sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Inteligência alemã sob fogo por espionar parlamentares


Gregor Gysi é um dos 27 parlamentares do Partido de Esquerda "observados" pela inteligência domética alemã 


A revelação que parlamentares do Partido de Esquerda estão sendo vigiados pelo serviço de inteligência alemão gerou um debate sobre os poderes da agência. A mais alta corte do país deve fornecer neste ano os esclarecimentos tão necessários sobre a questão. Até que ponto os espiões devem poder investigar representantes eleitos?

Klaus Ernst, do Partido de Esquerda alemão, ficou diante da própria insignificância na semana passada. Na recepção de Ano Novo de seu partido em Berlim, sentado em um canto comendo almôndegas, o codiretor do partido brincou: “Se eu não estiver na lista, minha reputação será prejudicada”. Ele tinha até um botton pregado na lapela: “Sou de esquerda. Por favor, vigie”.

Mas seu desejo não foi satisfeito –Ernst não entrou para a lista de 27 políticos do Partido de Esquerda sob observação pelo Escritório Federal da Proteção da Constituição (BfV), a agência de inteligencia doméstica alemã. Realmente a reputação de Ernst foi atingida, pois um dos critérios da agência para selecionar os parlamentares que merecem ser vigiados é se têm “um papel importante no partido”.

Desde que o “Spiegel” revelou na semana passada que a agência está monitorando parlamentares do Partido de Esquerda, surgiu uma necessidade de esclarecimento: quem deve ser categorizado como inimigo da Constituição e quem é amigo? Um membro do Parlamento pode ser inimigo da Constituição? O poder executivo tem permissão para fiscalizar representantes eleitos do povo –quando realmente deveria ser o contrário?

Agora, mais lenha foi jogada na fogueira com uma acusação que o BfV está vigiando os representantes do Partido de Esquerda não apenas pela análise de fontes inofensivas e públicas, como artigos de jornal –como alega- mas também com métodos de inteligência aplicada, como informantes secretos.

Nada além de objeto de piada

O dano à imagem da agência foi enorme. Primeiro veio o vexame em torno do fracasso do BfV em localizar o grupo neonazista conhecido como célula terrorista de Swickau. Agora, a agência está enfrentando uma crise por espionar o Partido de Esquerda. O melhor que o BfV pode esperar nesta altura é sair da confusão apenas como objeto de piada.

Até agora, os inimigos do Estado supostamente perigosos no Partido de Esquerda vêm se deleitando com sua recém conquistada notoriedade. O partido, afligido por divisões internas, vem explorando seu status de injustamente perseguido.

A mania da agência de coletar dados está errando em seu objetivo. Certamente, há grupos radicias dentro do Partido de Esquerda que sugerem a derrubada do sistema político. Mas, diferentemente do Partido Democrático Nacional, não há necessidade para o BfV ficar cavando em segredo. Até os debates mais ideologicamente extremos do partido ocorrem em público e são extensivamente documentados em fóruns como a Plataforma Comunista.

Até o partido de centro-direita União Democrática Cristã (CDU), que se distancia o tanto quanto pode do Partido de Esquerda, expressou seu apoio neste caso. Johannes Singhammer, vice-diretor do grupo parlamentar do CDU se pergunta “qual grande descoberta seria obtida” com o acompanhamento apenas das fontes publicamente disponíveis.

Críticas da direita

Stephan Mayer, que também é membro do grupo parlamentar do CDU, acredita que alguns indivíduos do Partido de Esquerda apresentam tendências que vão contra a Constituição alemã, mas ele “nunca chegaria ao ponto de usar métodos de inteligência contra parlamentares do Partido de Esquerda”.

Até Siegfried Kauder, diretor do Comitê Jurídico do Bundestag, expressou solidariedade à oposição. “A maneira pela qual o Partido de Esquerda está sendo vigiado não é aceitável”, diz ele. “Afinal, o Parlamento monitora a Constituição –o Escritório de Proteção da Constituição não monitora o Parlamento”.

Ainda não está claro, contudo, o que precisamente a agência doméstica de inteligência tem permissão para fazer. Suas tarefas, autoridade, responsabilidades –tudo isso está aberto à interpretação. A lei alemã dá apenas informações incompletas e inconsistentes. As leis pouco claras que governam o BfV “não cumprem os requerimentos de um Estado constitucional”, acredita Christoph Gusy, professor de direito da Universidade Bielefeld e especialista em leis de segurança e de polícia. Olhando de perto, o BfV é um monstro constitucional.

