O Ocidente elogiou Gorbachev por não ter resistido violentamente ao fim da União Soviética. Na verdade, até hoje não se sabe se o líder do Kremlin não autorizou de fato ações militares contra georgianos, azeris e lituanos, que se rebelaram contra o governo central em Moscou entre 1989 e 1991. Quando tropas soviéticas reprimiram violentamente as manifestações, 20 pessoas foram mortas na Geórgia, 143 no Azerbaijão e 14 na Lituânia, isso para não mencionar as guerras e as rebeliões em Nagorno-Karabakh, no Trans-Dniester e na Ásia Central.
Muita gente não se esqueceu da tragédia ocorrida na capital da Geórgia, Tbilisi, na noite de 8 para 9 de abril de 1989, quando soldados russos usaram pás afiadas e gás venenoso para dissolver uma passeata de protesto na cidade.
Gorbachev alega que só ficou sabendo do incidente seis horas depois. Ele não deu às forças armadas ou ao serviço de inteligência ordens claras para que fosse exercida moderação durante o conflito, mesmo sabendo como eram precárias as relações entre russos e georgianos. Ele tampouco responsabilizou qualquer pessoa pelo ocorrido mais tarde. Ainda hoje ele afirma que a identidade de quem deu as ordens para o uso da violência em Tbilisi é “um grande mistério”.
Mas quando Gorbachev reuniu-se com Hans-Jochen Vogel, que à época era o presidente da agremiação de centro-esquerda alemã Partido Social Democrata (em alemão, Sozialdemokratische Partei Deutschlands, ou SPD), em 11 de abril, dois dias após a supressão sangrenta dos protestos, ele procurou justificar a sua abordagem dura. Mais tarde ele fez com que fosse apagado o seguinte trecho da transcrição publicada em russo da sua conversa com Vogel:
“Você ouviu falar dos acontecimentos na Geórgia. Notórios inimigos da União Soviética se reuniram lá. Eles abusaram do processo democrático, gritaram palavras de ordem provocadoras e chegaram até a pedir o envio de tropas da Otan à república. Nós tivemos que adotar uma abordagem firme ao lidarmos com esses aventureiros e defendermos a perestroika – a nossa revolução”.
Os “notórios inimigos da União Soviética” eram na verdade civis pacíficos. Dentre os 20 georgianos mortos em Tbilisi, 17 eram mulheres.
Uma declaração dada em uma reunião do politburo em 4 de outubro de 1989, na qual Gorbachev ficou sabendo que 3.000 manifestantes haviam sido mortos na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em junho daquele ano, demonstra que ele estava preparado para enfrentar resistências aos seus planos de reforma e que não tinha necessariamente descartado a necessidade de recorrer a ações violentas. Gorbachev afirmou:
“Nós precisamos ser realistas. Eles têm que se defender, e nós também. Três mil pessoas, e daí?”.
Este trecho não constava das minutas da reunião que foram publicadas mais tarde.
“Nós só interviremos se houver derramamento de sangue”
Em 1990 e 1991, Gorbachev pôde concluir que pouquíssimos políticos importantes do Ocidente questionariam o papel desempenhado por ele nos conflitos sangrentos com as repúblicas soviéticas que almejavam obter a independência. Naquelas semanas, a única preocupação de norte-americanos e europeus ocidentais era saber se os soviéticos retirar-se-iam de fato da Europa Oriental. Como resultado disso, eles permitiram que Gorbachev mentisse desavergonhadamente, como quando Moscou tentou acabar com o movimento pela independência das repúblicas bálticas no último minuto.
Em janeiro de 1991, sob pressão do serviço de inteligência e das forças armadas, Gorbachev aparentemente concordou com aquilo que já era uma iniciativa vã: proclamar que o governo da Lituânia estava sob o controle de Moscou. Conforme havia ocorrido no passado em Budapeste e em Praga, “trabalhadores” leais à União Soviética pediriam a Moscou que enviasse tropas para socorrê-los, e foi precisamente essa a versão que transpirou. Em 13 de janeiro, unidades especiais do exército e de forças de segurança soviéticas avançaram em tanques até o prédio da rede de televisão estatal em Vilnius, invadiram as instalações da estação e mataram 14 pessoas.
Em uma conversa por telefone com o então presidente dos Estados Unidos, George Bush, dois dias antes, Gorbachev havia negado terminantemente que Moscou interferiria em Vilnius.
