quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Elas levam a paz

As mulheres do Exército Brasileiro que fazem parte da missão de paz no Haiti passam meses confinadas em contêineres longe da família e dos amigos, tomam banho de água fria e vestem coletes à prova de balas de 12 quilos sob o calor de 40 graus. Realizam esse trabalho para amenizar a dor e o sofrimento das crianças e das mulheres de um dos países mais pobres do mundo

Os meninos no Haiti não choram. Se você fosse uma médica do Exército Brasileiro que passou seis meses atendendo crianças de um orfanato haitiano, voltaria para casa com essa impressão. Quando a pediatra carioca Daniela Tarta, 29 anos, foi tratar um abscesso do tamanho de uma noz na cabeça do pequeno Djevil, de 6, ele apenas fechou os olhos e mordeu os lábios enquanto ela espremia a ferida em seu couro cabeludo, sem anestesia. Durante toda a operação, que durou dez minutos, Djevil, com os olhos fechados, não pediu para a médica parar. Nenhuma lágrima escorreu pelo rosto. Com um curativo na cabeça, o menino se levantou da cadeira, inexpressivo, e sentou com outras crianças que cantavam sorridentes em um coral. Transtornado pela dor, não cantou. Apenas balançou as pernas no ritmo da música, arrastando os cadarços permanentemente desamarrados no chão de cimento. Ninguém prestou atenção nos cadarços desamarrados de Djevil. Nem na sua dor. Os pais dele morreram soterrados no terremoto que abalou a capital do país, Porto Príncipe, em janeiro do ano passado. O irmão mais velho sobreviveu, mas sumiu. Hoje, ele vive com mais 51 crianças em um orfanato em Croix-des-Bouquet, um bairro pobre de Porto Príncipe, mantido por um pastor haitiano e sua família, que, graças a doações do Exército brasileiro, passou a ter água encanada e um gerador de energia elétrica no início do ano. Os dólares doados por brasileiros garantem que haja comida no prato dessas crianças todos os dias.

“Esses meninos possuem uma capacidade impressionante de suportar a dor. Eles não têm para quem reclamar do sofrimento”, diz a pediatra Daniela. A carioca entrou para o Exército há três anos e serviu no Haiti em 2011. Durante a maior parte do tempo, trabalhou confinada no batalhão brasileiro, atendendo os militares que, assim como ela, fazem parte da Missão das Organizações das Nações Unidas para Estabilização do Haiti, a Minustah, liderada pelo Brasil (leia o quadro no fim da matéria). Pelo menos uma vez por mês ela costumava sair da base militar para atender à população nas ações sociais do Exército ou como voluntária, no orfanato onde vive Djevil. “Uma vez, fui costurar um corte no queixo de um menino. Dei uma anestesia local, mas, quando comecei a dar os pontos, ele dormiu. Fiquei impressionada.” No dia em que Marie Claire visitou o orfanato, Daniela deu uma injeção intramuscular — bastante dolorida — em uma criança de 4 anos, que também não chorou.

A capacidade das crianças haitianas de suportar a dor ajuda as brasileiras a relativizar as próprias privações. Qualquer militar do Brasil em missão no Haiti passa seis meses confinado, longe da família e dos amigos. Por ter escolhido viver no país mais pobre das Américas e um dos mais pobres do mundo durante esse tempo, a pediatra Daniela perdeu o namorado. Ele também é militar e os dois decidiram juntos se candidatar à missão depois do terremoto, quando a assistência médica se tornou ainda mais urgente no país. “Fiquei sensibilizada e achei que poderia ser uma experiência pessoal e profissional importante”, diz Daniela. A convocação dela saiu antes da dele. “Fiquei dividida, mas era uma oportunidade única”. O namorado se sentiu preterido. Ficou enciumado e terminou a relação. Daniela também acredita que o parceiro tem de vibrar com o seu sucesso profissional. “Realizei um sonho. No Haiti, a escassez é tão grande que um atendimento médico simples faz muita diferença na vida das pessoas.”

