sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

De criminoso de guerra nazista a espião do pós-guerra

SS-Hauptsturmführer Klaus Barbie
Klaus Barbie foi um notório criminoso de guerra conhecido como o “Açougueiro de Lyon” devido aos atos terríveis que praticou na França ocupada. Agora novas pesquisas revelam que ele também atuou como espião para o BND, a agência de inteligência da Alemanha, quando estava escondido na Bolívia após a guerra. A agência certamente conhecia o passado sombrio de Barbie.

O homem que a agência de inteligência externa da Alemanha, o Serviço Federal de Inteligência (em alemão, Bundesnachrichtendienst, ou BND), mantinha nos seus arquivos sob o nome Wilhelm Holm pertencia a uma categoria única no sombrio universo dos serviços de inteligência. O empresário alemão obeso com os cabelos escuros cuidadosamente penteados era um chamado “tipper” (algo como “prospector de potenciais agentes”).

Sempre que, durante as suas viagens pelo mundo, Holm descobria alguém que parecia ter o perfil de um agente secreto, ele enviava uma mensagem para a sede do BND em Pullach, perto de Munique. Em 1965, por exemplo, após ter passado quatro semanas em La Paz, a capital da Bolívia, ele falou com entusiasmo sobre um colega alemão que tinha duas virtudes importantes: ele era aparentemente um aguerrido patriota alemão e um “anticomunista dedicado” - algo que equivalia praticamente a uma insígnia de honra durante a era da Guerra Fria.

Algumas semanas depois, o BND recrutou esse novo homem como agente. Ele recebeu o codinome de “Adler” (“Águia”, em alemão) e o número de registro V-43118. “Adler” morava em La Paz usando o nome Klaus Altmann. Mas Altmann não era o seu nome real. Na verdade, ele era um dos mais vis criminosos da ditadura nazista: Klaus Barbie, o notório “Açougueiro de Lyon”. Após o término da guerra, tribunais franceses condenaram Barbie, o ex-comandante da Gestapo em Lyon, à morte in absentia. Existem diversas indicações de que o BND sabia de tudo isso quando decidiu recrutá-lo.

Prazer em torturar

Barbie, que nasceu em 1914, torturou pessoalmente homens, mulheres e até crianças no segundo andar do Hotel Terminus, em Lyon. As vítimas sobreviventes recordam-se, sobretudo, da maneira como Barbie ria baixo enquanto as torturava. Filho de um professor da cidade de Bad Godesberg, que atualmente faz parte de Bonn, Barbie fez também com que os seus subordinados quebrassem os braços, as pernas e várias costelas de Jean Moulin, uma figura proeminente da resistência francesa e confidente do futuro presidente francês Charles de Gaulle. Moulin morreu pouco depois dessa sessão de tortura. Barbie ordenou ainda a deportação de crianças judias de um orfanato em Izieu, perto de Lyon. As crianças foram enviadas para o campo de concentração de Auschwitz, onde foram assassinadas.

Durante as últimas duas décadas, houve suspeitas de que Altmann, ou Barbie, foi um espião da agência de inteligência externa da Alemanha. Mas essas suspeitas só agora foram confirmadas pelos arquivos do BND que “Der Spiegel” analisou nos arquivos federais da Alemanha, na cidade de Koblenz. Segundo os arquivos, Barbie recebeu o seu primeiro pagamento mensal, de 500 marcos alemães, de Pullach, em maio de 1966. Ele mais tarde recebeu ainda vários bônus por bom desempenho. Na maioria dos casos, o BND fez os pagamentos por ordem bancária para uma conta no Chartered Bank of London, em São Francisco. Segundo os arquivos do BND, Barbie enviou pelo menos 35 relatórios para a agência.

Esse arranjo acabou se tornando muito arriscado para a agência de inteligência. Havia rumores de um “risco de segurança substancial” para o BND, que aparentemente estava cada vez mais preocupado com possibilidade de que a Stasi alemã oriental ou a KGB soviética pudessem chantagear Barbie, ameaçando revelar o seu passado nazista, conforme estes serviços de inteligência do bloco comunista já haviam feito com alguns outros agentes do serviço alemão ocidental.

O seu encarregado de caso, cujo codinome era Solinger, encontrou-se com Barbie em Madrid pouco antes do Natal de 1966 e lhe disse que, devido à situação financeira difícil do governo federal, “o orçamento do BND havia sofrido um corte significativo”. Solinger disse a Barbie que a América Latina estava sendo abandonada como “região de reconhecimento”. Barbie recebeu mais mil marcos alemães em dinheiro clandestino.

