quarta-feira, 21 de março de 2012
Na cidade de Ghazni, "transição" afegã é ameaçada por pressão de talebans
Vista a partir da antiga fortaleza acima da cidade de Ghazni, capital do império ghaznávida no século 6, a vida parece normal na única cidade do sudeste do país cuja segurança agora é garantida pelos afegãos, e não mais pela Otan. Lá embaixo, neste fim de manhã de março, vê-se a agitação das ruas comerciais. Os rostos que percorrem as alamedas do bazar lembram que as três principais etnias afegãs (pashtuns, tadjiques e hazaras) vivem nessa província próxima do Paquistão, cruzamento estratégico entre o norte e o sul do país.
Ghazni é apresentada pelo governo afegão e pela Otan como o exemplo perfeito de uma passagem de bastão bem sucedida. Ela fez parte, em novembro de 2011, da segunda fase da transferência iniciada em março. Até o final de 2014, as tropas combatentes da Otan terão deixado o solo afegão e as forças afegãs assumirão sozinhas a defesa do território. A mudança poderá ser mais rápida que o previsto. Após a chacina de Candahar perpetrada por um soldado americano, o presidente afegão, Hamid Karzai, pediu no dia 15 de março para que a transição fosse efetuada já em 2013, e depois atenuou suas declarações.
Mas estaria o país já pronto para administrar sozinho sua segurança neste sul insurrecional?
Em seu escritório de chefe dos serviços de inteligência afegãos (National Directorate of Security, NDS) para a província de Ghazni, no meio do qual se destaca uma tela plana exibindo um filme de ação, o rude general Sayed Amir Shah faz uma careta: “A realidade afegã resiste aos planos do estado-maior. A distância entre nós e a Otan é grande demais para que essa transferência ocorra sem problemas. Além disso, antes o dinheiro era pago à cidade pela Otan; agora, ele passa pelos ministérios em Cabul e somente 50% chegam”.
Segundo ele, as forças afegãs podem “controlar as cidades, mas não as zonas rurais”, ou seja, a maior parte do país. Cabul e Otan jogam com as palavras, insistindo no fato de que metade da população já passou em massa para controle do governo afegão. Mas trata-se de zonas urbanas e de pequenos centros do interior. No coração do país, a insurreição está avançando. “A retirada da Otan não deveria ser uma decisão política e sim prática, caso a caso”, conclui o general.
Isso porque, por trás dos muros das autoridades locais de Ghazni, não se esconde o fato de que a “transição” local está sendo ameaçada pela pressão taleban. Os agentes do NDS interceptaram, em novembro, conversas entre o mulá Qayum, governador paralelo taleban para a província, e seus chefes em Quetta (no Paquistão), sede do movimento. “Estamos muito perto da vitória”, ele diz em uma das conversas, antes de acrescentar que está pressionando a população a se aliar a eles, ainda que por meio de ameaças. “Estima-se que 10% da população concorde com as mensagens do mulá Qayum”, acredita o chefe do NDS.
A calma prometida pelas autoridades em Ghazni parece bastante relativa. Os talebans já dominam a... 14 quilômetros de lá, no distrito de Zana Khan. Tahir Khan, membro do conselho desse distrito que foi encontrar em Ghazni uma equipe da Unama, a missão política da ONU no Afeganistão, descreve a situação: “Com exceção de alguns policiais aterrorizados que não saem da ponte sobre o rio, não há mais nenhum representante local do governo em Zana Khan, todos os problemas são geridos pelos talebans, estamos tentando conversar com eles para que possamos reabrir uma escola, pois todas elas foram destruídas e nenhum médico mais quer ir até nossas casas.”
Para ele, a saída dos estrangeiros “só vai piorar as coisas”. Os talebans, ele diz, se sentirão ainda mais fortes. “Eles já matam todos aqueles que resistem a eles, tanto mulás quanto simples aldeões, e recebem o reforço de jovens em busca de dinheiro”.
O domínio taleban sempre se mede no plano religioso. Sentado em uma poltrona do salão do governador de Ghazni, o mulá Hakimullah confirma. Personalidade religiosa local e figura da célebre madrasa (escola corânica) de Noor Ur, que formou no distrito de Andar grande parte dos mulás do país nos anos 1960 e 1970, ele afirma: “A maioria dos mulás do distrito de Ghazni têm medo e se alinharam com os talebans que vão até as escolas religiosas para dizer aos estudantes que existem duas prioridades: o jihad e o conhecimento do Corão”.
Mais do que na “transição” em Ghazni, parece que estão apostando, sobretudo, na reconciliação com os talebans para estabilizar a província, embora ainda haja reservas. O mulá Hakimullah, que também é membro do conselho provincial para a reconciliação (PPC), produto do Alto Conselho para a Paz criado por Karzai, garante ter tido “muitos contatos com o movimento taleban em Quetta, mas o governo nunca me deu meios de ir até lá”. Para Tahir Khan, a esperança vem dos talebans locais. “Nós os conhecemos, eles são menos brutais do que os que vêm de outras partes, é possível haver uma reconciliação”.
Embora isolada em um ambiente hostil, Ghazni foi designada capital da cultura islâmica, para 2013 e para a Ásia, pela Organização Islâmica para a Educação, as Ciências e a Cultura. Um paradoxo a mais em uma província cujo governador, Musa Khan Akhbarzada, jura que o evento atrairá muitos visitantes.
Ex-agente de ligação com os serviços secretos militares paquistaneses (ISI) durante a guerra contra os soviéticos, segundo a Unama ele até afirma ter laços com essa rede próxima dos talebans para poder diminuir a pressão sobre a cidade e a província.
Para se despedir de seus convidados, o general Sayed Amir Shah, do NDS, não hesita, por coragem, mas também para mostrar que Ghazni está sob controle, em acompanhá-los até a estrada próxima de seu quartel-general. “Mas é de se perguntar o que vocês vieram fazer aqui, agora vocês se apressam para ir embora, sendo que não conseguiram fazer nada do que queriam, e nos deixam sozinhos”.
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