terça-feira, 23 de agosto de 2011

Ocidente perpetua estereótipos da Guerra fria, diz vice-ministra chinesa

Fu Ying
Em entrevista ao “Spiegel”, a vice-ministra de relações exteriores da China, Fu Ying, 58, acusa europeus e americanos de perpetuarem estereótipos da Guerra Fria, rejeita críticas pelo tratamento dado ao artista Ai Weiwei e nega as noções de que Pequim gostaria de dominar o mundo.

Madame Fu Ying, poucos países são mais interessantes para o Ocidente hoje do que a China –e poucos alarmam tanto o Ocidente, agora que vocês adquiriram seu primeiro porta-aviões. Por que a China precisa se armar tanto?
Fu Ying: O primeiro porta-aviões entrando no mar é um evento muito excitante na China. É algo que o povo chinês queria. As pessoas acham que é um passo natural na expansão militar chinesa –apesar desse porta-aviões de fato ser uma embarcação de segunda mão que reformamos e será usada apenas para pesquisa científica e treinamento. Está muito, muito longe de ser um porta-aviões propriamente dito. Neste sentido, a China está muito atrás de outros países, mais ainda dos EUA, que têm uma frota madura e altamente desenvolvida de porta-aviões há algum tempo.

Não existem áreas mais urgentes para investir o dinheiro, no lugar de aumentar o orçamento militar?
Fu Ying: Várias áreas receberam maior prioridade do que o desenvolvimento de nossas defesas. Houve maior ênfase no desenvolvimento econômico, no bem estar do povo e na divisão da riqueza. A geração da minha filha é a primeira a nunca ter passado fome neste país. Isso é um progresso inacreditável. A sua preocupação com as forças armadas chinesas parece estar obscurecida por estereótipos sobre a China, baseados em uma forma de pensar da Guerra Fria de divisão ideológica. Vocês se sentem à vontade com aliados seus tendo porta-aviões, como os EUA e a França, mas se preocupam quando a China tem um.

Até aonde a China irá para defender seus interesses? Na disputa sobre a soberania do mar do Sul da China, o tom algumas vezes é duro.
Fu Ying: Nós também estamos nos perguntando por que há uma retórica tão forte, já que os países envolvidos estão dialogando com base na Declaração de Conduta das Partes no Mar do Sul da China de 2002. Mas esta é uma discórdia de palavras, e o que importa é que o trânsito de navios no mar do Sul da China continua pacífico e não há guerra ou conflito.

Os americanos claramente têm dúvidas sobre as suas intenções. Há rumores de que Paquistão forneceu à China acesso aos destroços do helicóptero americano de alta tecnologia que caiu durante a operação contra Osama Bin Laden. A senha poderia confirmar se isso é verdade?
Fu Ying: Tanto a China quanto o Paquistão negaram esse rumor. Acho que a coisa mais importante é se a China e os EUA são inimigos. Vamos entrar em guerra? Estamos preparando uma guerra um contra o outro? Certamente não vemos dessa forma. Não é muito amigável que os EUA mantenham um embargo de armas contra a China. Não temos a intenção de ameaçar os EUA e não vemos os EUA como ameaça para nós. O Ocidente tende a colocar a China nos moldes da Guerra Fria. Isso intriga muito a China.

Muitos alemães, apesar de respeitarem o desenvolvimento da China, veem seu país mais como rival do que como parceiro. Isso é algo que vocês compreendem?
Fu Ying: Agradeço por você ter levantado esse ponto porque é algo que tem estado em minha mente há muito tempo. Se você aceita que fundamentalmente o crescimento da China tirou inúmeras pessoas no país da pobreza, então você tem que concordar que a China fez as coisas corretamente. A pessoa também tem que aceitar que pode haver um sistema político diferente. Os países no Ocidente acham que têm o único sistema que funciona e enquadraram a “democracia” como um sistema de eleição com muitos partidos, que funciona bem para alguns países, na maior parte do tempo. Contudo, como estamos vendo agora com a mais recente crise financeira, algumas vezes também eles entram em dificuldades. O Ocidente ficou muito arrogante. No final, a democracia por si só não pode colocar comida na mesa. Essa é a realidade.

