segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Egito pós-transição tende a se aproximar do Irã, diz diplomata


Cesário Melantonio Neto

O Egito pós-transição tenderá a ter uma relação mais próxima com o Irã, depois de anos de afastamento sob a ditadura de Hosni Mubarak, acredita o enviado especial do Brasil ao Oriente Médio, Cesário Melantonio Neto.

Ex-embaixador na Turquia, no Irã e no Egito (seu posto até dezembro), Melantonio lembra que essa hipótese tem sido mencionada por lideranças civis importantes, como Mohamed El Baradei e Amr Moussa, e pode ser favorecida pelo Parlamento que tomará posse em março, em que partidos religiosos terão maioria.

Na semana em que completa-se um ano do início das manifestações que levaram à queda de Mubarak, Melantonio também prevê confrontos entre o novo Legislativo egípcio e os militares, que comandaram diretamente o país no último ano, por meio do Conselho Supremo das Forças Armadas.

O embaixador assumiu o cargo de enviado especial em 1º de janeiro e ficará sediado em Brasília.

Já foi, no entanto, o único representante de governos latino-americanos a participar das comemorações do aniversário da queda do ditador Ben Ali, na Tunísia.

Segundo ele, a proposta brasileira é aprofundar a colaboração com os novos governos da região por meio de programas de cooperação técnica em áreas como segurança alimentar e combate à pobreza. Abaixo, a íntegra de sua entrevista à Folha.

FOLHA - O Egito tem um peso que pode ser determinante para o futuro do mundo árabe. Como analisa o quadro político no país?
CESÁRIO MELANTONIO NETO - O Egito é o maior país do mundo árabe em população, com localização geográfica estratégica, e de de fato todos olham com o maior interesse o processo em curso.

Este primeiro semestre é um período de transição política. O novo Parlamento deve tomar posse em março, em seguida redige a nova Constituição, que provavelmente será submetida um referendo popular, e depois virá a eleição de um presidente da República.

Temos os resultados das eleições para a Assembleia do Povo, a câmara baixa, e os partidos islâmicos, o Partido da Liberdade e Justiça, da Irmandade Muçulmana, e os salafistas tiveram 70% dos votos, 45% a Irmandade e 25% os salafistas.

Até o final de 2011, as pesquisas de opinião previam bem menos, e os próprios líderes da Irmandade e salafistas com quem estive em contato não esperavam tantos votos. A Irmandade previa um máximo de 35%, e os salafistas entre 10% e 12%. Então é uma surpresa não só para estrangeiros, mas para os próprios egípcios. Agora vamos esperar os resultados da eleição para a Shura (Senado).

O sr. atribui essa surpresa a que?
Como os partidos islâmicos vinham durante 30 anos sofrendo um processo de perseguição política muito duro da parte da ditadura do Mubarak, com prisões, torturas frequentes, até assassinatos de vários de seus líderes, eles tinham uma organização muito grande de resistência. Para num eventual futuro democrático ter maior peso, usaram uma estratégia extremamente inteligente. Já que a ditadura não dava muita atenção à área social, especialmente educação e saúde, os islâmicos deram à população o que o governo não quis dar. Eles saíram muito organizados.

Os outros partidos, laicos, liberais e esquerdistas, primeiro não têm uma penetração popular como a Irmandade e os salafistas, e alguns padecem de problema de legitimidade por terem sido cooptados pelo regime do Mubarak e terem participado da farsa eleitoral.

A que o sr. atribui a resistência dos militares a entregar o poder? A ajuda militar americana, que é a segunda maior no mundo, tem influência nisso?
Acredito que é uma questão interna. O Egito tem até um Ministério da Produção Militar. Não vamos nos esquecer que o presidente do Conselho Supremo das Forças Armadas [que comanda o país desde a queda de Mubarak], marechal Tantawi, foi 20 anos ministro da Defesa do Mubarak. Os militares no Egito hoje dominam 20% do PIB, têm indústrias em várias áreas que não têm nada a ver com os militares, de eletrodomésticos, azeite, automóveis. Há um complexo industrial-militar.

Durante as seis décadas de permanência dos militares no poder, desde 1952, eles evidentemente acumularam um sistema, legalizado, de privilégios e imunidades muito grandes. Toda essa estrutura pode ruir num governo em que os militares não tenham nada a dizer.

Os militares também têm uma última preocupação: desde que houve a revolução no Egito, há um grande número de civis presos por corrupção, vários ex-ministros, Mubarak, os dois filhos de Mubarak. Como disse o doutor Mohamed El Baradei: por que não tem nenhum militar preso por corrupção? Será que só os civis eram corruptos no Egito? Agora El Baradei acaba de anunciar que não será candidato a presidente da República porque não acredita que os militares vão sair do poder.

Esse é o grande tema, nós que vivemos anos de ditadura militar e vários anos de democratização sabemos. Os egípcios nos pedem para discutir como fizemos para que os civis pudessem assumir o poder e os militares se submetam aos civis. Explicamos que foi um processo longo. Eu acredito que um dia o Egito terá um governo totalmente civil, mas que vai levar anos como levou aqui.