O ministro do interior alemão, Hans-Peter Friedrich, da União Social Cristã (CSU), partido associado ao CDU na Bavária, não tem medo desse monstro. Ele garante que a vigilância controversa dos parlamentares do Partido de Esquerda, está coberta por uma decisão da Corte Administrativa Federal. Ele sugeriu a retirada de alguns indivíduos inofensivos da lista de vigilância da agência e sua substituição por outros mais radicais.

“Violação da Constituição”

Uma decisão de 2010 da Corte Administrativa Federal em Leipzig de fato concedeu certa liberdade ao BfV, inclusive o direito de vigiar os representantes eleitos. Esse caso particular preocupou Bodo Ramelow, político moderado do Partido de Esquerda do Estado da Turíngia, que ficou anos sob observação. “É assim que a proteção da Constituição se torna uma violação da Constituição”, comenta Christoph Möllers, professor de direito constitucional em Berlim, em referência à decisão.

 No fundo, a questão é se o BfV tem o direito de espionar apenas os membros do Partido de Esquerda envolvidos em comportamento inconstitucional ou se também líderes políticos como a vice-presidente do Bundestag, Petra Pau, que nunca deu a impressão de ser uma revolucionária dada à violência.

As leis que governam o BfV não dão respostas ou qualquer orientação sobre precisamente quem pode ser alvo de espionagem. Ainda assim, a Corte Administrativa Federal chegou à uma conclusão clara no caso de Ramelow, ou seja, que mesmo um político inofensivo pode entrar em contato com elementos duvidosos e subsequentemente pode “promover metas inconstitucionais sem se dar conta”. Tal pessoa, concluiu o juiz, “que não percebe a forma como está sendo usada, pode ser tão perigosa para a preservação de um sistema democrático livre quanto aquela que age por convicção”.

Aparentemente, essa proteção dos líderes de partido inconscientes por espiões amigáveis pode até acontecer dentro do Parlamento, de acordo com a Corte Administrativa Federal. Mesmo os representantes do povo da Alemanha precisam ser vigiados, caso não saibam o que estão fazendo, sugere a decisão da corte. A passagem constitucional afirmando que os membros do Parlamento “estão sujeitos apenas a sua consciência” não impressionou os juízes em Leipzig, que declararam que a liberdade de tal mandato “não é ilimitada”.

Com base na decisão de Leipzig, todos os parlamentares podem ser responsabilizados por qualquer absurdo que emane de uma facção afiliada ao partido.

Mas o que se constitui em um ato inconstitucional preocupante continua sendo uma questão de opinião. Leis que concernem a proteção da Constituição tanto no nível federal quanto estadual não fornecem qualquer base para um decisão racional legal sobre quais precisamente devem ser os “motivos” que justificam a espionagem. Palavras grandes proferidas por alguns radicais da província seriam base para se vigiar um partido? Ou este deve estar ativamente planejando uma revolução antes dos serviços de inteligência se envolverem?

Na semana passada, o BfV ateve-se à sua afirmativa que os parlamentares só eram observados e não grampeados ou espionados. Poucos dias depois, entretanto, veio a admissão encabulada que “métodos do serviço de inteligência” de fato foram usados em alguns departamentos regionais da agência e que seus dados talvez de fato terminem em arquivos do BfV federal.

O arquivo da agência sobre Gregor Gysi, líder parlamentar do Partido de Esquerda, por exemplo, tem quase 1.000 páginas e claramente é mais do que um inofensivo conjunto de recortes de jornal. O Ministério do Interior Federal emitiu uma declaração de 41 páginas justificando a decisão de não permitir que o próprio Gysi lesse todo o tomo. “As páginas 18 a 24 se referem a documentos obtidos por métodos do serviço de inteligência e submetidos ao BfV”, dizia a declaração. A omissão das páginas 12 a 14 do arquivo de Gysi é justificada com o seginte raciocínio: “A necessidade de proteger fontes e a garantia de confidencialidade feita aos informantes exigem a não revelação”. Quase 130 páginas do arquivo foram omitidos nessa base, enquanto outras 500 páginas foram parcialmente censuradas e aproximadamente 200 outras substituídas.

