sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Os iranianos "nos enganaram", diz ex-agente de fiscalização de energia nuclear

Olli Heinonen

Em entrevista ao “Spiegel”, Olli Heinonen, ex-vice-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica em Viena, oferece a primeira avaliação de seus 27 anos na agência de fiscalização mundial nuclear. Ele fala do programa nuclear iraniano, de suas preocupações com a segurança do arsenal nuclear paquistanês e dos erros cometidos em Fukushima. 

Spiegel: Senhor Heinonen, quando o senhor pensa no tempo que passou na fiscalização atômica da ONU, o senhor fica revoltado? Ou o senhor teve sucesso em tornar o mundo mais seguro em relação às bombas atômicas?
Heinonen:
Há várias coisas das quais me orgulho. Enquanto eu estava na Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), tivemos um papel significativo em colocar Abdul Qadir Khan –o mais perigoso contrabandista nuclear de todos os tempos- fora de ação. Mas quando eu penso nas atividades nucleares de certos Estados, por exemplo, no programa nuclear do Irã, tenho que dizer que nos permitimos ser tranquilos demais. Deveríamos ter feito mais do que nossas inspeções. Sim, olhando para trás talvez poder-se-ia dizer que fracassamos.

Spiegel: O senhor parece preocupado. Teerã realmente está em um vias de se tornar um Estado nuclear?
Heinonen:
É inegável que o programa nuclear iraniano está muito mais avançado do que em 2003, quando foram descobertas as instalações de Natanz. Na época, os testes de enriquecimento de urânio estavam sendo executados em segredo em pequena escala. Mas no final de 2003, os iranianos admitiram que também estavam planejando montar um reator de água pesada em Arak para gerar plutônio.

Spiegel: Em outras palavras, o outro ingrediente necessário para criar uma usina nuclear ou uma bomba atômica.
Heinonen:
O Irã sempre nos disse que só estava interessado nos usos civis da energia atômica. Sempre tive minhas dúvidas a respeito disso, hoje mais do que nunca.

Spiegel: Por que o senhor não fala como seu antigo chefe, Mohamed ElBaradei: que vocês não encontraram a “arma do crime” – ou seja, prova de que o Irã está desenvolvendo armas nucleares?
Heinonen:
Antes dos oponentes do regime iraniano exporem a existência de Natanz, Teerã manteve partes do programa nucelar em segredo por duas décadas. Hoje, os fatos são os seguintes: a usina de conversão em Isfahan produziu 371 toneladas de hexafluoreto de urânio. Cerca de 8.000 centrífugas em Natanz estão sendo usadas para enriquecer esta matéria prima. Em fevereiro de 2010, o Irã começou a aumentar o enriquecimento para 20%. Esse é um passo significativamente mais próximo para se fabricar uma bomba atômica, porque são necessários poucos meses para, a partir daí, gerar material de grau para armas. E no início desde ano, Fereydoun Abbasi foi nomeado diretor da organização de energia atômica em Teerã...

Spiegel: ...um cientista que está desde 2007 na lista da ONU de suspeitos de desenvolverem bombas, a quem o Conselho de Segurança da ONU proíbe de viajar ao exterior e que mal sobreviveu a uma tentativa de assassinato em Teerã há 10 meses, provavelmente pelo serviço secreto israelense.
Heinonen:
No início de junho, Abbasi anunciou que o Irã estava transferindo o urânio enriquecido a 20% de Natanz para Fordow, onde estavam triplicando a produção. Incidentalmente, a construção da usina de Fordow perto de Qom estava tão encoberta em sigilo que as autoridades iranianas só admitiram sua existência há menos de dois anos.

