terça-feira, 25 de outubro de 2011

"Farc deveriam aprender com o final do ETA", diz juiz que combateu grupo separatista basco

Há 22 anos, quando começou a trabalhar na Audiência Nacional [Ministério Público], adotou como "objetivo pessoal" acabar com o ETA. Na quinta-feira (20), quando o bando anunciou finalmente o fim definitivo da violência, o juiz Baltasar Garzón (nascido em Torres, Jaén, em 1955) estava muito longe daquele escritório, em Bogotá (Colômbia), suspenso e à espera de julgamento por sua investigação dos crimes do franquismo. Ele que provavelmente foi o pior inimigo da organização terrorista compartilhou com "El País", de Seattle (EUA), também muito longe das comemorações, sua análise do que aconteceu e do que está por vir.

Imagem capturada de vídeo mostra três integrantes do grupo separatista basco ETA
durante pronunciamento de cessar-fogo permanente

El País: O que o senhor sentiu ao ver o comunicado?
Baltasar
Garzón: Estava em Bogotá e senti uma mistura de alegria contida e de dúvida, porque outras vezes estivemos em situações semelhantes, mas nesta ocasião parece que a organização terrorista tomou a decisão unilateralmente, sem exigir nada. Alegria, mas contida, e a expectativa de que isso é o final, mesmo que seja lento.

El País: Foi difícil viver tão longe da Audiência Nacional?
Garzón:
Eu me sinto na Audiência Nacional, mesmo que esteja temporariamente suspenso, porque meus companheiros continuam trabalhando na mesma linha e terão de continuar a fazê-lo, porque agora se abre uma expectativa que ainda não está isenta de riscos. É tão importante construir o final como combater o princípio. O ETA percebeu que não tem sentido a violência para perseguir ideias políticas, e é isso que conta. Estou muito contente de que isso tenha acontecido, e trabalhando em âmbitos muito parecidos com os da Audiência. Agora estou na Colômbia, na missão de apoio ao processo de paz. Creio que as Farc deveriam aprender com este final do ETA.

El País: De quem o senhor se lembrou? Tinha amigos entre as mais de 800 vítimas do bando?
Garzón:
Sim. Tinha o sargento maior da Ertzaintza, Joseba Goikoetxea, assassinado em 1993, que eu apreciava muito. Ele via muito bem, de sua posição nacionalista, que o terrorismo não era o caminho, lutou claramente e pagou por isso. A promotora Carmen Tagle, cuja coragem fizeram pagar com seu assassinato. Muitas pessoas nas forças e corpos de segurança do Estado. Lembrei-me da dor do assassinato de Tomás Yahoo Valiente, quando levantei seu cadáver na garagem da faculdade de direito da Universidade Autônoma. E do ataque contra a direção geral da Guarda Civil. Vi a fumaça de casa e saí correndo pela rua. Veio a minha mente tudo o que aconteceu desde 1988, quando entrei na Audiência Nacional, quando o final da organização parecia uma ilusão, até agora, que é uma realidade. Lembrei-me de todos os companheiros, juízes, promotores, funcionários da justiça. E, é claro, de todas as vítimas, porque este é um êxito delas. É penoso que o ETA fale da dor de seus companheiros caídos e não tenha nem uma palavra para as vítimas. Será preciso exigi-lo, se aspiram à credibilidade. E me lembrei também de momentos muito doces. Estar presente na libertação de José Ortega Lara foi algo impressionante.

El País: O último comunicado do ETA é seu final?
Garzón:
É a primeira vez que o ETA dá um passo desta envergadura, e a tudo isso precedeu um tempo importante de inatividade violenta. Foi cortando as ações, inclusive logísticas, e simultaneamente o âmbito em torno da organização foi tendo uma projeção política muito mais importante, marcando a pauta pela primeira vez, em consequência da fragilidade do setor armado e com o Estado golpeando-os ano após ano. Perderam a oportunidade de 2006. Não lhes resta muita opção.

El País: Por que acredita que o ETA tomou essa decisão agora?
Garzón:
Por um lado, a convicção de que sua ação terrorista não teve os êxitos que pretendiam. Isso se deve à ação firme do Estado, entendendo por Estado a todos e cada um dos que o formamos. Na Espanha o terrorismo foi combatido durante muitos anos, mas o assassinato de Tomás y Valiente, o sequestro de Ortega Lara e o assassinato de Miguel Ángel Blanco marcaram um ponto de inflexão: a sociedade espanhola passou da indiferença aparente à indignação ativa contra o terrorismo. Isso fez que as instituições também percebessem que precisavam dinamizar sua atividade. No âmbito da justiça, teve muita importância a visão global da organização terrorista, não só como grupos violentos ativos, mas como todo um tramado político, midiático e financeiro.

