de 2012

Um ano após morte de Bin Laden, relações entre Paquistão e Estados Unidos continuam frias


Paquistaneses queimam bandeira dos Estados Unidos durante protesto que marca o primeiro aniversário da morte de Osama Bin Laden, no último dia 2 de maio

Washington e Islamabad mal estão dialogando depois que forças militares dos Estados Unidos mataram Osama Bin Laden no ano passado. Mas como as tropas norte-americanas e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) deverão deixar o vizinho Afeganistão em breve, o Paquistão, um país que possui armas nucleares, tem pouca motivação para melhorar as relações com Washington. O ódio pelos Estados Unidos está aumentando no país.

Sheikh Rashid Ahmed inclina-se para trás na sua cadeira enquanto dá vários telefonemas no seu escritório mal iluminado. O televisor está ligado, mas sem som, e na frente dele está um revólver envolto por um coldre. Ele pega a arma, sorri, e a coloca de volta no mesmo lugar. Ele anda com o revólver desde que pistoleiros em motocicleta, contratados por alguém, tentaram matá-lo dois anos atrás.

Ahmed, 61, é um veterano da política paquistanesa. Ele atuou em diversos cargos ministeriais durante o governo do presidente Pervez Musharraf – o presidente do Paquistão de 2001 a 2008 –, dos quais o mais recente foi o de Ministro das Ferrovias. Quando Musharraf foi obrigado a renunciar há quatro anos, Ahmed também deixou o cargo. Depois disso, ele voltou-se para a religião e fundou o seu próprio partido, a “Liga Muçulmana Awami do Paquistão”, e declarou formalmente uma jihad contra os Estados Unidos.

Há semanas Ahmed viaja pelo país com um grupo de militantes religiosos e instiga as massas contra os Estados Unidos. Juntos, os integrantes do grupo ficam de pé em torno do microfone, com os dedos indicadores erguidos, e dizem que, por vontade de Alá, a superpotência perderá a guerra no Afeganistão, e que o Paquistão precisa também agir. Eles pregam o ódio.

O grupo itinerante consiste de líderes de 44 grupos religiosos que se uniram há cerca de seis meses para formar o “Conselho de Defesa do Paquistão”. Fazem parte do grupo mulás ortodoxos e jihadistas, líderes de seitas muçulmanas e membros de movimentos muçulmanos revivalistas. Ahmed é integrante das forças mais moderadas, ao contrário de Hafiz Saeed, que é considerado o mentor do ataque mortífero contra dois hotéis e uma estação de trem em Bombaim, em novembro de 2008, que resultou na morte de 166 pessoas.

O governo dos Estados Unidos, que acredita que Saeed seja um dos terroristas mais perigosos do mundo, anunciou recentemente que está oferecendo uma recompensa de US$ 10 milhões (7,7 milhões de euros) pela captura dele. Isso pareceu divertir Saeed, que realizou imediatamente uma entrevista coletiva à imprensa em Rawalpindi, onde ele deu várias declarações a respeito das suas excelentes conexões com os serviços de segurança paquistaneses e fez piada sobre a recompensa: “Eu estou aqui, estou visível. Os Estados Unidos deveriam dar o dinheiro da recompensa para mim. Eu estarei em Lahore amanhã. Os Estados Unidos podem entrar em contato comigo quando bem desejarem”. Nenhum juiz paquistanês pretende ordenar a prisão de Saeed. Na sua terra natal, ele é um herói, e não um vilão.

Ruptura nas relações
O Paquistão é um país conturbado, que foi lançado em uma situação caótica devido à guerra no Afeganistão. Lideranças religiosas militantes assumiram a hegemonia cultural no país. Eles ficaram furiosos devido à arrogância da superpotência norte-americana, aos ataques com veículos aéreos não tripulados nas regiões fronteiriças e ao assassinato de Osama Bin Laden um ano atrás. Esses líderes contam também com o apoio da classe média urbana.

O Paquistão ainda não perdoou os norte-americanos pela invasão do país por uma unidade de elite da marinha dos Estados Unidos, os Navy Seals, em 2 de maio de 2011, que resultou no assassinato de Osama Bin Laden. E as imagens da Casa Branca, onde o presidente Barack Obama monitorava a operação por vídeo, não foram esquecidas. Washington não deu nenhum aviso ao governo ou aos militares paquistaneses, de forma a não colocar a missão em risco. Assim, os Estados Unidos humilharam o seu aliado ao manifestar uma profunda desconfiança em relação ao Paquistão.

A operação, conhecida como “Neptune's Spear” (“Lança de Netuno”), provocou uma ruptura nas relações entre os Estados Unidos e o Paquistão que não se consegue superar.