Bush: Eu estou preocupado com os problemas internos do seu país. Como pessoa que está de fora, tudo o que posso dizer é o seguinte: se você for capaz de evitar o uso da força, isso beneficiará as suas relações conosco, e não só conosco.
Gorbachev: Nós só interviremos se houver derramamento de sangue ou rebeliões que ameaçarem não só a nossa constituição, mas também vidas humanas. Neste momento eu estou sofrendo uma pressão tremenda para decretar o controle presidencial sobre a Lituânia. Eu ainda estou evitando isso, e somente no caso de uma ameaça muito séria tomarei tais medidas.
Helmut Kohl, o chanceler alemão que, em nome do seu governo, vinha fazendo incessantemente uma campanha pelo direito à autodeterminação das populações nacionais soviéticas, recusou-se a fazer qualquer crítica a Gorbachev. Quando os dois líderes conversaram por telefone cinco dias após os acontecimentos sangrentos de Vilnius, ele só mencionou de passagem a ação militar soviética:
Gorbachev: Agora todo mundo está começando a indagar: Gorbachev está abandonando a sua rota? O novo Gorbachev acabou, e ele se inclinou para a direita? Eu posso dizer com toda a honestidade: Nós não modificaremos a nossa política.
Kohl: Como político, eu compreendo que há momentos nos quais manobras evasivas são inevitáveis para que se possa atingir certos objetivos políticos.
Gorbachev: Helmut, eu estou familiarizado com a sua avaliação desta situação, e eu respeito muito isso. Até logo.
Mas Gorbachev perdeu a sua última parcela de credibilidade junto ao seu povo naqueles dias. “Ele está do lado daqueles que cometeram assassinato em Vilnius”, escreveu um profundamente desapontado Anatoly Chernyaev, o seu confidente mais próximo, no seu diário. Chernyaev ditou para a sua secretária uma longa carta a Gorbachev que soa como um acerto de contas:
“Mikhail Sergeyevich!
O seu discurso no Soviete Supremo (sobre os acontecimentos de Vilnius) sinalizou o fim. Aquilo não foi um pronunciamento de um grande estadista. Foi um discurso confuso e claudicante. Você não está disposto a dizer o que de fato pretende fazer. E você aparentemente não sabe o que o povo pensa sobre a sua pessoa – nas ruas, nas lojas e nos ônibus. Eles só falam a respeito de 'Gorbachev e os seus asseclas'. Você alegou que desejava mudar o mundo, mas está agora destruindo esse trabalho com as suas próprias mãos”.
A secretária pegou a carta, mas a seguir acusou Chernyaev de trair Gorbachev. A carta não foi mandada, e acabou desaparecendo dentro de um cofre.
“Kohl não é o maior dos intelectuais”
O ex-chanceler alemão Helmut Kohl é mencionado de uma forma particularmente proeminente nos documentos de Gorbachev. Kohl estava à época muito agradecido ao líder russo pelo fato de Gorbachev ter se recusado a enviar tanques a Berlim Oriental para impedir o colapso da Alemanha Oriental no outono de 1989. Ele também não se opôs à reunificação alemã no ano seguinte. Na verdade, para a consternação de muitos dos seus camaradas no governo, Gorbachev sequer se opôs à ideia de uma Alemanha reunificada ingressar na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Kohl pôde pagar o favor em 1991, e era exatamente isso que Gorbachev esperava dele. Durante aquele período, Kohl se constituía, sob vários aspectos, na última esperança de Gorbachev.
O líder soviético havia aparentemente se esquecido de que durante anos viu o chanceler alemão como um político provinciano e medíocre. Em 1º de novembro de 1989, quando recebeu Egon Krenz – o sucessor do líder alemão-oriental Erich Honecker e o último líder comunista da Alemanha Oriental – no Kremlin, ele lhe disse:
“Ao que parece Kohl não é o maior dos intelectuais, mas ele goza de certa popularidade no seu país, especialmente entre os cidadãos comuns”.
A mensagem parece ter sido: Ele não é uma pessoa com a qual você precisa se preocupar. O próprio Gorbachev havia ignorado Kohl durante anos. Ele via o líder alemão como um fantoche dos norte-americanos e, durante muito tempo, Gorbachev procurou deliberadamente evitar a Alemanha Ocidental durante as suas viagens à Europa.
As minutas da reunião entre Krenz e Gorbachev foram mais tarde publicadas em Moscou, e recentemente passaram a ser acessíveis ao público na Alemanha. No entanto, o trecho relativo a Kohl não se encontra na versão russa. Gorbachev ficou tão embaraçado com o que disse que fez com que essa parte fosse apagada.
