terça-feira, 5 de abril de 2011

Em entrevista, ex-secretário de Defesa dos EUA revela "arrependimentos"


Em entrevista ao “Spiegel”, o ex-secretário de defesa dos EUA Donald Rumsfeld, 78, discute os objetivos pouco claros da ação militar internacional na Líbia, os crimes “terrivelmente nocivos” cometidos pela “equipe de extermínio” do exército norte-americano no Afeganistão, comparações inevitáveis com Abu Ghraib e os erros que ele cometeu no governo Bush.

Spiegel: Senhor secretário, o senhor é famoso por sua longa lista de “regras de Rumsfeld” –pequenas pérolas de sabedoria que o senhor acumulou em décadas no governo. O senhor teria uma regra para invasões no exterior?

Rumsfeld:
De fato, sim. Quando você começa uma invasão, uma regra é “a missão deve determinar a coalizão, não vice-versa”. Você não deve primeiro reunir uma coalizão com muitas opiniões divergentes e depois tentar determinar a missão. Isso leva à falta de clareza quanto à missão.

Spiegel: Seria este o caso da atual invasão da Otan na Líbia?

Rumsfeld:
Acho que se pode dizer que sim. Os EUA não articularam, até onde eu saiba, uma missão clara. Começamos reunindo uma coalizão, e depois a coalizão criou a missão. Os membros da coalizão citam questões humanitárias, mas enquanto houver ambiguidade quanto à permanência de Gaddafi, mais pessoas ainda serão mortas. Então, de um ponto de vista puramente humanitário, essa ambiguidade é nociva –e pode de fato ser letal. Se você faz parte do governo, do exército ou do corpo diplomático de Gaddafi, você quer saber o que vai acontecer, caso queira passar a apoiar os rebeldes. Enquanto não estiver claro que nossa intenção é a remoção de Gaddafi do poder, as pessoas vão se segurar. Quanto mais se seguram, maior a probabilidade que mais pessoas morram.

Spiegel: O seu sucessor, o secretário de defesa Robert Gates, chegou a afirmar que a Líbia não é de vital interesse aos EUA. O senhor concordaria?

Rumsfeld:
Não vou comentar a declaração dele. Mas quando olho para as questões realmente importantes na região, vejo o Irã, onde há um forte desejo de uma sociedade mais livre e onde as pessoas são reprimidas por um pequeno grupo de aiatolás. Vejo a Síria, onde há um desejo similar das pessoas por liberdade. Esses dois países patrocinam a Hezbollah e outras organizações terroristas, estão prejudicando nossos esforços no Afeganistão e foram extremamente prejudiciais no Iraque. Depois, eu vejo também países grandes e importantes como o Egito e a Arábia Saudita, mas os EUA estão atualmente agindo na Líbia.

Spiegel: A promessa de Obama de um engajamento militar norte-americano de curto prazo e sem tropas em terra é realista?

Rumsfeld:
É difícil qualquer pessoa de fora do governo comentar sobre detalhes desse tipo. Há uma ação declarada e há uma ação secreta. Não temos conhecimento do que nós ou os países da coalizão podem estar fazendo nesse sentido. A imprensa sempre quer saber quantas pessoas morrerão ou quanto vai custar, mas as respostas a essas questões não são sabíveis.

Spiegel: Contudo, é precisamente esse tipo de informação que o povo americano gostaria de ter. As pesquisas de opinião mostram que o apoio para a invasão na Líbia é baixo. Obama agora transferiu o comando para a Otan, mas será que a aliança é capaz de lidar com a situação?

Rumsfeld:
O tempo vai dizer. Os Estados membros da Otan variam dramaticamente em capacidade e potencial.

Spiegel: Ainda assim, os EUA agora fazem parte de uma ampla coalizão, uma clara diferença em relação à invasão no Iraque pela qual o senhor em parte também foi responsável.

Rumsfeld:
Esse não é o caso. A realidade é que Obama tem 15 países na atual coalizão da Líbia. O presidente Bush reuniu quase 50 países na coalizão afegã, cerca de 40 países para a coalizão no Iraque, mais de 90 países na Iniciativa de Segurança em Proliferação e mais de 90 países na Guerra Global ao Terror, e ainda assim, como sua questão sugeriu, ele foi chamado de “unilateralista”.

Spiegel: O senhor nunca pareceu confiar na força militar europeia ou em sua política externa. Como secretário de defesa do governo Bush, o senhor chegou a chamar os aliados problemáticos como Alemanha e França de “Europa velha”.