Normalmente as forças armadas dos Estados Unidos e o exército do Paquistão pelo menos fingem trabalhar juntos, e diplomatas e oficiais militares de alta patente dos dois países visitam-se com regularidade. Mas há meses vê-se uma falta de comunicação entre o general James Mattis, chefe do Comando Central dos Estados Unidos, encarregado de administrar a guerra no Afeganistão, e Ashfaq Parvez Kayani, comandante do exército paquistanês. Ao mesmo tempo, o parlamento paquistanês criou um comitê que dedica grande parte do seu tempo à discussão de novos parâmetros para as relações do Paquistão com a superpotência.

O afastamento entre os dois países também afeta a guerra no Afeganistão. O Paquistão recusa-se desde novembro do ano passado a permitir que o seu território seja utilizado para reabastecer as tropas da Otan no Afeganistão. Naquele mês, helicópteros da Otan dispararam acidentalmente contra dois postos militares paquistaneses de fronteira, matando 24 soldados. Desde então, a Otan tem sido obrigada a utilizar uma rota através da Ásia Central, que se constitui em um desvio extremamente dispendioso.

O conflito revela uma estratégia dupla ensaiada. Embora o Paquistão divulgue com estardalhaço a suspensão do trânsito de tropas norte-americanas pelo seu território, ele na verdade gostaria de reabrir as rotas de reabastecimento das tropas dos Estados Unidos, já que isso é muito lucrativo. O Paquistão está exigindo o pagamento de uma taxa de US$ 1.500 (1.150 euros) pela passagem de cada contêiner de alimentos, combustíveis ou equipamentos militares que chegam à cidade portuária de Karachi e são a seguir transportados de caminhão até Cabul ou Kandahar. Os Estados Unidos aceitam pagar essa conta enorme em troca de uma isenção de pedágios. Até recentemente, os norte-americanos eram obrigados a pagar um adicional de US$ 1.500 em propinas por cada contêiner que passa pela rota montanhosa. O dinheiro seguia para o Taleban e para os corruptos funcionários da alfândega paquistanesa. Mas, como as propinas são comuns e ninguém acredita que a situação vá se modificar, a única opção da Otan é aceitar o novo preço até a retirada em 2014 ou continuar utilizando as rotas de reabastecimento da Ásia Central.

“O aliado do inferno”
As relações entre o Paquistão e os Estados Unidos foram contaminadas por interesses maliciosos dos dois lados, desde o início. As causas para as suspeitas mútuas são muitas, e elas só aumentaram no decorrer dos anos. A secretária de Estado Hillary Clinton repetiu recentemente a sua solicitação enérgica ao exército paquistanês para que este comece finalmente a combater a rede Haqqani.

Segundo as avaliações da Otan, o clã pashtun dos Haqqani, localizado no noroeste do Paquistão, representa uma grave ameaça às tropas da organização ocidental no Afeganistão. Mais de 40 pessoas morreram em sete ataques simultâneos no distrito diplomático de Cabul em meados de abril. Na semana após, pouco depois de Obama ter concluído a sua visita não anunciada ao Afeganistão, 11 pessoas foram mortas em um atentado suicida a bomba. Um pouco após, houve três atentados a bomba no noroeste do Paquistão, que resultaram na morte de 25 pessoas, incluindo vários membros idosos de tribos que se pronunciaram contra o Taleban.

Sob o ponto de vista do exército paquistanês e da principal agência de inteligência do país, a ISI, há menos motivos do que nunca para reprimir grupos terroristas. O Ocidente pretende retirar-se do Afeganistão até o final de 2014, e até lá o Paquistão espera exercer a sua influência sobre os acontecimentos no país vizinho. Para isso, ele mantém aliados em todos os níveis, incluindo junto ao clã Haqqani e ao Taleban. Os Estados Unidos também desejam manter a sua influência na região após 2014, e o Paquistão continua sendo uma base ideal para as operações norte-americanas. Além disso, o instável Paquistão é uma potência nuclear, e um dos maiores temores do Ocidente é o de que terroristas possam ter acesso às armas nucleares do país.

Em dezembro, um artigo publicado na respeitada revista norte-americana “The Atlantic” provocou furor tanto nos Estados Unidos quanto no Paquistão. O artigo, intitulado “O Aliado do Inferno”, começa da seguinte forma: “O Paquistão mente. Ele abriga jihadistas radicais e um grande e crescente arsenal nuclear. Com amigos como esse, quem precisa de inimigos?”

Os dois autores do artigo descreveram detalhadamente como o maior medo das forças armadas paquistanesas é verem-se privadas das suas armas nucleares. Mas eles observam que os medos dos generais paquistaneses não dizem respeito à Al Qaeda, conforme se poderia pensar, mas sim aos Estados Unidos. Segundo a “The Atlantic”, o aparato de segurança paquistanês viu o ataque contra Bin Laden como uma indicação de que “os Estados Unidos desenvolveram os meios técnicos para lançar ataques simultâneos contra as instalações nucleares paquistanesas”.