El País: O senhor considera possível uma cisão violenta no seio do grupo?
Garzón:
Sempre pode haver, mas creio que nesta ocasião não é possível. O ETA não tem uma liderança muito forte e os líderes que restam são a favor dessa decisão. Não foi algo traumático, foi algo muito premeditado, muito calculado, também encenado através de um discurso político que vem se projetando no entorno da organização há dois anos. O ETA percebeu que o impulso político é o único que vale para defender esses postulados. Será bastante difícil que haja pequenos grupos que discordem. Em todo caso, as forças de segurança não vão deixar de fazer seu trabalho. Todos temos de continuar cumprindo, mas de uma perspectiva totalmente diferente. Quando chegar o momento, tudo terá que ser estudado. No ordenamento jurídico espanhol há margem para estabelecer essas pautas e essas medidas que possam favorecer um cenário totalmente diferente. O importante é que todos os atores estejam na mesma linha. A situação é suficientemente importante para que não se ouçam vozes fora do tom, como as que infelizmente ouvimos nestes dias.

El País: E agora? Como o senhor imagina o final desse processo?
Garzón:
É prematuro dizer. A grande diferença de situações anteriores é que [os "etarras"] abandonam definitivamente a luta armada e não aparecem como interlocutores. Não exigiram uma negociação da qual façam parte. O que dizem é que o governo espanhol e o francês dialoguem para chegar a pontos que, é claro, interessam a eles. É curioso porque definitivamente, mesmo com a linguagem crítica que costumam utilizar, estão apelando para que a democracia e a discussão política funcionem. Agora, na dinâmica de qualquer organização armada começa toda uma trama de entrega das armas e de situações colaterais no âmbito político para defender alguns dos postulados políticos da organização. Serão o Estado, a justiça, as instituições que estabelecerão essa pauta.

El País: O senhor acredita que faltam anos para esse processo?
Garzón:
Não deveria. Mas não devemos nos precipitar. O final é mais difícil que o princípio. Será preciso ter muita união e assumir uma política integral, de Estado. Todos os grupos políticos devem estar conscientes de que é uma oportunidade única e que a época do confronto entre os democratas à custa do terrorismo deveria estender também seu atestado de óbito.

El País: Qual é essa margem de atuação que o Estado de direito tem a partir de agora?
Garzón:
Ela existe em todos os momentos históricos em que organizações terroristas enfrentaram um final não pactuado, como neste caso. Aqui a grande novidade é que não houve impacto, nenhuma ação de aproximação nem por parte do governo espanhol nem por parte do ETA. Foi um processo interno que levou o bando tomar essa decisão, em função de sua fragilidade e da conscientização de que qualquer ação que continuasse seria contestada com firmeza. Que imagem existe? As leis que o estabelecem. Será preciso diferenciar quem está condenado, quem está pendente de julgamento, quem em paradeiro desconhecido e precisa se submeter à ação da justiça, como e quando serão entregues as armas, que é o que o ETA realmente deveria ter feito: entregar as armas e dissolver-se. Imagino que eles vão jogar com isso, mas creio que aos poucos essa entrega de armas acontecerá, dentro da lei e marcando os diversos cenários. No político já está muito claro: que defendam as ideias dentro de instituições democráticas. E no judicial terão de se submeter às normas, que sempre podem ser modificadas em função do cenário no qual nos movamos e diante de uma dissolução absoluta.

El País: Que tipos de normas poderiam ser modificadas?
Garzón:
Os governos espanhol e francês terão de dialogar em função dos limites de cada um sobre "as consequências do conflito". É preciso analisar caso a caso, e não se podem dar soluções definitivas e a priori porque ainda não sabemos o que a organização vai fazer. A única coisa que fez é um manifesto de intenções que parece definitivo, mas que agora precisa se concretizar em fatos como a entrega das armas. A partir daí será preciso analisar que tipo de benefício se pode conceder àqueles que se submeterem à lei: desde reduzir as penas a outros cenários diferentes. Quando o ETA fizer bastante mais que anunciar esse início, então essas outras medidas compensatórias poderão ser tomadas, mas não antes.