A presença de mulheres nas forças de paz vem sendo incentivada pela Organização das Nações Unidas (ONU) no mundo todo. No ano passado, o secretário-geral, o coreano Ban Ki-moon, reiterou a importância da presença feminina nessas tropas porque “elas ajudam a relaxar tensões, servem de exemplo para sociedades onde o machismo é extremo (caso do Haiti) e ainda conseguem diminuir e combater a violência sexual”, já que denúncias de abusos cometidos por soldados da ONU são frequentes. As militares brasileiras começaram a desembarcar no Haiti em 2007, três anos depois da chegada da Minustah no país, quando a segurança já estava controlada. Desde então, ocupam principalmente postos de apoio às tropas: são médicas, dentistas e tradutoras do próprio Exército.

Embora a presença delas seja crescente, ainda são minoria nos batalhões que atuam no Haiti. Em agosto, quando Marie Claire visitou Porto Príncipe, eram apenas 15 entre 2.200. Elas levam uma vida sem conforto. Dormem em beliches, dentro de contêineres de lata brancos, com a sigla imponente das Nações Unidas pintada em preto do lado de fora. O chão é coberto por uma lona. Os alojamentos, apesar de simples, têm ar-condicionado e internet sem fio. Os chuveiros, também instalados dentro de contêineres, não têm água quente. Por causa do surto de cólera que atingiu o país no ano passado, a água que abastece os batalhões tem alta concentração de cloro. Irrita peles sensíveis e deixa os fios de cabelo secos. De qualquer forma, a vida delas é confortável num país onde cerca de 300 mil pessoas vivem em barracas nos campos de refugiados, depois de terem perdido a casa no terremoto. A população do país é de 10 milhões e de Porto Príncipe, 3 milhões. Mesmo casas de alvenaria da capital haitiana não têm energia elétrica nem água encanada. Não é difícil encontrar mulheres e crianças nuas nas ruas. Elas tomam banhos em poças de água, nos rios enlameados e até mesmo nos esgotos.

Durante o expediente, as militares vestem farda. Não podem pintar as unhas de vermelho nem cores escuras e, se têm os cabelos compridos, devem amarrá-los em um coque. Nos momentos de descanso, não podem usar decotes, saias nem shorts curtos. Quando saem da base, costumam vestir um colete à prova de balas de 12 quilos sobre a farda, capacete azul — símbolo das forças de paz da ONU —, cotoveleiras e joelheiras. Elas vestem o conjunto, apelidado de “tudão”, sob o calor de 40 graus.

As haitianas também suportam muito peso. É comum vê-las buscando água em poços artesianos espalhados por Porto Príncipe. Elas caminham pelas ruas empoeiradas e imundas — não há coleta organizada de lixo — com a lata de água equilibrada na cabeça, o corpo esguio, as mãos livres. A cadência do quadril garante que o balde chegue cheio em casa. Crianças, mesmo as que estão aprendendo a andar, carregam garrafas d’água nas mãos, ajudando suas mães.

Na cultura haitiana, as mulheres e crianças são menos importantes do que os homens. Quando uma família tem pouca comida, o primeiro a comer é o pai, depois a mãe, o filho mais velho. O caçula é o último. O estupro só virou crime no país em 2005. As agressões feitas por maridos ciumentos são, muitas vezes, tomadas como demonstrações de amor. Funcionários da precária delegacia da mulher de Porto Príncipe, em Bel Air, um dos bairros mais pobres da capital, dizem receber cerca de cinco reclamações diárias de mulheres que apanham dos companheiros. A delegacia funciona em uma barraca dentro do Forte Nacional, ocupado pelas tropas brasileiras. A mesa do delegado fica embaixo de uma árvore. Hostis, os policiais bufavam durante a entrevista e não responderam sobre a frequencia com que esse tipo de violência é punido.

Pedradas e garrafadas são as agressões mais comuns contra mulheres. Em uma ação do Exército, a dentista gaúcha Ana Anhalt, 39 anos, atendeu uma mulher que foi apedrejada pelo marido. “Era uma menina de uns 20 anos. Os lábios estavam cortados e ela perdeu os dentes da frente. Chorava muito.”

