O sonho de Rangina Hamidi terminou. Há oito anos ela voltou para Kandahar para realizá-lo. Depois da queda do regime taleban, queria participar da reconstrução do país onde nasceu. Daqui a algumas semanas ela irá definitivamente se instalar nos EUA, país que a adotou quando era menina. A gota que transbordou o copo de sua resistência anímica foi o assassinato de seu pai, o prefeito de Kandahar, ocorrido há algumas semanas.
"Falam-nos de segurança e toda vez que saímos à rua pensamos que vão nos matar", explica essa mulher em uma cidade onde já ocorrem regularmente ataques taleban no centro urbano. Sua pergunta: "Quem controla Kandahar?", tem duas respostas. Uma testemunhal, talvez mais evidente: "A mobilização de milhares de soldados afegãos e estrangeiros parece torná-la impenetrável". Uma real, que corta como uma faca afiada: "Os taleban nos controlam mentalmente há dois anos".
Sua dor se aguça quando pensa que foi ela quem animou seu pai, Ghulam Haider Hamidi, um homem incorruptível em um país impossível, a regressar do exílio americano em 2007 e aceitar o importante cargo de prefeito. Antes de partir ela precisa viajar à capital para reclamar os cinco meses de salário que lhe deviam antes de sua morte, em um atentado que comoveu toda a cidade. O assassino levava os explosivos escondidos no turbante, conseguiu entrar no gabinete do prefeito e se fez explodir.
Embora tenha sido atribuído aos taleban, ela tem sérias dúvidas: "É possível que os responsáveis sejam os que odiavam sua rejeição frontal da corrupção".
A cidade mais fortificada do Afeganistão é fustigada diariamente por comandos taleban. "A situação de segurança melhorou em alguns distritos, mas piorou na capital", explica o médico Abdul Qayyum Pojla, diretor do departamento de saúde da província.
No último mês, 658 homens, 70 mulheres, 12 meninos e três meninas foram vítimas de explosões de minas ocultas em Kandahar, Helmand e Uruzgan. Nos últimos cinco meses 3.331 pessoas passaram a integrar as listas intermináveis de mortos e feridos, como se a morte se detivesse em cada casa.
O hospital de Mirwais funciona como marcador da violência. O pinga-pinga de veículos que chegam de aldeias distantes com feridos nos combates e bombardeios é constante. Os livros de registro protegem a verdade oculta de uma guerra e descrevem de maneira asséptica o cotidiano brutal.
"Dez civis feridos a bala, um pelos taleban, dois pelas forças internacionais e sete por atacantes não identificados; três soldados mortos em explosões, outro morto por um disparo de franco-atirador", anuncia o doutor Mohamed Qasim, diretor deste hospital em colapso apesar de seus 450 leitos.
Ruhullah, de cerca de 20 anos, acaba de dar seu último suspiro na unidade de tratamento intensivo. Os feridos nas camas ao lado olham de soslaio para seu corpo sem vida. Os olhos fundos mostram o cansaço e o fastio de vidas ligadas ao drama da guerra.
Dois amigos contemplam seu rosto infantil. Um chora e o acaricia. O segundo explica que o jovem foi alvo de um comando taleban enquanto escoltava caminhões civis da Otan. Há dois meses morreu seu irmão. Os pais voltarão a chorar quando souberem da notícia.
O lençol é sua primeira mortalha. Uns maqueiros retiram o corpo. Uma pequena poça de sangue desliza pelo colchão como se fosse uma minúscula onda que quer arrebentar. Cinco minutos depois um novo ferido ocupa a cama ainda quente.
Por sorte Abdul Jamil, de 10 anos, olhava para o lado contrário e não teve de ver como se morre em seu país. Há cinco dias foi ferido por soldados americanos que realizavam uma operação antiguerrilha em sua aldeia, enquanto ajudava seu pai nos trabalhos do campo.
A bala entrou pela virilha e saiu por suas costas, sem tocar a coluna. "Os soldados americanos nos pediram desculpas e nos ofereceram para levar o menino a uma base militar para curá-lo, mas eu preferi trazê-lo para este hospital", conta seu pai, Wakjl Ahmad. À pergunta de se os americanos lhe ofereceram alguma compensação econômica, responde com um rotundo não.
Desde abril o hospital Mirwais recebeu uma média mensal de 425 feridos de guerra, 90% dos quais eram civis apanhados em fogo cruzado, que é cada dia mais intenso.
Os EUA e seus aliados mais mergulhados em combates são, como o Reino Unido e até há algumas semanas o Canadá, que já retirou suas tropas, continuam bombardeando as províncias de Kandahar e Helmand com intensidade, buscando um inimigo invisível e alimentando o ódio da população pashtun.
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