Quebrando o gelo com “Helmut”
No verão de 1990, depois que os dois líderes negociaram os detalhes da reunificação alemã, o relacionamento entre Gorbachev e Kohl mudou. O gelo foi finalmente quebrado quando Gorbachev e a sua mulher, Raisa, viajaram à Alemanha em novembro, visitando os Kohl na residência destes em Oggersheim, no oeste da Alemanha, e passeando com eles pela Catedral de Speyer que ficava perto. Eles chegaram até a jantar no restaurante favorito de Kohl, o Deidesheimer Hof. Os dois líderes passaram a se chamar informalmente pelo primeiro nome naquela ocasião, que foi o grande marco no relacionamento dos dois.
Gorbachev precisava do influente chanceler alemão, agora que a situação estava ficando complicada na Rússia. Havia carência de tudo nos mercados russos – carne, manteiga, leite em pó – e a popularidade de Gorbachev estava em queda.
Naqueles meses, Gorbachev recorria ao telefone com frequência cada vez maior para discutir a situação com o seu “amigo Helmut”, que de repente transformou-se no seu assessor político. Os dois usavam uma linha telefônica especial, e essas conversas entre Moscou e Bonn praticamente não foram mencionadas mais tarde nos livros de Gorbachev. Nas suas memórias, Kohl também só as menciona brevemente.
Essa hesitação se torna clara para quem lê as transcrições, a maioria das quais preparada por tradutores que também tinham que prestar contas à KGB. As conversações são repletas de reclamações de Gorbachev, como os gritos de socorro de um homem que se afoga – palavras que o outrora orgulhoso líder soviético se empenhou em varrer para debaixo do tapete duas décadas mais tarde.
Naquela época, no entanto, ele desejava que Kohl encorajasse o Ocidente a salvar a União Soviética. Ele queria que o chanceler alemão retratasse o iminente colapso como uma catástrofe que poderia lançar o mundo inteiro em um estado de caos. É claro que ele também esperava obter ajuda para lutar contra o seu mais duro rival, Boris Yeltsin.
Os dois líderes conversaram por telefone mais uma vez na noite de 20 de fevereiro de 1991. Kohl telefonou para Gorbachev, depois que Yeltsin, em uma declaração na televisão no dia anterior, exigiu que Gorbachev renunciasse ao seu cargo no Kremlin. Gorbachev jamais publicou essa conversa, também, porque ela revela até que ponto ele subestimou o seu rival e como avaliou incorretamente a situação:
Kohl: Alô, Mikhail. Você renunciou, conforme Yeltsin está exigindo?
Gorbachev: Eu creio que ele sente que está perdendo autoridade e ficando cada vez mais isolado. O discurso dele ontem foi um ato de desespero ou um erro estúpido. Yeltsin é, por natureza, um destruidor. Ele não tem nada de construtivo a oferecer. Ele está explorando a atual situação difícil, e está também tentando criar uma luta política.
Kohl: Isso beneficiará você.
Gorbachev: Na reunião de hoje do Soviete Supremo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, uma pessoa disse que tais métodos não são dignos de um homem que ocupa um cargo como o de Yeltsin. Ele provavelmente terá que retirar as suas palavras. O presidente do Cazaquistão e o presidente do Soviete Supremo da Ucrânia já se distanciaram de Yeltsin.
Kohl: Isso é vantajoso para você. Eu sinto que você está se sentindo melhor agora. Estou satisfeito com isso.
Menos de quatro meses mais tarde, mais de 45 milhões de russos elegeram o supostamente acabado Yeltsin para ser o primeiro presidente da Federação Russa, a maior república soviética. Esse fato marcou o início de uma liderança dupla e prenunciou o fim do império soviético. Em uma conversa telefônica em 30 de abril, Kohl assegurou ao líder do Kremlin:
Kohl: Eu estou fazendo tudo o que posso para obter apoio para você aqui na Europa Ocidental. E farei o mesmo em Washington, onde estarei daqui a duas semanas. Você precisa entender que certas pessoas aqui estão expressando opiniões sombrias sobre a sua situação.
Gorbachev: Sim, estou consciente disso.