Condenado por cometer crimes contra a humanidade

Para o BND o caso “Adler” estava agora encerrado. A agência de espionagem também decidiu não informar as autoridades judiciais alemãs sobre o paradeiro de Barbie, ainda que este fosse um assassino e criminoso de guerra procurado.

A estória cobertura de Barbie só desmoronou em 1972, quando ele foi rastreado pelos lendários caçadores franceses de nazistas Beate e Serge Klarsfeld. Um verdadeiro cabo de guerra diplomático se seguiu durante anos. A Bolívia acabou extraditando Barbie para a França em 1983, onde ele foi condenado por crimes contra a humanidade e ficou preso até a sua morte, em 1991.

Atualmente não existe ninguém no BND que tenha sido responsável pelo caso Barbie ou que pudesse ser responsabilizado. As revelações sobre o papel inglório da agência nesse caso poderão se mostrar até benéficas para o atual presidente do BND, Ernst Uhrlau. Há anos ele deseja lançar mais luz sobre a história do BND no período do pós-guerra, quando o serviço empregou vários ex-nazistas. Atualmente Uhrlau está negociando com uma comissão histórica que será incumbida da tarefa de pesquisar o passado da agência e que terá um acesso sem precedentes aos seus arquivos. Casos como o de Barbie reforçam a necessidade de tais iniciativas.

Os norte-americanos tornaram públicos vários arquivos de inteligência sigilosos sobre Barbie cerca de 30 anos atrás. O Corpo de Contra Inteligência (CIC, na sigla em inglês), uma antiga agência de inteligência do exército dos Estados Unidos, recrutou Barbie após a guerra e, durante algum tempo, o protegeu dos investigadores criminais franceses. Em 1951, os norte-americanos chegaram a ajudar Barbie a fugir para a Bolívia. Em uma reviravolta incomum da situação, Washington mais tarde se desculpou com Paris por ter praticado essas ações.

Segundo os arquivos, a cooperação do BND com Barbie teve início com a informação que o serviço recebeu de Wilhelm Holm. É claro que alguns dos ex-integrantes das SS e oficiais da Gestapo que agora integravam a agência de inteligência alemã devem ter reconhecido o novo agente como uma figura atuante do Terceiro Reich. Pelo menos um deles, Emil Augsburg, um ex-especialista das SS na Europa Oriental, havia trabalhado com Barbie para o CIC. A Organização Gehlen, a precursora do BND, também conhecia o endereço de Barbie na cidade bávara de Augsburgo até ele fugir para a Bolívia. Um documento do BND de 1964 chega a declarar que Barbie estaria “possivelmente” vivendo em La Paz.

Expandindo a rede

Na época, o BND, que inicialmente atuava apenas na Europa, estava expandindo a sua rede de agentes pelo mundo e prestava grande atenção na Bolívia, que era governada por uma junta militar. O Ocidente temia que uma revolução contra a liderança militar pudesse fazer com que o país caísse na esfera de influência soviética, conforme ocorrera com Cuba.

Barbie, conhecido na região como Altmann, morava com a sua mulher na capital boliviana, onde administrava uma companhia chamada La Estrella, que fornecia à companhia farmacêutica Boehringer, situada na cidade alemã ocidental de Mannheim, casca de cinchona, da qual o medicamento quinina era extraído.

No final de novembro de 1965, Holm, o informante do BND, fez uma visita a Barbie. Um amigo de ambos arranjou o encontro entre os dois. Holm disse a Barbie que estava procurando um agente para uma companhia de Hamburgo e perguntou se ele se interessaria pelo cargo. Barbie aparentemente confiou no seu visitante. Segundo os documentos do BND, os dois homens tornaram-se “bons amigos” em um curto período de tempo. Holm jantava com a família Barbie quase todos os dias na sua mesa no Clube Alemão em La Paz.

É claro que o anfitrião teve que ocultar de Holm a sua verdadeira identidade. “Altmann foi membro das Waffen SS e fugiu da Alemanha Oriental em 1950”, observou o informante. Mas Holm não deixou de perceber as inclinações políticas do exilado. Por exemplo, Barbie, ou Altmann, lhe disse como judeus eram impedidos de se tornar membros do Clube Alemão. A mulher de Barbie, que administrava a biblioteca do clube, sentia um “orgulho especial”, em mostrar literatura nazista a Holm.