Rumsfeld:
Não me arrependo do comentário. Quando servi como embaixador dos EUA na Otan nos anos 70, o centro de gravidade da Europa era a França e a Alemanha. Havia 15 países na Otan, sendo que a França era apenas um membro parcial. Em 2003, na época em que fiz o comentário da “velha Europa”, o centro da gravidade na Otan e na Europa tinha mudado para o Leste. Com os países do antigo Pacto de Varsóvia entrando para a Otan, a aliança passou a ter uma mistura diferente hoje. Algumas pessoas não gostaram de meu comentário porque acharam que era uma forma pejorativa de ressaltar realidades demográficas. Elas acharam que eu estava apontando uma fraqueza da Europa –a população mais velha. A Europa avançou desde a Segunda Guerra.

Spiegel: Mas o senhor certamente não imaginava ver uma política externa comum europeia? Por exemplo, no caso da Líbia, a Alemanha se absteve no conselho de Segurança da ONU, enquanto outras nações como França e Reino Unido tomaram a liderança na invasão.

Rumsfeld:
Ai, meu Deus. Vou deixar o futuro da Europa para os europeus.

Spiegel: O senhor ficou surpreso quando a Alemanha não entrou na coalizão líbia?

Rumsfeld:
Não.

Spiegel: Por que o senhor não se surpreende mais com a Alemanha?

Rumsfeld:
Aos 78 anos de idade, não me surpreendo muito mais. A Alemanha tomou posições divergentes antes, assim como a França, a Inglaterra e os EUA.

Spiegel: Após a abstenção alemã na ONU, o ministro de relações exteriores, Guido Westerwelle, comentou que a Alemanha nem sempre tem que tomar o lado de seus aliados tradicionais. Berlim pode procurar novos parceiros em todo o mundo. Será o final do Westbindung (termo referindo-se à política externa alemã de alinhamento profundo com a Europa Ocidental e o mundo Ocidental), que foi a base da política externa alemã desde a Segunda Guerra Mundial?

Rumsfeld:
Não li as notícias dessa forma. Ouvi e pensei, “bem, isso não é novo”.

Spiegel: Isso parece excepcionalmente elegante. Durante seu discurso ao povo americano sobre a Líbia no final de março, Obama apontou para a guerra no Iraque. Ele disse que a mudança de regime levou oito anos, custou milhares de vidas americanas e iraquianas assim como quase um trilhão de dólares, e que isso é algo que os EUA não podem repetir. Olhando para trás, a invasão iraquiana foi cara demais?

Rumsfeld:
A história vai fazer esse julgamento. É difícil precificar certas coisas. Qual é o valor de ter impedido que armas nucleares chegassem às mãos de um ditador como Saddam Hussein –ou de Gaddafi, que foi convencido a desistir de seu programa nuclear há poucos anos porque ele não queria terminar como Saddam? Qual é o valor de ter milhões de pessoas no Iraque sem um regime repressor? Qual é o valor de impedir que o regime iraquiano fique atirando contra aviões dos EUA e do Reino Unido quase diariamente? Qual é o valor de os iraquianos terem imprensa livre? Qual é o valor do ministro de relações exteriores do Iraque ir para Paris, pedir o fim do regime de Gaddafi e citar o Iraque como modelo, como exemplo que de fato um sistema político mais livre pode existir naquela parte do mundo? Se há pessoas querendo voltar aos tempos de Saddam Hussein, eu não estou entre elas.

“É um sério erro sair por aí desacreditando Karzai”

Spiegel: Depois da invasão o senhor criou a chamada “parada de horrores” –uma lista com os piores cenários possíveis, de coisas que poderiam dar errado. Quanto daquilo de fato aconteceu?

Rumsfeld:
Ah, não muito, mas parte. Eu quis pensar o máximo de coisas que poderiam dar errado, caso tomássemos uma ação militar no Iraque, então fiz uma lista. Eu disse que aquelas coisas poderiam dar errado, eram pontos nos quais a inteligência poderia ser pouco precisa ou onde Saddam Hussein poderia fazer algo que não se esperava. Não antecipávamos, por exemplo, que ele fosse liberar 100.000 prisioneiros ou que os baathistas começariam uma insurgência com os jihadistas. A inteligência não previu uma insurgência no Iraque. Então, você pode planejar ao máximo, mas não pode planejar tudo. Você tem um plano, mas ele muda ao primeiro contato com o inimigo.

Spiegel: De qualquer forma, a guerra no Iraque foi uma distração da primeira frente da guerra ao terror –a batalha no Afeganistão.

Rumsfeld:
Isso não é verdade. O fato é que fomos ao Afeganistão com a Aliança do Norte e expulsamos a Al Qaeda e o Taleban. O povo afegão redigiu uma constituição. Eles elegeram Hamid Karzai. O nível de violência em 2003 e 2004 estava caindo. Nos anos de batalha mais dura no Iraque, de 2003 a 2004, o Taleban tinha praticamente desistido de lutar. Mas no final de 2005 e início de 2006, eles se reagruparam, ficaram sérios, tentaram voltar, e foi aí que voltamos a trabalhar na questão.