Kohl: Para resumir, o que se tem dito é mais ou menos o seguinte: sim, Gorbachev é um político forte, mas ele será incapaz de alcançar as metas que planejou. Nessa situação, é extremamente importante criar um ambiente psicológico diferente. É por isso que eu necessito de informação autêntica de você, Mikhail. Você precisa me dizer como está de fato a situação.
Gorbachev: Sabe, Helmut, existem muitos indivíduos dentre os nossos amigos norte-americanos que estão sussurrando coisas a respeito da “situação de Gorbachev”. Eles estão dizendo, por exemplo: vejam, Gorbachev apoia a preservação da união, enquanto Yeltsin poderá conceder a independência aos Estados bálticos e a outras repúblicas. Yeltsin apoia a propriedade privada, enquanto que Gorbachev é favorável a uma economia mista. Yeltsin mostrar-se-á mais preocupado com as questões internas e, portanto, ele não atrapalhará os norte-americanos em várias partes do mundo. Essas recomendações não são confiáveis. Bush e o seu secretário de Estado, (James) Baker, ainda estão sustentando a posição anterior, mas eles estão sofrendo crescentes pressões. É claro que eu tenho que superar essas dificuldades.
Kohl: Você pode confiar em mim, Mikhail. Eu deixarei isso suficientemente claro para os líderes europeus ocidentais e norte-americanos.
Em 5 de julho, quando Yeltsin já era o presidente de facto da Rússia, aguardando apenas a cerimônia de posse, Kohl reuniu-se com Gorbachev na residência de verão do Partido Comunista Ucraniano, em Mezhgorye. Naquele momento, nenhum dos dois líderes tinha como saber que, um semestre mais tarde, a Ucrânia já seria um país independente.
Quando era levado de carro do aeroporto de Kiev para Mezhgorye, Kohl reexaminou o pior cenário possível:
Kohl: Eu pensei no seguinte: O que aconteceria se Gorbachev deixasse o poder subitamente e Yeltsin assumisse o seu lugar? Eu tenho que dizer que o simples fato de pensar nisso me horroriza. É claro que o país não pode ser deixado nas mãos de um homem desse tipo.
Gorbachev: Nós certamente concordamos quanto a isso.
Kohl: O que você fará, Mikhail, quando os Estados bálticos finalmente deixarem a união?
Gorbachev: É claro que eles podem fazer isso. É difícil modificar as ideias deles sobre soberania. Eles se recusam a engajar-se em qualquer conversa razoável. Se eles quiserem de fato sair, só existe uma maneira de fazer tal coisa – a abordagem constitucional. Mas eles estão apavorados diante da ideia de seguir a rota constitucional normal.
Kohl: Você realmente não manterá esses Estados na união por meio da força. Por outro lado, é preciso que fique claro para os Estados bálticos que não existe outra opção a não ser aquela prescrita pela constituição. E o apoio verbal do Ocidente a eles não muda nada em relação a isso.
Nem o russo nem o alemão publicariam mais tarde essa conversa, porque a opinião de Kohl em relação a Yeltsin era tão devastadora quanto a de Gorbachev. Algo que o chanceler alemão também preferiu não ver impresso foi o fato de ele ter feito uma distinção clara entre o seu apoio público ao princípio da autodeterminação dos Estados bálticos e a sua posição real. Kohl não apoiava de fato a saída das repúblicas soviéticas bálticas da união, e ele exigiu que tais decisões fossem aprovadas pelo parlamento em Moscou – algo, que na época, já era uma coisa impossível.
Kohl: Só mesmo um burro poderia achar que a destruição da união beneficiaria alguém. O colapso da União Soviética seria uma catástrofe para todo mundo. Quem apoiar isso está ameaçando a paz. Nem todos me compreendem em relação a essa questão. Mas você pode ter certeza de que eu não mudarei a minha opinião quanto a isso... A rota de reforma de Gorbachev precisa ser consistentemente apoiada. Se Yeltsin vier a nós, eu direi a mesma coisa a ele. Eu lhe direi que ele não terá nenhuma chance caso não coopere com você. Os norte-americanos têm dito a mesma coisa a ele.
Gorbachev: Não, eles estão praticamente encorajando Yeltsin. Aos olhos dos norte-americanos, Yeltsin é um reformista.
Kohl: Se Yeltsin for a Alemanha, será uma visita de trabalho. O meu objetivo mais importante é que vocês não se ataquem.
Gorbachev: Quem sabe não seria uma boa ideia não convidá-lo em nome do chanceler alemão? Outra pessoa deveria convidá-lo, e a seguir o chanceler poderia juntar-se à reunião como se por acidente.