O processo de tomada de decisão da China parece estar em uma caixa preta de segredo, e até mesmo analistas antigos se perguntam como são feitas as decisões políticas. Portanto, não deve ser surpresa que muitos fiquem ressabiados quanto às intenções da China.
Fu Ying: O sistema político da China é um produto da história do país. Ele se baseia em sua própria cultura e é objeto de um processo de reforma constante, que inclui a construção de processos de tomada de decisão democráticos. Para tomar as decisões corretas, você tem que ouvir o povo e suas críticas. Nenhum governo pode sobreviver se perder o contato com o povo e com a realidade. E temos uma visão muito crítica de nós mesmos.

O Ocidente percebe uma falta de transparência e de Estado de direito no modelo chinês.
Fu Ying: Acho que, no momento, são os governos ocidentais que estão tendo problemas. Estamos observando o que está se passando no Ocidente. E tentamos compreender por que tantos governos fizeram tantos erros. Por que os políticos fazem promessas que não podem cumprir? Por que gastam tão mais do que têm? O Ocidente entrou em estagnação depois da Guerra Fria? Ou só se tornou arrogante?

As democracias são muito complicadas e, se comparadas com sistemas rígidos, estão em desvantagem. Vocês se sentem superiores?
Fu Ying: Superioridade não é a palavra que usamos. Os chineses são muito modestos. Respeitamos o sucesso de vocês e aprendemos com vocês. Vocês estão na era pós-industrial. Muitos dos problemas que vocês enfrentam podem ocorrer com a China mais tarde. Então queremos ver como vocês lidam com esses problemas, e se podemos aprender com vocês.

“A porta para o diálogo” com o Dalai Lama “está sempre aberta”

O caso de um artista que foi preso recentemente, Ai Weiwei, que tem conexões em Berlim, foi visto na Alemanha como uma provocação. A prisão dele foi intencional, pouco depois do ministro de relações exteriores alemão, Guido Westerwelle, participar da abertura de uma exibição em Pequim com autoridades chinesas?
Fu Ying: É por isso que eu digo que vocês são arrogantes. Vocês realmente se levam muito a sério. Por que um país como a China decidiria questões internas e tentaria fazê-las coincidir com a visita de um ministro estrangeiro de um país da Europa? Não vejo a ligação. O caso que vocês estão discutindo é uma questão jurídica. Não estou realmente interessada no caso.

Se é um caso legal, então por que Ai Weiwei não foi acusado publicamente? Em vez disso, ele desapareceu por 81 dias. As acusações de evasão de impostos não parecem muito convincentes.
Fu Ying: Se vocês têm tanto interesse pelo caso e acreditam que houve falhas na lei ou nas regras no caso dele, podem muito bem levantá-las. Podemos transmiti-las às autoridades. Mas quantos outros artistas autores, cantores e astros de cinema chineses os alemães conhecem? Sua visão da China é muito estreita e negativa, e é por isso que não nos sentimos à vontade discutindo direitos humanos com vocês. Nossa compreensão de direitos humanos se baseia no estatuto da ONU, que garante direitos políticos, direito à vida e o direito ao desenvolvimento. Mas, em sua opinião, os direitos humanos parecem se voltar apenas para alguns indivíduos que estão subvertendo o Estado ou rompendo as leis.

Algumas dessas pessoas simbolicamente representam centenas de outras.
Fu Ying: Mas, por favor, tente colocar as coisas em perspectiva. Temos 1,3 bilhão de pessoas vivendo na China. Desde o primeiro dia de nosso relacionamento com o Ocidente, direitos humanos são assunto de discussão. Muitas questões foram discutidas e resolvidas e esse conteúdo continua mudando. Mas hoje, a visão ocidental de direitos humanos é usada como instrumento contra a China, independentemente do fato de a China ter melhorado muito nessa área. E não importa o quão intensamente trabalhamos na questão.

A senhora pode dizer algo mais concreto sobre o caso de Ai Weiwei?
Fu Ying: Ele está sendo investigado e foi solto após pagar fiança. Não tenho mais comentários.
Enquanto um ditador após o outro era derrubado no mundo árabe neste ano, jornalistas, advogados e ativistas de direitos humanos na China vieram sofrendo uma onda de repressão, alguns até falaram em “inverno chinês”. A China teme meia dúzia de ativistas?
Fu Ying: O que aconteceu no Oriente Médio foi um evento que atraiu a atenção do mundo todo. Nós também estamos tentando entender o que provocou essas revoluções. Quanto à China, não vejo nenhuma ligação direta. Novamente, é hábito de alguns analistas ocidentais conectarem tudo de ruim com a China. Se você pensa que a sua sociedade é forte o suficiente para evitar a infecção pela revolução árabe, o que o faz pensar que a sociedade chinesa é tão fraca que será infectada? Oitenta e sete por cento dos chineses entrevistados em pesquisa pelo Centro de Pesquisa Pew, em 2010, disseram que o governo estava no caminho certo. Nos EUA, por outro lado, pesquisas recentes mostram que muitas pessoas acham que o país não está no caminho certo.