Por que tanto cuidado, se apenas fontes públicas foram analisadas? O BfV justifica sua censura de passagens e páginas com a explicação, entre outras, que o texto marcado por seus agentes e comentários feitos nas margens tornariam possível ao leitor inferir “os métodos operacionais e metas da observação”.

As partes divulgadas do arquivo são recortes de jornais, panfletos do partido e similares, pedaços de informações mundanas que parecem um trabalho inventado para manter os agentes ocupados. No arquivo sobre o parlamentar e ex-membro do Partido Comunista Alemão Wolfgang Gehrcke, nem sua data de nascimento está correta.

O Partido de Esquerda está acostumado a ter informantes em suas fileiras e não é estranho a intrigas. No passado, porém, os informantes em geral trabalhavam para facções dentro do partido. Agora, a desconfiança está crescendo.

Ramelow, por exemplo, líder do grupo parlamentar do Partido de Esquerda da Turíngia, conta que um conhecido admitiu ser um informante. Michael Leutert, membro do Bundestag para o Estado da Saxônia que também está sendo vigiado, diz que a agência tentou recrutá-lo em seus tempos de escola. Bernd Riexinger, porta-voz do partido de Esquerda no Estado de Baden–Württemberg, diz que conhece três casos separados de pessoas que receberam propostas de dinheiro por informações.

Um caso particularmente delicado é a espionagem de Steffen Bockhahn, diretor do Partido de Esquerda para o Estado de Mecklenburg-Pomerânia Ocidental. Um importante representante da ala pragmática do partido, Bockhahn também é membro do comitê parlamentar que fiscaliza o orçamento das agências de inteligência alemãs.

O fato de estar na lista da BfV “choca” Bockhahn, que diz que hoje está reavaliando “certos eventos do passado”. Em 2007, oponentes da reunião de cúpula do G-8 em Heiligendamm reuniram-se no escritório de Bockhahn em Rostock para organizar as manifestações e, a cada vez que se encontravam, viam um Audi branco passar devagar na frente do escritório repetidamente. Na reunião, o telefone celular de Bockhahn tocava e a tela mostrava o nome de um colega que também era contra o G-8 e estava naquele momento sentado perto de Bockhahn e definitivamente não estava ao telefone. “Os espiões não parecem ter sua tecnologia sob controle”, brincaram na época. Hoje, parece que várias páginas estão faltando da cópia do arquivo do BfV para Bockhahn, páginas que cobrem precisamente o período em que as reuniões do G-8 ocorreram em seu escritório.

O Ministério Federal do Interior respondeu com uma linha de raciocínio enrolada: se a lista secreta de nomes das pessoas sob observação de fato tivesse ficado secreta, então Bockhahn não teria sabido que estava sendo vigiado e consequentemente, a confiança mútua entre o BfV e o parlamentar responsável pela monitoração não teria sido perturbada.

Uma análise do comportamento das filiais regionais do BfV mostra que não há uma política clara para lidar com Bockhahn e seus partidários. No Estado de Brandenburgo, por exemplo, onde o Partido da Esquerda faz parte da coalizão de governo, mas também sofreu escândalos repetidos em relação a membros do partido com laços com a antiga polícia secreta da Alemanha Oriental, Stasi, não há observação de membros do Partido da Esquerda pelo BfV. Em Baden-Württemberg, enquanto isso, onde o Partido de Esquerda não é representado na Câmara estadual e em geral não tem uma presença política, a agência parece considerar necessário o uso de métodos de inteligência.

O Escritório da Proteção da Constituição da Bavária, enquanto isso, gosta de esperar até pouco antes das eleições para publicar suas conclusões sobre membros do Partido de Esquerda, que veem isso como tática empregada pelos partidos governantes do Estado.

A Corte Constitucional Federal deve trazer luz à questão; seus juízes estão reexaminando a decisão problemática da Corte Administrativa Federal e deliberando sobre as queixas registradas pelo Partido da Esquerda.

Todos os envolvidos estão esperando desesperadamente que uma resposta surja da confusão. A Corte Constitucional Federal juízes da prometeram chegar a uma decisão neste ano. Já não era sem tempo.

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