Kohl: Boa ideia.
O objetivo de Gorbachev de prejudicar as chances de novos avanços por parte de Yeltsin e de contar com a participação de Kohl, caso possível, é compreensível sob um ponto de vista humano. Entretanto, politicamente, esse foi um objetivo absurdo.
E parece ainda mais absurdo o fato de que Gorbachev ainda desejava ser visto como o líder de uma potência mundial, ainda que estivesse sendo obrigado a suplicar por auxílio por trás dos bastidores.
“Nós precisamos de dinheiro para as despesas atuais”
Duas semanas depois, ele viajou a Londres para participar, pela primeira vez, de um encontro de cúpula das sete principais nações industrializadas, e para pedir que o seu país fosse aceito nesse clube de pesos-pesados econômicos. Kohl havia pavimentado o caminho de Gorbachev para Londres, apesar das objeções dos norte-americanos e dos japoneses. Na realidade, porém, Gorbachev viajou a Londres para suplicar por um auxílio de pelo menos US$ 30 bilhões para salvar a cambaleante União Soviética e o seu presidente.
Muitos dos relatórios redigidos naquelas semanas – nenhum dos quais Gorbachev mais tarde publicaria – indicam que ele deve ter percebido a situação como sendo humilhante.
Na reunião em Kiev, ele criticou veementemente um homem da comitiva de Kohl que tornar-se-ia um dos seus principais contatos nas próximas semanas: Horst Köhler, o futuro presidente alemão, que na época era um secretário de Estado do Ministério das Finanças alemão e “sherpa” (representante pessoal) de Kohl na reunião de cúpula do G-7.
Quando Köhler pediu que os soviéticos se submetessem às regras do Fundo Monetário Internacional, o líder do Kremlin disparou: “A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas não é nenhuma Cosa Rica. A direção que a história tomará a partir de agora dependerá da maneira como vocês configurarem as suas relações conosco”.
Quanto à ideia de um Plano Marshall para a União Soviética, Gorbachev a descreveu como sendo um “retorno à velha arrogância, segundo a qual o trem econômico soviético não pode subir a montanha sem a locomotiva capitalista”.
Na realidade, essa locomotiva era a única opção que restava aos soviéticos. A confiança deles em Kohl naquelas semanas era ilimitada. De fato, eles estavam praticamente eufóricos, acreditando que a situação dos soviéticos melhoraria devido ao bom relacionamento com o poderoso chanceler alemão. Em Kiev, Chernyaev, o assessor de Gorbachev, observou:
“A nova amizade com os alemães recebeu mais uma grande pá de cimento. Tudo vai bem no que se refere ao fator soviético-alemão. Isso determinará o destino tanto da Europa quanto da política global.
No voo de retorno a Moscou, Gorbachev disse:
“Kohl... fará tudo para nos ajudar a crescer novamente e para que nos tornarmos uma superpotência moderna. Bem, ele está bastante ansioso em relação à Ucrânia (em Kiev, Kohl reuniu-se também com a liderança ucraniana). Mas para ele não se trata mais do Lebensraum de Hitler”.
No início de setembro, cerca de três semanas após o golpe de agosto, a situação financeira da União Soviética era tão precária que Gorbachev chamou de lado o então ministro alemão das Relações Exteriores, Hans-Dietrich Genscher, quando este visitava Moscou, e, abandonando qualquer senso de orgulho, lhe disse:
Gorbachev: Nós precisamos de dinheiro para as atuais despesas, de forma que possamos continuar vivendo e mantendo as importações enquanto estão em andamento as negociações sobre a reestruturação das nossas dívidas de curto prazo. Eu pretendo discutir isso hoje com Kohl pelo telefone.
Genscher: Eu não sei se você deveria falar sobre uma questão tão delicada pelo telefone. Eu posso enviar agora ao chanceler um telegrama criptografado, de forma que somente ele possa lê-lo.
Gorbachev: Nós precisamos de dois bilhões de dólares. Talvez você possam adiantar meio bilhão dos pagamentos que nós deveremos receber de vocês em outubro, e tiraremos a outra metade das nossas reservas. Nós esperamos obter o outro bilhão do Oriente Médio. Eu enviei (o vice-diretor da KGB) Primakov para lá com esta missão.
Genscher: Eu não conto com a autoridade necessária para dar uma resposta. Mas eu passarei tudo isso imediatamente ao chanceler.