El País: O que representou o ETA em sua vida pessoal e profissional?
Garzón:
Em minha vida profissional representou tudo. Foi um alvo permanente. E pessoalmente representou uma dedicação acima de tudo, inclusive da própria vida, mas não me arrependo. O profissional e o pessoal se confundem e sinto-me orgulhoso de ter podido participar da primeira linha durante tantos anos dessa perseguição, desse combate legal. Sinto-me feliz por estar falando disso e ver o final.

El País: O senhor acredita que os atalhos para o Estado de direito, os GAL, retardaram esse final?
Garzón:
Não sei. Nunca deveria ter acontecido, e quando se teve de atuar a partir da justiça, se fez e simultaneamente se combateu o terrorismo. Essa crença de alguns de que os atalhos valem, no final se transforma em algo muito pior: lhes dão uma justificativa que não têm. A Espanha viu isso claramente e avançou para estreitar as possíveis margens de atuações fora da legalidade, estabelecendo mecanismos que evitaram os maus-tratos, torturas...

El País: O senhor foi o primeiro a dizer que o ETA era muito mais que seus comandos. Que o ETA também era o Batasuna. O Bildu é o ETA?
Garzón:
Não. O Tribunal Constitucional já disse que não. Está nas instituições. A dinâmica do Bildu é diferente da que houve em ocasiões anteriores, e assim o viu o Constitucional. Eu não estava mais na Audiência Nacional, e creio que foi a única ocasião em que não houve uma investigação judicial penal que visse esse conteúdo que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos exige para que se possa afirmar essa vinculação. Não tenho dúvidas de que o Bildu [e o ETA] tomaram caminhos divergentes. E se não fosse assim, ou quando ocorram atos que acreditem o contrário, será preciso atuar com a mesma contundência, mas sempre sobre provas, evidências e investigações. Eu comecei a reunir informação em 1989 para começar a tomar as primeiras medidas contra o entorno do bando em 1998. Muita gente não acreditava, mas a partir de um determinado momento o Ministério do Interior, tanto Jaime Mayor Oreja, do PP, como depois Alfredo Pérez Rubalcaba, todos entenderam que esse era um caminho importante, e que o ETA não era só uma organização armada.

El País: O ETA tentou matá-lo com uma garrafa de conhaque envenenado. O que o senhor pensou quando soube?
Garzón:
Quando foi isso? Não me lembro. Sim, lembro que tinham planejado disparar da Calle Génova. Tinham um estudo da posição de meu escritório e de minha poltrona para disparar com uma arma longa. Quando a polícia me disse, eu lhes disse que continuássemos para ver se essa possibilidade se concretizava e conseguíamos detê-los, mas o plano foi conhecido e frustrado. As ameaças são nada se você tem a convicção de que faz o que está fazendo porque quer. Eu sempre fui voluntário na Audiência Nacional, e quando saí não foi voluntariamente. Você não pode não dar tudo quando a sociedade está perdendo tanto. Seria uma imoralidade que você se protegesse, e nesse sentido nunca me afetou esse tipo de questão. Houve pessoas que perderam muito mais do que nós, que ainda estamos aqui para contar.

El País: O que passou por sua cabeça quando viu as imagens de Gaddafi sendo linchado pelos rebeldes? Deveria ter sido assim?
Garzón:
Nunca fui partidário de que o final de um ditador e um suposto criminoso seja ser linchado, assassinado, executado, porque também não sou partidário da pena de morte. Eu teria gostado, como disse no momento em que isso ocorreu no Iraque com Saddam Hussein, de vê-lo diante de um tribunal, e neste caso o de Haia, prestando contas dos crimes cometidos diante de suas vítimas. Ainda mais levando-se em conta que durante alguns meses, antes de eu ir para a Colômbia, quando estive trabalhando com o promotor Luis Moreno Ocampo no caso da Líbia no Tribunal Penal Internacional, vimos claramente essa incidência criminosa contra os líbios. Eu teria gostado que ele prestasse contas à justiça.

El País: O senhor está preparado para sentar-se no banco dos réus?
Garzón:
Absolutamente. A única coisa que quero é que se faça justiça, que até o momento não estou tendo, pelo menos na celeridade. Eu gostaria que se apressassem mais. Sinto-me e sou inocente do que estão me imputando. Tomem a decisão que tomarem, vou combater e defender meu sistema de trabalho e de interpretação da lei, porque definitivamente por isso estou aqui: por querer dar proteção às vítimas e combater o crime organizado com as armas que a lei dá. Nem uma a mais, e nem uma a menos.

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