E nada disso faz sentido para um programa nuclear civil?
Heinonen:
Você não precisa de urânio enriquecido a 20% para gerar eletricidade para acender lâmpadas. E, de qualquer forma, os volumes produzidos excedem muito o que o Irã poderia precisar para seu reator de pesquisa. E mais, Teerã anunciou que pretende construir 10 outras usinas de enriquecimento, e especialistas iranianos conduziram experimentos com fontes de nêutron e detonadores altamente explosivos que só fariam sentido para aplicações militares. Eles também estão progredindo no reator de água pesada de Arak. Tanto assim que até 2014 eles terão suficiente plutônio para produzir uma bomba atômica.

Então o senhor acha que o Irã vai se declarar uma nação atômica em 2014? Os líderes da teocracia já terão uma bomba então ou somente vão ameaçar de montar uma?
Heinonen:
Não sei. Contudo, estou convencido que Teerã vai alcançar a “capacidade de atômica” –em outras palavras, a capacidade de produzir urânio em grau de armas- até mesmo no final do ano que vem. Neste sentido, o Irã quer ser uma potência nuclear virtual com a capacidade de produzir as piores armas de todos os tempos.

O programa iraniano não foi prejudicado pelo vírus de computador Stuxnet, que os cientistas israelenses aparentemente criaram e usaram para danificar as instalações em Natanz?
Heinonen:
Com certeza teve um efeito postergador e foi tão eficaz que, em minhas estimativas, derrubou quase todas as 2 mil centrífugas de Natanz. Mas os cientistas iranianos são espertos e contornaram o problema.

O senhor é a favor de bombardear o Irã, como o primeiro-ministro israelense Netanyahu ainda parece considerar?
Heinonen: De forma alguma. Concordo com o ex-diretor da Mossad, Meir Dagan, que considera “insano” dar um primeiro passo desses. Nem conhecemos todos os pontos que teriam que ser bombardeados.

Como assim?
Heinonen:
É quase certo que o Irã tem instalações secretas com materiais escondidos e provavelmente poderiam começar a enriquecer urânio rapidamente novamente se Natanz fosse destruída. Os líderes políticos do Irã certamente não iam deixar a Aiea voltar ao país após um ataque desse tipo, e eles colocariam todos os seus esforços para produzir o máximo de bombas atômicas que pudessem. E eu suspeito que teriam o apoio da grande maioria do povo iraniano. Não sou político, mas não ouso pensar as consequências de tal desdobramento, sem mencionar a possibilidade de ataques de retaliação contra Israel e o Ocidente.

Então é melhor deixar Teerã fazer como quiser e se concentrar em limitar as chances de que consiga produzir uma bomba?
Heinonen:
Deveríamos levar os iranianos a se aterem ao protocolo adicional para o acordo de salvaguardas, que Teerã já concordou em ratificar e que garante à Aiea o direito de executar tantas fiscalizações quanto quiser, mesmo sem anúncio. Se os líderes iranianos continuarem a não cumprir as obrigações do país, então o Conselho de Segurança da ONU deve reagir com um aumento progressivo das sanções, passo a passo.

Isso até agora não levou a nada. E, com todo o respeito, parece uma estratégia bem impotente. Olhando para trás, o senhor não acha que a Aiea tem sido um cão de guarda sem dentes?
Heinonen:
Toda organização global é apenas tão forte quanto seus membros querem que seja. E não esqueçamos que os iranianos sempre foram muito espertos em suas ações. Oficialmente, eles mantiveram suas obrigações...

...e ao mesmo tempo brincaram de esconde-esconde com os inspetores internacionais repetidamente com as novas usinas.
Heinonen:
Nós protestamos oficialmente, mas eles nos enganaram e usaram o tempo criativamente para continuar avançando. Meu antigo chefe e bom amigo Mohamed ElBaradei nunca achou que era tarde demais para agir, mesmo que o Irã tivesse violado todos os acordos, obtido material nuclear e se seu programa de armas já estivesse em seus estágios finais.

O sucessor de ElBaradei, Yukiya Amano, do Japão, que está dirigindo a Aiea desde dezembro de 2009, adotou uma retórica mais dura contra o Teerã...
Heinonen:
...o que é mais alinhado com a perspectiva do Departamento de Salvaguarda da Aiea. Mas a situação também piorou consideravelmente na Síria nos últimos anos. Como Teerã, Damasco agora está resistindo à pressão da comunidade internacional.