A esquerda e os liberais egícios, os Jovens da Revolução, acusam os islâmicos de compor com os militares para preservar o poder político recém-conquistado. O sr. prevê choques entre o Parlamento com maioria de partidos religiosos e os militares?
Acho que ninguém pode saber, porque acho que eles mesmos não sabem, qual será a estratégia dos dois lados nesse confronto. Acho que ainda estão avaliando se vão querer promover uma queda de braço ou se vão buscar uma conciliação. O que os islâmicos já disseram, e isso cria confronto com os militares, é que eles não podem mais aceitar que o orçamento das Forças Armadas não seja submetido, analisado e aprovado pelo Parlamento. Sob Mubarak, não era. Esse ponto é muito importante, porque claro que os militares não querem.

A Irmandade e os salafistas dizem que, se começarem uma nova legislatura legitimada por eleições limpas e se eximirem de examinar o orçamento militar, isso vai tirar a legitimidade do Parlamento no primeiro mês.

O sr. acredita que o novo governo vai rever o acordo de paz com Israel? Fala-se muito em revisão do ponto que não permite a presença de tropas egípcias no Sinai.
O acordo na verdade permita a presença de tropas no Sinai, mas não muitas, e em negociação com Israel. Houve no ano passado, com autorização de Israel, um aumento de tropas egípcias no Sinai, por causa do conflito entre beduínos da região e os militares. O que se fala na Irmandade Muçulmana é na eventualidade de se realizar um referendo popular que determine a continuação dos acordos, sua revogação ou uma revisão.

Pode haver um degelo nas relações entre Egito e Irã?
Hoje há relações entre Egito e Irã, há embaixadores nas duas capitais. Mas não são relações diplomáticas plenas. São escritórios de representação. O ex-presidente Mubarak não tinha nenhuma simpatia por um processo de aproximação maior com o Irã. A situação está mudando, mas não sabemos para onde irá.

Muitos líderes da sociedade egípcia El Baradei, o embaixador Amr Moussa [ex-presidente da Liga Árabe e candidato à Presidência], o embaixador Nabil Arabi, hoje secretário-geral da Liga Árabe e também pré-candidatoÐ propõem uma melhor relação com o Irã. Eu não excluo essa hipótese com um governo em que os partidos islâmicos tenham um peso grande no Parlamento. Mas não podemos prever se essa aproximação será muito intensa, de grande cooperação, ou apenas melhor do que a que existe hoje.

Qual é a posição dos militares sobre isso?
Há vários estamentos militares a favor de uma melhor relação. No ano passado, o próprio Tantawi deu autorização para que dois navios militares iranianos atravessassem o canal de Suez, para operações conjuntas com a Síria. Mas como esse governo é de transição, só poderemos saber qual é a nova política externa depois que assumir o novo governo.

A ajuda militar americana não terá um peso nessa política?
Pode ter um peso importante porque nenhum país em desenvolvimento, e hoje o Egito enfrenta muitas dificuldades, pode esquecer de US$ 1,3 bilhão por ano. Só Israel recebe mais. Mas não diria que é determinante, porque tem um grupo de militares egípcios que, como o próprio presidente Nasser [líder do movimento que derrubou a monarquia nos anos 1950], defende uma política externa independente. Ou pelo menos mais independente do que a do presidente Mubarak. Há grupos que têm essa predileção e não são pequenos.

Fala-se muito, como foi publicado na última edição da revista "Economist", em trazer de volta o acordo com o Irã que foi negociado em 2010 por Brasil e Turquia. O Brasil está interessado em voltar a essa mediação?
A proposta turco-brasileiro está na mesa. Ela não prosperou, mas hoje há vários setores da sociedade e do mundo acadêmico americanos e europeus que começam a olhar com outros olhos --não os do passado, mas os do futuro próximo--, o esforço que a Turquia e o Brasil fizeram com o Irã. Mas vai depender muito da evolução da situação regional.

Hoje vemos a Primavera Árabe, tensão entre Israel, Irã e EUA. É um momento muito complicado para reabrir a questão do dossiê nuclear iraniano, até porque não deve haver muito boa vontade neste momento de todos os lados, incluindo Irã, União Europeia e EUA.

Mas o esforço de Brasil e Turquia continua válido. Se os diversos países envolvidos na questão do dossiê nuclear iraniano quiserem contemplar uma volta do esforço, é uma proposta válida para ser retomada. Há outras propostas mais duras, mais radicais, de sanções. A posição brasileira, não só em relação ao Irã, é historicamente de ser contra sanções. A força das sanções nunca é suficiente para resolver um imbróglio. A única solução é sentar e negociar. O Brasil e a Turquia tem uma linha de crédito com o atual governo do Irã que pode ser explorada se outros países nos apoiarem.

Mas o Brasil está propondo isso a alguém?
No momento não, porque, como eu disse, não tem clima. Também temos um calendário eleitoral neste ano que dificulta uma solução diplomática, incluindo eleições nos EUA, na França, na Rússia, que têm peso no Irã. Há também eleições legislativas no próprio Irã. Ano eleitoral sempre dificulta uma negociação diplomática.