Spiegel: Hamid Karzai, que foi transplantado de volta ao Afeganistão pelo governo Bush, ainda está no cargo. Muitos consideram seu governo corrupto como um dos maiores obstáculos para o progresso no Afeganistão.

Rumsfeld:
Não tenho indicações de que Karzai é pessoalmente corrupto. Há corrupção em quase todos os governos do mundo. Até mesmo congressistas norte-americanos são presos por isso. É um erro sério as autoridades do atual governo saírem por aí desacreditando Karzai.

Spiegel: Pode ser, mas o Afghan Kabul Bank basicamente serviu como caixa automática para a elite do Afeganistão. Documentos obtidos pelo WikiLeaks mostram que o vice-presidente afegão, Ahmed Zia Massoud, viajou para Dubai com R$ 52 milhões (em torno de R$ 100 milhões).

Rumsfeld:
Ainda assim, minha atitude é que você deveria tentar estimular alguém como Karzai. Nós vimos autoridades do governo Obama tentarem enfraquecê-lo publicamente. Se você olhar para a guerra do Vietnã, o governo Kennedy fez isso com o presidente Ngo Dinh Diem, que acabou sendo morto. Ele foi substituído por outro que ninguém achou melhor. Veja o Paquistão, muitos concentraram suas críticas ao general Pervez Musharraf. Ele ia trabalhar de uniforme militar, e os EUA disseram: “Minha nossa, não é assim que fazemos. Não deveríamos trabalhar com este uniforme”. Ele foi derrubado. E quem está lá agora? Não diria que o governo do Paquistão está melhor hoje do que sob Musharraf.

Spiegel: O “Der Spiegel” publicou fotografias de uma “equipe de extermínio” do exército norte americano no Afeganistão. Os soldados americanos parecem ter matado civis afegãos sem qualquer motivo. As fotos o fazem lembrar do abuso de prisioneiros cometido pelos soldados norte-americanos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque?

Rumsfeld:
Não, não há comparação. Ninguém foi morto em Abu Ghraib.

Spiegel: Uma pessoa foi morta durante um interrogatório.

Rumsfeld:
Este evento recente é de outra ordem. Em Abu Ghraib, meia dúzia de pessoas estavam envolvidas em um comportamento repugnante e revoltante, irresponsável. Elas foram processadas e punidas. O evento foi terrivelmente danoso para os militares norte-americanos e bastante vantajoso para nossos inimigos. O que é notável neste novo caso é que as pessoas foram mortas. Essas pessoas no Afeganistão não estavam sob custódia, então é uma situação totalmente diferente. Abu Ghraib foi danoso para os EUA. O que houve agora é terrivelmente danoso para os EUA. Prejudica os EUA militarmente e é uma coisa horrível.

Spiegel: Relativamente, a revolta pública desta vez foi menor do que em Abu Ghraib.

Rumsfeld:
Há um governo diferente, e a mídia não está insistindo na questão. Se o assunto não for reforçado publicamente, se não for muito visível, as pessoas não têm por que se revoltar. Elas só gritam quando veem algo diante delas diariamente na mídia, na televisão, no rádio e no jornal.

Spiegel: O senhor quer dizer que o governo provavelmente será menos criticado? Hillary Clinton e Barack Obama, então senadores dos EUA, criticaram Abu Ghraib abertamente, mas agora pouco se ouve sobre o caso da “equipe de extermínio”. Será um padrão duplo?

Rumsfeld:
Sem dúvida o grupo de partidários no Senado americano na época exagerou enormemente Abu Ghraib. Este não é o caso hoje com a “equipe de extermínio”.

Spiegel: Por que os seus amigos do Partido Republicano não fazem mais críticas abertas?

Rumsfeld:
Por mim, não acho que isso sirva ao nosso país. Achei enormemente danoso quando os senadores fizeram isso na época e acho que seria danoso para nosso país agora. Não faço coisas que considero prejudiciais ao país ou às forças armadas.

Spiegel: Quando o senhor discute seu histórico político, parece não ter dúvidas. Será esta outra regra Rumsfeld? Nunca demonstrar arrependimento?

Rumsfeld:
Não existe ninguém com algum bom senso (em posições altas no governo) que não se arrependa de algo. Eu demorei quatro anos para escrever um livro de 800 páginas sobre meu trabalho e descrevo muitos arrependimentos. Incluí 3.500 memorandos em meu site, www.rumsfeld.com. Ofereci minha renúncia duas vezes diante dos terríveis casos de abuso em Abu Ghraib. E você me pergunta se tenho arrependimentos? Claro que sim.

Spiegel: Senhor secretário, agradecemos pela entrevista.

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