sábado, 28 de janeiro de 2012

Desgoverno e anarquia das milícias mergulham a Líbia no caos, três meses após morte de Gaddafi


Comunidade internacional denuncia violações dos direitos humanos

O premiê líbio, Abderrahim al Kib (centro), fala à imprensa em Trípoli, em novembro do ano passado. Ele anunciou a formação do novo governo de transição que deve reconstruir o país depois de 42 anos de ditadura

Três meses depois da queda de Muammar Gaddafi, a instabilidade política torna cada vez mais difícil a construção da nova Líbia. A dificuldade do governo provisório para impor sua autoridade em todo o país e as suspeitas de que os abusos e as violações dos direitos humanos sobreviveram à ditadura semeiam algo mais que dúvidas sobre a capacidade das autoridades de pilotar a transição.

Os confrontos entre diversas milícias em vários pontos do país, incluindo Trípoli, não são apenas episódios isolados. Em Bani Walid, antigo bastião gaddafista no distrito de Misrata, cinco pessoas morreram nos violentos confrontos que ocorreram entre segunda e terça-feira. A notícia, logo desmentida, de que um grupo de leais ao regime defunto havia tomado o controle da cidade, desencadeou os alarmes.

O enviado da ONU na Líbia, Ian Martin, em uma audiência na terça-feira no Conselho de Segurança, mencionou o episódio como mais um sintoma da fraqueza do governo para administrar a reconciliação de todas as facções que compõem o complexo panorama político do país.

"O antigo regime pode ter sido derrubado, mas a crua realidade é que a população líbia continua vivendo com seu legado arraigado", declarou Martin. Uma herança que se expressa "na fragilidade das instituições estatais, às vezes ausentes, junto com a longa ausência de partidos políticos e de organizações da sociedade civil, que tornam a transição no país mais difícil".

"As autoridades são incapazes de manter o controle das milícias", denuncia Donatella Rovera, pesquisadora da Anistia Internacional na Líbia, que nas últimas semanas comprovou as consequências da anarquia das milícias no oeste do país: a proliferação de centros de detenção fora do controle das autoridades centrais e locais, nos quais os detidos, durante e depois da queda de Gaddafi, são submetidos a abusos e torturas. Os casos de presos mortos nessas prisões se multiplicam. O último conhecido pela ONG é o de um coronel detido e encarcerado por um grupo de milicianos ao sul de Trípoli. Seu corpo foi devolvido um dia depois à sua família. "Eu estava aqui em abril e então já vimos pessoas torturadas. Pedimos às autoridades que interviessem e investigassem. Mas desde então não se fez nada", diz Rovera.

A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) anunciou a suspensão de suas atividades nos centros de detenção no distrito de Misrata, depois que seus membros enfrentaram o pedido de tratar presos que haviam sido submetidos a tortura para que, uma vez recuperados, pudessem voltar aos interrogatórios nos quais ocorreram os abusos. Os centros estavam sob o controle das autoridades locais de Misrata, afirma Barth Janssens, diretor de operações da MSF. "Propuseram que trabalhássemos nos centros de interrogatório, o que rejeitamos imediatamente", explica.

Um responsável do governo interino líbio, em declarações à agência Reuters, rejeitou as acusações de cumplicidade nos abusos e inação diante das denúncias. "São atos individuais", afirmou, contrariando as evidências apresentadas pelas ONGs um dia depois que a alta comissária para os Direitos Humanos da ONU, Navi Pillay, manifestou no Conselho de Segurança sua preocupação sobre a situação de milhares de prisioneiros, cerca de 8 mil, na maioria fiéis ao regime Gaddafi e imigrantes de origem subsaariana detidos durante os nove meses de guerra civil pelas milícias revolucionárias. "A falta de controle por parte das autoridades centrais cria um ambiente propício para a tortura e os maus-tratos", afirmou Pillay.

A Líbia pós-Gaddafi mostra maneiras que lembram os tempos do coronel: em alguma localidade, como Bani Wald, a população se levanta contra os novos dirigentes, enquanto em outros lugares, como Misrata, torturadores que apoiam o atual regime se aplicam com afinco.

"Não estamos presentes na Líbia e não temos intenção de voltar", disse ontem o secretário-geral da Otan, Anders Fogh Rasmussen, quando perguntado sobre a situação. "Missão cumprida." "Terminamos a operação em 31 de outubro. Avaliamos que tínhamos feito nosso trabalho e o fizemos bem. Não temos nenhuma intenção de voltar. Nossa missão terminou", declarou Rasmussen na tradicional recepção à imprensa por motivo do Ano Novo. "Interviemos a partir de um mandado da ONU, e suas disposições já não estão em vigor", acrescentou, antes de lembrar em que consistia o mandado: "Proteger a população civil contra os ataques do governo de então".

A certeza de que não haverá retorno à Líbia é explicada por fontes aliadas pelo fato de que a operação Protetor Unificado se baseou em uma resolução do Conselho de Segurança que depois a Rússia considerou superada na aplicação da Otan em campo. "A Rússia não voltará a permitir uma intervenção nossa", arriscam as fontes. A Protetor Unificado, além disso, deixou à mostra insuficiências não resolvidas no sistema militar aliado, a primeira delas a absoluta dependência dos europeus da tecnologia e meios dos EUA. Politicamente, havia então uma ambição de acabar com o coronel que não existe diante dos novos senhores de Trípoli.

2 comentários:

  1. A ditadura de Gaddafi realmente era a monstruosidade mostrada pela mídia?

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  2. Obviamente que os ocidentais, especialmente americanos, irão aumentar os problemas da Líbia no governo do 'cadáver'. Mas pra mim, um homem que não era nada, tomou o poder na Líbia, enriqueceu ilicitamente e não deu nada em troca para seu povo, por si só é um monstro.

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