É a primeira vez que há sanções que afetam diretamente as exportações de petróleo e o Banco Central iranianos. Isso aumenta a tensão. Será possível chegar ao fim do ano?
Não sei. Mas 2012 é um ano de transição. O Irã tem suas próprias contradições internas, conflitos entre o presidente Ahmadinejad e o líder religioso Khamenei. E esses países que eu citei de grande porte, que têm grande papel no Oriente Médio, estarão definindo novos governos. Nós, que temos a perspectiva de ser um ªglobal playerº, não podemos estar fora do Oriente Médio. Vamos seguir dia a dia os acontecimentos e, quando clarear a luz no fim do túnel, ver em que direção podemos ir. É um momento que não dá para tomar decisões.

Temos procurado articular um pouco mais a política dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) no Oriente Médio. Em novembro tivemos uma reunião dos vice-chanceleres do grupo e uma declaração sobre Oriente Médio. Claro que cada um tem seu peso, a Rússia, a Índia, a China estão mais próximas do Oriente Médio; Rússia e Índia têm relação energética por comprarem petróleo do Irã. O Brasil procura consultar cada vez mais esses grande parceiros, para termos alguma posição em comum.


A turbulência no mundo árabe não chegou a afetar o comércio brasileiro com a região, não é?
Ao contrário. Houve crescimento no caso do Egito, do Irã, da Tunísia. Essa dinâmica fica até acima dos acontecimentos políticos, o que é compreensível, porque o Oriente Médio infelizmente é muito dependente da importação de alimentos. Então o Brasil é um parceiro estrutural do Oriente Médio nessa área. A importação de manufaturados está crescendo também.

E os investimentos brasileiros na região, foram afetados?
No Egito os maiores investimentos são na área de veículos e alimentos, estão lá a Marcopolo, a Friboi, a Brasil Foods. Na Líbia, são mais na área de engenharia civil, Odebrecht, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez, que têm um total de negócios de US$ 5 bilhões a 6 bilhões.

O novo governo da Líbia não opõe nenhuma dificuldade ao reinício das operações. Mas eu tive a oportunidade de conversar em Túnis com Abdel Jalil, líder do Conselho Nacional de Transição, e ele admitiu que a situação de segurança ainda está muito indefinida na Líbia. Parte do arsenal acumulado em 42 anos pelo coronel Gaddafi está na mão de milícias.

O governo quer que as milícias se desarmem e todas as armas sejam entregues ao governo central, mas várias resistem e já há episódios de choques entre milícias, um recentemente no aeroporto de Trípoli. Para qualquer empresa voltar a operar numa situação de grande instabilidade na segurança pública é complicado. Em breve nós vamos reabrir nossa embaixada em Trípoli, vamos designar um novo embaixador e retomar nossa presença, desde que a situação de segurança o permita.

No caso do Egito, não existe esse problema, mas tem o calendário eleitoral, e é natural que as empresas esperem um pouco para ver quem é quem.

As propostas brasileiras de cooperação técnica no campo da segurança alimentar e de combate à pobreza também estão esperando?
Temos que esperar porque são áreas de grande sensibilidade política e só podemos iniciar o processo com autorização do outro governo. Temos que esperar os governos definitivos, mas as propostas já foram encaminhadas aos governos transitórios da Tunísia, da Líbia e do Egito.

E a Síria? Apesar da missão da Liga Árabe, a repressão continua.
A posição brasileira é que o conflito deve ser resolvido no âmbito da Liga Árabe. O Brasil continua apoiando as gestões do secretário-geral da Liga, apesar das dificuldades que estamos observando da primeira missão de observadores. Nesta semana, a Liga vai analisar o relatório dessa missão, e o conselho de chanceleres vai decidir como dará prosseguimento.

No texto da resolução da Liga Árabe que aprovou o envio dos observadores, vemos que o objetivo é bastante ambicioso. Agora foram alguma dezenas de observadores, e no texto da resolução falam em algumas centenas, incluindo apoio humanitário, médico, hospitalar.

A cautela brasileira no caso se deveu à posição de minorias religiosas sírias, muito representadas na população de origem síria aqui, de temer ser ameaçadas com o fim do regime de Assad?
O que você chama de cautela brasileira é que ficamos preocupados com o que aconteceu na Líbia. O Brasil defende o reforço do sistema da ONU, que as crises internacionais sejam resolvidos no âmbito da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança. Não foi o que aconteceu, e achamos um precedente perigoso quando alguns países que têm certos interesses no Oriente Médio ou em outras regiões, e não conseguem atingi-los no âmbito das Nações Unidas, saem desse âmbito e, através de grupos de amigos ou grupos de contato, ou através de alianças militares como da Otan, realizem esse tipo de intervenção.

Um comentário:

  1. Esa Revulacao Primavera que CIA provoco pela Net saiu pela culatra,ta mais primavera pro Iran do que Inverno pros Yankes :)

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