As medidas de segurança utilizadas pelo Paquistão para proteger o seu arsenal também foram mencionadas. As ogivas ou componentes das armas nucleares têm às vezes que ser atualizados e, para que isso seja feito, eles precisam ser levados para instalações apropriadas. Às vezes os transportes são feitos com helicópteros, mas em certas ocasiões “com veículos de estilo civil, sem nenhuma defesa notável, em meio ao tráfego rodoviário regular”, disseram os autores.

Ogivas nucleares sendo transportadas em furgões de entrega de encomendas em meio ao caos reinante nas grandes cidades paquistanesas. Essa é uma ideia singular, um fruto da mentalidade paranoica dos Estados Unidos.

O presidente acidental
O Paquistão é uma potência nuclear, mas ele é também um país pobre que pouco faz no sentido de reduzir a pobreza e o analfabetismo que afligem a sua população. Cerca da metade dos seus 190 milhões de habitantes não sabe ler nem escrever. Assim, o fato de o Paquistão ser uma democracia, pelo menos de acordo com a sua constituição, não não é lá muito significativo. Na realidade, o feudalismo, especialmente nas áreas rurais, se constitui na base da sociedade, e famílias antigas, como o clã Bhutto, ainda controlam o país, como sempre fizeram.
Há dois meses houve novos boatos sobre um golpe, o tipo de rumor que surge frequentemente quando um governo desagrada os militares.

Mas desta vez não houve golpe. O exército hesitou porque, segundo os críticos, ele perdeu a sua aura de autoridade ao permitir que os Estados Unidos o controlassem. O antiamericanismo prevalecente também enfraquece o exército, que, até recentemente, ainda era tido como a única instituição confiável do país.

O presidente Asif Ali Zardari acabou sendo poupado. Ele é um presidente acidental, o viúvo de Benazir Bhutto, que foi primeira-ministra em duas ocasiões, e que foi duas vezes deposta por corrução. Em dezembro de 2007, ela foi assassinada quanto se preparava para disputar o cargo pela terceira vez.

Zardari é um dos políticos mais odiados do país. O apelido antigo dele é “Mister Dez Porcento”, já que ele teria embolsado rotineiramente 10% do valor dos contratos governamentais quando foi ministro do Investimento no gabinete da sua mulher. Ele foi condenado por corrupção em 1999 e passou cinco anos na prisão. Depois disso, ele seguiu com a mulher para o exílio e retornou com ela em 2007, depois que o então presidente Musharraf concedeu uma anistia ao casal.

Essa é a situação no Paquistão que faz com que os paquistaneses, em um desespero cínico, chamem o país de uma “terra arrasada”.

Justiça absurda
Existem muitas brigas dentro do sistema político, e no momento apenas os juízes do Supremo Tribunal gozam de algum respeito. Durante décadas, os juízes foram apenas agentes a serviço das forças armadas, concedendo aprovação constitucional aos golpes militares. Mas eles parecem estar rompendo com essa relação dependente. De fato, recentemente eles começaram a investigar o “Mister Dez Porcento”, o presidente Zardari, e as antigas irregularidades que este praticou.

No início, os juízes declararam a anistia de 2007 nula, já que ela baseou-se em um decreto presidencial e não em uma lei. A seguir eles procuraram revisar os casos envolvidos com a anistia, que envolviam milhões de dólares que Zardari supostamente teria lavado e depositado em contas em bancos suíços.

O caso era ao mesmo tempo complicado e claro. Ele era complicado porque os juízes queriam obrigar o governo paquistanês a escrever uma carta às autoridades suíças pedindo que o caso fosse reaberto. Paradoxalmente, Zardari não poderia fazer o pedido, já que o presidente goza de imunidade e, portanto, é intocável. Os juízes recorreram ao primeiro-ministro Yousuf Raza Gilani, pedindo a este que fizesse um pedido à Suíça para que o processo fosse reaberto. Mas Gilani recusou-se, transformando uma disputa legal em um espetáculo.

O caso era claro porque o desrespeito ao judiciário constitui-se em crime. Se Gilani tivesse sido condenado, ele teria perdido o seu cargo e novas eleições teriam sido necessárias. O Supremo Tribunal também ameaçou várias vezes impor uma punição, mas ele acabou se esquivando de uma decisão nesse sentido e anunciou um veredicto absurdo: os juízes sentenciaram simbolicamente o réu Gilani a uma pena de prisão de somente alguns segundos, já que essa pena foi considerada cumprida “no momento em que os juízes se levantassem”.

Esse foi o desfecho de um conflito democrático simbólico no qual, sob a ótica paquistanesa, todos as partes se beneficiaram: os juízes, que indiciaram o primeiro-ministro, e Gilani, que pôde permanecer no cargo.

O status quo foi preservado e, como resultado, a peculiar equipe Zardari/Gilani poderá possivelmente durar até 2013, quando terá concluído o mandato. Isso seria uma novidade na história do Paquistão, um país no qual os governos civis são depostos por golpes militares ou obrigados a renunciar devido a escândalos de corrupção.

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