Israel não fez o papel da Aiea em 2007, quando enviou aviões para bombardear um reator secreto sírio perto de Deir Al-Sur, em um ataque noturno? Ou há base para duvidar dessa história, que o “Spiegel” ajudou a revelar, mas nunca foi confirmada oficialmente?
Heinonen:
Todas as evidências parecem sugerir que o prédio destruído de fato era um reator nuclear. Mas Aiea só teve uma oportunidade de inspecionar o local. Acho que a Aiea deveria ter exercitado seu direito a uma inspeção especial. Eles não autorizaram nossa entrada na Síria para pesquisar mais e assim permanece até hoje. É uma ruptura clara e sancionável dos acordos. Incidentalmente, o reator de Deir Al-Sur é muito parecido com o reator norte-coreano de Yongbyon. A Coreia do Norte pensa na bomba como “uma espécie de seguro de vida”.

O senhor tem lembranças especiais de Yongyon.
Heinonen:
Sim, morei lá com os cientistas norte-coreanos por vários meses nos anos 90, como inspetor da Aiea. Foi uma época muito dura. Não havia aquecimento, mesmo no inverno rigoroso, e tivemos que lutar muito para conseguirmos que enviassem aquecedores. Nem mesmo a vodca destilada localmente ajudava a aplacar o frio. Tudo foi bem enquanto pudemos manter um olho nas coisas. Mas em 2002, Kim Jong-Il decidiu retirar-se do Tratado de Não Proliferação Nuclear e construir a bomba.

Então, em 2008, os norte-coreanos testaram sua primeira bomba atômica. Isso marcou o fim de suas viagens a Pyongyang?
Heinonen:
Não. As coisas voltaram a melhorar um ano depois. Pude retornar e monitorar o desmantelamento do reator de Yongbyon.

Desde então, dizem que o trabalho foi retomado secretamente em uma nova instalação de enriquecimento de urânio e na construção de um novo reator. Kim Jong-Il considera a medida politicamente útil e acredita que a Líbia fez um erro em desistir de suas ambições nucleares. A mídia estatal de Pyongyang chegou até a escrever que essa é a única razão por que a Otan ousou bombardear o país.
Heinonen:
O regime claramente considera a bomba atômica como uma espécie de seguro de vida.

Há rumores de que o senhor possa ser “reativado” como negociador, devido aos seus contatos pessoais com os norte-coreanos. É verdade?
Heinonen:
Não posso confirmar isso. É verdade que os norte-coreanos assinalaram sua disposição em negociar, e acho que devemos cobrar isso deles.

A Coreia do Norte beneficiou-se do mercado negro do terror. Sem Khan, pai da bomba paquistanesa que depois comercializou o conhecimento e materiais atômicos, Pyongyang provavelmente nunca teria ido tão longe.
Heinonen:
E não apenas a Coreia do Norte. Tampouco o Irã e a Líbia.

O senhor jamais se encontrou com Khan? Ao menos pôde questioná-lo após sua prisão em Islamabad em 2004?
Heinonen:
Segui sua trilha por anos e encontrei vários de seus confidentes. Mas nunca cheguei a conversar com ele. Ainda assim, ele respondeu algumas das minhas perguntas por escrito por meio de canais secretos.

De sua prisão domiciliar, ele agora insiste que não teve nada a ver com a transmissão de segredos nucleares ou ter feito acordos lucrativos. O senhor acredita nisso?
Heinonen:
Fico com lágrimas aos olhos. É claro que Khan foi o pior contrabandista do mercado negro e fez milhões com isso. Mesmo assim, é bem possível que outros –por exemplo, generais paquistaneses ou altas autoridades do serviço secreto- tenham lucrado ainda mais que Khan. É mais provável que as autoridades políticas do país tinham consciência de seus contratos.