A China sempre tem reações fortes quando os políticos ocidentais se reúnem com o Dalai Lama. Vocês recomendam que outros países resolvam suas disputas pelo diálogo. Por que a China não teve sucesso em alcançar um acordo com o líder espiritual tibetano?
Fu Ying: Nossa dificuldade com o Dalai Lama são suas opiniões políticas e suas demandas de independência do Tibete. Se você ler o site dele, verá o que ele quer. Em essência, quer um Tibete independente.

Ele já rejeitou isso explicitamente, dizendo que não quer a separação, e sim maior autonomia.
Fu Ying: O Tibete faz parte da China. Mas, é claro, a porta do diálogo está sempre aberta. O diálogo é sempre bem vindo. Estou feliz por cada vez mais pessoas visitarem o Tibete e compreenderem a vida no Tibete.

Infelizmente, os jornalistas não têm permissão para ir ao Tibete.
Fu Ying: Há um pouco de preocupação com as intenções e motivos dos jornalistas ocidentais. Algumas vezes, é como se alguns deles fossem a um casamento e só quisessem inspecionar os conteúdos de um canto escuro. Eles querem mostrar ao mundo que a noiva não está sorrindo, que não há um noivo ou amigos felizes –só escuridão. Eles escrevem sobre isso extensivamente. Podem ser fatos, mas são muitos selecionados.

O Dalai Lama se aposentou oficialmente. Não seria um bom momento para buscar uma solução pacífica?
Fu Ying: O fato de ele estar se retirando de seu escritório político mostra que ele se vê como o rei e deus, e portanto dono do Tibete. Mas esses dias terminaram. O Tibete finalmente está se desenvolvendo, e a região está cada vez melhor. Então vamos ver se o Dalai Lama pode deixar de lado suas demandas políticas.

Não é apenas o Tibete que está se desenvolvendo rapidamente. Ultimamente, o Ocidente está até o pescoço em dívidas, mas a China tem passado por um crescimento fantástico. O comunismo por fim derrotou o capitalismo?
Fu Ying: Não somos a União Soviética. O Ocidente e a União Soviética passaram toda a Guerra Fria um na garganta um do outro. Um queria ver a derrota do outro; esse era seu objetivo estratégico. Mas a China não fez parte dessa sua luta e sempre apoiou a reunificação da Alemanha.

“A China não tem a intenção de dominar o mundo”

Desde o final de junho, a China detém um total de US$ 1,165 trilhão em bônus americanos e US$ 700 bilhões em bônus europeus. Economicamente, a China já é uma superpotência. O que isso significa para o equilíbrio político do poder?
Fu Ying: Muitos dizem que o poder está mudando do Ocidente para o Oriente, mas nós acreditamos que há um processo de difusão. Costumava estar no mundo ocidental, mas agora também está se difundindo para um mundo mais amplo. Há uma necessidade de reformar a atual estrutura mundial, que foi construída após a Segunda Guerra Mundial para o benefício cerca de 1 bilhão de pessoas do mundo desenvolvido. A China é apenas um dos países que estão emergindo. O Brasil está crescendo. A Índia está crescendo, assim como partes da África. No futuro, 3 a 4 bilhões de pessoas vão entrar neste processo de maior industrialização. Mas essa reforma precisa ser alcançada gradativamente, e não pela guerra ou pelo conflito, mas pelo diálogo.

O Ocidente vai acabar no lado perdedor?
Fu Ying: Vocês –a Europa e os EUA- estão passando por dificuldades atualmente, mas ultrapassaram tantas outras no passado e sempre se recuperaram. Também somos interdependentes, e a sua perda não é necessariamente nosso ganho. Estamos no mesmo barco. E de fato nos preocupamos quando as economias ocidentais estão em dificuldades. Por isso que é bom que a chanceler alemã Angela Merkel e o presidente francês Nicolas Sarkozy estejam assumindo a liderança. Muito recentemente, meus colegas e eu discutimos o futuro da União Europeia. A visão prevalecente foi a de que, se vocês trabalharem juntos para tratar as atuais dificuldades, então a UE vai avançar e se tornar mais integrada. Se não, a zona do euro pode colapsar.