Parte dois: “Discreto e confiável”

O Departamento 934 do BND, que lidava com tais casos, decidiu recrutar o ex-capitão das SS. Eles estavam interessados nos bons contatos dos quais Barbie se gabava, tais como o ministro do Interior boliviano e o seu vice, bem como o diretor de uma das agências de contrainteligência do país e o prefeito de La Paz.

Solinger, o encarregado de caso de Barbie, viajou para Santiago, a capital chilena, em maio de 1966 para contratar oficialmente o novo agente e fornecer a ele um “treinamento intensivo”. Os dois homens combinaram que informações importantes seriam disfarçadas de notícias econômicas da indústria madeireira. Barbie deveria anotar as informações em um papel especial - “deixando uma margem de 3 centímetros em todos os lados, sem pontuação, e não escrever nada na parte central” - e enviar o texto para um professor em Bad Bevensen, no norte da Alemanha, que a seguir remeteria as cartas, sem abri-las, para uma caixa postal em Hamburgo.

Barbie foi oficialmente classificado como uma “fonte política”. No entanto, o conteúdo exato dos seus relatórios é desconhecido. Talvez ele tenha simplesmente observado a situação política do país, ou o seu trabalho pode ter sido feito para as forças armadas alemãs, a Bundeswehr. Algumas semanas após ter sido recrutado, ele tornou-se o representante boliviano da Merex AG, uma companhia com sede em Bonn que vendia material militar excedente da Bundeswehr no mundo inteiro por intermédio do BND. Segundo os registros do BND, Barbie deveria avisar ao pessoal da Merex sempre que os bolivianos estivessem precisando de armamentos ou munições.

Está claro que o BND encontrava-se muito satisfeito com o trabalho de Barbie. O agente 43118 foi descrito como “inteligente”, “muito receptivo e adaptável” e “discreto e confiável”.

O BND negou conhecer a identidade de Barbie

Depois que Barbie foi identificado pelos Klarsfeld em 1972, os funcionários do BND que estiveram envolvidos com Barbie alegaram internamente que só souberam qual era a verdadeira identidade de Altmann por meio da imprensa. A administração da época aparentemente “foi negligente e não obteve informações oficiais sobre Altmann, ainda que esta devesse ter sido a providência apropriada tendo em vista o passado dele”.

É altamente provável que esta versão dos acontecimentos seja uma mentira. Até mesmo a explicação de Altmann a Holm de que ele havia fugido diretamente da Alemanha Oriental para a Bolívia deveria ter desencadeado uma ampla pesquisa de antecedentes. Indicações de tais pesquisas podem ser encontradas nos arquivos de Barbie, que estão nitidamente incompletos.

Acima de tudo, no entanto, Solinger fez anotações sobre o passado de Barbie na primeira reunião dos dois. Com base nessas informações, estava claro que o novo agente havia trabalhando durante a guerra para o Departamento Central de Segurança do Reich, a organização das SS que organizou o Holocausto. Ficava também claro que ele estava sendo procurado pelos franceses por supostos crimes de guerra. É difícil acreditar que Barbie não tenha aproveitado essa oportunidade para revelar a sua verdadeira identidade, ou que a equipe do BND não tenha pelo menos feito uma pesquisa relevante de antecedentes após esse fato.

Alguns oficiais de inteligência que não participavam do caso ficaram desconfiados quando o agente V-43118 recusou-se a viajar para a Alemanha para fazer treinamento. “Será que existe alguma coisa contra ele – as SS?”, redigiu um oficial de inteligência em um comentário manuscrito em 13 de setembro de 1966. Poucas semanas depois, todos os envolvidos sabiam que o gabinete do procurador público em Wiesbaden estava em busca de Barbie com base em uma investigação preliminar feita pelo Departamento Central para a Investigação de Crimes Nazistas, em Ludwigsburg.

Pedido a Berlim Oriental

Naquele momento, também ficou aparente que, nesse ínterim, Barbie teve uma discussão com Günther Motz, o embaixador alemão em La Paz. Barbie acusou Motz de “colocar os interesses dos judeus alemães acima dos interesses dos outros membros da colônia alemã”.

Por meio de um intermediário, ele fez contato com um oficial de propaganda do partido comunista alemão oriental, o SED, em Berlim Oriental, e apresentou um pedido de busca aos arquivos alemães orientais por informações incriminatórias da era nazista sobre Motz. “Tais ações não se constituem exatamente em uma indicação de uma atitude apropriada”, dizem os arquivos do BND.

No outono de 1966, a agência decidiu parar de trabalhar com Barbie, “a fim de evitar futuras complicações e dificuldades”. Conforme se constata hoje, a esperança de que não houvesse problemas no futuro acabou não se concretizando.

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