Kohl enviou Köhler a Moscou. Gorbachev, que já estava prevendo cenários horríveis diante do apoio hesitante do Ocidente, reuniu-se com Köhler em 12 de setembro.
Gorbachev: O que está acontecendo com a assistência à União Soviética? Nós estamos negociando, avaliando as opções e fazendo os cálculos. Isso é simplesmente imperdoável. Faz lembrar a República de Weimar na Alemanha. Enquanto os democratas brigavam entre si, Hitler chegou ao poder sem nenhum esforço especial. Países estrangeiros nos devem cerca de US$ 86 bilhões, o que é aproximadamente a quantia da qual precisamos neste momento. Eu espero que vocês cheguem às conclusões necessárias diante daquilo que eu disse.
Köhler: O chanceler me autorizou a lhe informar que nós aprovamos o primeiro pedido, ou seja, de fornecimento de um bilhão de marcos alemães. No que se refere ao pedido do outro bilhão, nós não temos escolha a não ser envolvermos os nossos parceiros na União Europeia e no G-7. A busca de opções está complicada devido às grandes expectativas financeiras da parte soviética.
Gorbachev: Vocês não puderam encontrar uma forma de conceder empréstimos em condições mais favoráveis? Talvez até mesmo empréstimos sem juros?
Köhler: Isso é muito difícil. Eu tentarei convencer os meus parceiros (no G-7) de que o seu país ainda merece confiança para crédito financeiro. Para isso, porém, eu preciso de detalhes sobre a sua dívida externa e as possibilidades de venda das suas reservas de ouro.
Gorbachev: As previsões de safras não são boas. Eu falei com (o presidente cazaque Nursultan) Nazarbayev pouco antes da sua chegada. Ele me disse que a safra na área das terras recém-incorporadas à agricultura está ainda pior do que previram até mesmo as estimativas mais modestas.
Köhler: Segundo agências norte-americanas, a safra do seu país será de 190 milhões de toneladas de grãos neste ano, contra 230 milhões no ano passado. Uma diferença enorme.
Gorbachev: Seria bom se nós conseguíssemos colher 180 milhões de toneladas... Durante a Guerra do Golfo (após a invasão do Kuait por Saddam Hussein), todos se uniram e coletaram grandes montantes para apoiar o esforço de guerra. Quase US$ 100 bilhões. Mas quando se trata de apoiar esse processo histórico em um país enorme, um processo do qual todo o mundo depende, nós começamos a hesitar.
Köhler: Os norte-americanos venceram aquela guerra sem tirar um único dólar do próprio bolso.
Gorbachev: E quanto a tudo o que a União Soviética fez pelo mundo? Quem está levando em consideração esses números? Quanto dinheiro foi economizado devido à nossa perestroika e à nossa forma de pensar? Centenas de bilhões de dólares foram economizados para o resto do mundo!
Köhler: Não há tempo a perder. É uma questão se semanas, ou mesmo de dias. Um dos erros de cálculo da sua perestroika foi subestimar o lado econômico da questão.
Mas o plano de injetar bilhões de dólares em Moscou com a ajuda alemã, e salvar desta forma Gorbachev, não teve sucesso. Quando os ucranianos afirmaram a sua declaração de independência com um referendo em 1º de dezembro de 1991 e elegeram o seu próprio presidente, os dados foram lançados. Sete dias mais tarde, a Rússia, a Ucrânia e a Belarus formaram a Comunidade dos Estados Independentes, à qual se juntaram oito repúblicas não eslavas.
A União Soviética estava sendo liquidada. A Alemanha comemorava o Natal quando Gorbachev renunciou à presidência em 25 de dezembro e a União Soviética chegou a um fim pacífico. Ele enviou uma carta a Bonn naquele mesmo dia:
“Caro Helmut!
Embora os acontecimentos não tenham corrido da forma que eu achava que seria a mais correta e vantajosa, eu não perdi a esperança de que o processo ao qual eu dei início seis anos atrás acabará sendo concluído com sucesso, e que a Rússia e os outros países que atualmente integram uma nova comunidade virão a se transformar em países modernos e democráticos.
Com todo o carinho, Raisa e eu desejamos a Hannelore (Kohl) e a toda à sua família saúde, prosperidade e felicidade.
Seu, Mikhail”.
Nessa carta, Gorbachev é novamente aquele estadista integral. Isso explica por que a carta foi um dos poucos documentos daquele fatídico ano de 1991 que o fracassado reformista russo mais tarde publicaria.
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