Os militares brasileiros só andam escoltados pela cidade. Por conta da proteção das espingardas calibre 12 dos soldados, carregadas de balas de borracha, as brasileiras não estão tão sujeitas à violência. “Mas um dia eu estava participando de uma corrida de rua e um menino de uns 10 anos passou a mão na minha bunda. Isso mostra como eles veem as mulheres”, afirma Ana. Dentro da base, o namoro entre militares é proibido. “Os homens do Exército sempre nos respeitaram. Nunca tivemos problemas de assédio”, diz a dentista.

Ela conta que a presença das mulheres na tropa era motivo de preocupação do seu chefe. “Não podíamos conversar por muito tempo com um homem que o subcomandante achava que estávamos tendo alguma coisa”, afirma. “Nunca aconteceu nada. Éramos poucas e estávamos em evidência o tempo todo.” Num ambiente predominantemente masculino, onde a novela foi substituída pelas lutas de vale-tudo na televisão, as mulheres não passam despercebidas.

A obstetra fluminense Daniella Gil, 35 anos, voltou do Haiti no ano passado. Ela chegou a Porto Príncipe em maio de 2009. A volta para o Brasil estava prevista para o fim de janeiro de 2010. No dia 12 de dezembro daquele ano, às 17 horas, ela estava digitando planilhas no computador do ambulatório quando ouviu um estrondo e sentiu o contêiner onde estava tremer. Seringas, remédios, gazes e saquinhos de soro caíram no chão. “Achei que um caminhão tivesse batido no contêiner. Não imaginei que fosse grave.” Na sequência, começou a ouvir os gritos de desespero que vinham de fora da base militar. Pedidos de socorro, uivos de dor, choro. Ela correu para o pátio onde os militares se reuniram. “Foi quando soube que aquilo era um terremoto. Fiquei perplexa, um pouco assustada, mas não tinha a dimensão da tragédia.”

Enquanto os militares brasileiros se reuniam no pátio para coordenar um plano de ação, centenas de haitianos machucados entraram na base em busca de ajuda. “Os negros estavam brancos por causa da poeira e do cal. Pais chegavam com filhos mortos nos braços. Quando dei a notícia ao pai de uma menina de 4 anos que a filha dele não podia ser reanimada, começou a gritar que ia nos matar. Logo, caiu em si e em prantos. Não tive tempo de deixar a emoção extravasar. Havia muita gente machucada precisando de atendimento. Foi assim durante toda a noite. Até hoje lembro o desespero de um policial haitiano que trabalhava conosco e que perdeu a famí¬lia toda naquele momento.”

Algumas horas depois do terremoto, chegou à base militar uma grávida prestes a parir. O pai da criança era um pastor que morava nas redondezas do batalhão. A obstetra fez o parto em meio à confusão. Nasceu uma menina. Os pais decidiram dar o nome do bebê de Daniella, em agradecimento à médica. Naquela mesma noite, a médica Daniella fez mais dois partos. Outra recém-nascida ganhou o seu nome. “Passei a noite trabalhando, a terra ainda tremia. Dormi algumas horas pela manhã, acordei e voltei a atender. Durante os três dias que se seguiram ao terremoto, só dei umas cochiladas.”

Num momento de descanso, Daniella mandou um e-mail para amigos e parentes contando os detalhes do que estava vivendo (leia o texto). O e-mail caiu nas mãos de uma professora de medicina do Rio Grande do Sul, que leu o texto para os alunos na sala de aula, como um exemplo da causa maior da medicina. Daniella ficou um mês além do previsto no Haiti. “Quando voltei, fiquei semanas calada, introspectiva, tentando entender o que vivi. Até hoje me emociono quando lembro da solidariedade de militares e civis que nunca tiveram nenhum preparo para lidar com feridos ou mortos e nos ajudaram porque éramos poucos médicos diante da catástrofe.” Quando soube que Marie Claire iria ao Haiti, Daniella mandou um presente para a sua pequena xará, a menina de quem fez o parto no dia do terremoto. Como no Haiti muitas ruas não têm nome e muitas pessoas não têm RG, não conseguimos localizar a Daniella hatiana.

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