Assim como a Índia e Israel, o Paquistão nunca assinou o Tratado de Não Proliferação Nuclear. A Aiea, portanto, nunca pôde entrar para fazer suas inspeções...
Heinonen:
...e isso me preocupa, especialmente no caso do Paquistão.

Por que terroristas podem ter acesso às instalações?
Heinonen:
Isso também não é tranquilo. Mas estou ainda mais preocupado com as políticas oficiais do governo. As cinco potências atômicas mundiais clássicas –EUA, Rússia, China, França e Reino Unido- pararam toda a produção de material físsil e agora estão negociando para a redução de seus arsenais nucleares. Isso não acontece no Paquistão. O país está indo na direção oposta; construindo novas armas, aumentando sua produção de plutônio e continua a produzir urânio altamente enriquecido. Parece que o Paquistão está no processo de construir outro reator, o quarto, provavelmente para poder lançar um contra-ataque no evento de uma guerra nuclear.

O presidente norte-americano, Barack Obama, está propagando um mundo livre de armas nucleares. Será um sonho totalmente utópico?
Heinonen:
Tais visões audaciosas são importantes. Afinal, o homem conseguiu abolir a guilhotina. Por que então não deveríamos ter um mundo sem armas nucleares?

A proposta da Aiea é de impedir a proliferação de armas nucleares, ainda assim um de seus objetos declarados é a promoção de materiais físseis para uso civil. O desastre nuclear de Fukushima gerou dúvidas sobre isso?
Heinonen:
O mundo precisa da energia atômica – e vai continuar precisando por um longo tempo. Não há energia alternativa acessível para as nações em rápido desenvolvimento.
  
A energia nucelar acabou na Alemanha. O senhor acha que a decisão de Berlim de abandonar a energia atômica foi irracional?
Heinonen:
Para ser honesto, acho que é uma reação exagerada.
Então o senhor considera os riscos calculáveis?
Heinonen:
Sim. Mas é verdade que, como Fukushima em particular demonstrou, temos que incluir cálculos para os cenários até mais improváveis. Neste quesito, fomos irresponsáveis lá. Os japoneses não fizeram isso e foi um enorme erro –assim como a reação da Aiea à catástrofe.

O senhor está sugerindo que seus antigos não chegaram com rapidez suficiente ao local do acidente?
Heinonen:
Por vários dias, a Aiea só seguiu o protocolo. Reagiu como um corpo de bombeiros que observa um enorme incêndio, mas diz: “Desculpem, mas a rota para lá seria uma via de mão única. Melhor ficarmos longe”. Foi só no final que eles apareceram na cena do desastre com seus próprios especialistas e medidores. Precisamos de padrões de segurança mais altos. As instalações nucleares precisam ser muito melhor preparadas para a possibilidade de falta de energia, tanto a normal quanto a de emergência. As instalações nucleares também precisam de maior proteção contra ataques terroristas e roubo de materiais atômicos.

O senhor ainda está em contato com ElBaradei?
Heinonen:
Sim, recentemente ele me enviou uma mensagem de texto para dizer sobre os últimos desdobramentos no Cairo e no mundo da energia nuclear.

Ele vai se tornar o próximo presidente do Egito?
Heinonen:
Acho que não. Ele é um político altamente habilidoso que sempre procura um equilíbrio, mas acho que um diferente tipo de político é necessário nas ruas do Cairo. Ainda assim, os egípcios deveriam aproveitar sua dedicação. Afinal, não vão encontrar pessoa melhor para escrever uma nova constituição democrática.

Pergunta: E o senhor? O senhor tem desejos de voltar ao seu trabalho excitante como fiscal da energia atômica?
Heinonen:
Até certo ponto. Gosto de minhas liberdades acadêmicas aqui nos EUA. Ocasionalmente faço um pequeno desvio e acompanho a política.

Senhor Heinonen, obrigado por esta entrevista.

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