O que significaria para a China se a crise financeira no Ocidente se estendesse para outras regiões?
Fu Ying: Todo mundo sofreria.

Muitos observadores acreditam que a legitimidade do governo chinês se apoia em seu sucesso econômico. No evento de uma crise econômica, vocês teriam que se preocupar com a estabilidade do país?
Fu Ying: Os governos ocidentais mudam seu sistema multipartidário a cada crise econômica? Não acho. Por que deveríamos nos preocupar? Tendo dito isso, nossa reforma é um processo constante, que vamos continuar a avançar.

Por um longo tempo, o Ocidente acreditou que o desenvolvimento da China era uma situação de ganhos para todos os envolvidos. Agora, porém, há uma impressão crescente –mesmo em instituições internacionais como a Organização Mundial de Comércio- que os chineses querem mudar o equilíbrio da economia global para sua própria vantagem. A política de longo prazo de manter o iuan artificialmente subvalorizado é apenas um exemplo muito citado.
Fu Ying: A China não tem a intenção de dominar o mundo. Mas se vocês continuarem a se verem como o centro do mundo, se vocês considerarem ter o monopólio da verdade, com todas as crenças e valores corretos, então vocês sempre vão se sentir mal quando virem que o mundo é diversificado. Há valores e culturas diferentes. E se vocês acreditam que venceram a Guerra Fria, então a Guerra Fria está acabada, terminada. Estamos em um novo mundo. Desçam de seu cavalo do topo do mundo. Desçam para ser iguais e unam-se a nós em um campo nivelado em vez de criar um novo rival ao estilo da Guerra Fria.

Vocês continuam com relações muito próximas com líderes como Kim Jong Il, da Coreia do Norte, cujo povo está morrendo de fome porque ele se recusa a abrir o país, ou como o presidente do Sudão do Norte, Omar al-Bashir, que está sendo procurado por crimes contra a humanidade. Qual é sua filosofia a respeito disso?
Fu Ying: Nosso próprio sofrimento em toda a história nos ensinou que não devemos nunca tentar nos impor sobre outros países ou apoiar outros para que se imponham. Temos um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU; temos centenas de chineses na força de paz da ONU em Darfur, Sudão. Se toda vez que você não gosta do líder de um país e você intervém, levará ao caos. Pense em sua própria experiência de intervenção, que nem sempre teve sucesso.

A senhora está se referindo à intervenção em seu vizinho, o Afeganistão.
Fu Ying: Vocês precisam refletir sobre sua própria experiência.

A China enfraquece instituições como a ONU, em particular, porque frequentemente vocês diluem essas resoluções conjuntas contra o Irã, Coreia do Norte ou Síria, cujo presidente Bashar Assad permite que o exército atire contra seu próprio povo. Onde estão os limites da tolerância da China por violações de direitos humanos?
Fu Ying: O caso do Irã faz parte de toda a situação de segurança. Por isso que temos discussões de cinco mais um no Irã. No caso da República Democrática do Povo da Coreia, temos as negociações de seis partes. Acredito que a diplomacia paciente vai provar seu valor no final.
Em relação ao Irã, essa paciência poderia resultar em perder a guerra contra o tempo no final.
Fu Ying: Não temos uma solução melhor.

Dadas as diferenças de opinião, como potências como a China e os EUA devem cooperar para lidar com desafios mundiais como a segurança na Internet, estabilidade financeira, segurança alimentar e proliferação nuclear?
Fu Ying: Precisamos superar a barreira da desconfiança. Se não nos permitirmos ser levados por nossas próprias opiniões, nosso próprio sentimento, nossa própria emoção, até nossos próprios valores, então só vamos criar mais problemas. Seja em missões de paz ou na proteção de canais de transportes na costa da Somália ou em mudança climática, acho que vocês descobrirão que a China é participante entusiasta nos assuntos mundiais.

Como vocês se sentem, sendo vistos como superpotência econômica?
Fu Ying: É lisonjeiro.

Também os deixa nervosos?
Fu Ying: Não, de forma alguma. Não nos vemos como superpotência. Você não vai ver um EUA ou uma União Soviética na China. Vai ver um país culturalmente nutrido com uma grande população mais contente, mais feliz, resoluta –e um amigo do mundo. Não há razão para temer a China.

Madame Fu Ying, agradecemos pela entrevista.

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