domingo, 5 de dezembro de 2010

Telegramas pintam uma Rússia corrupta nas mãos de Putin

O presidente da Rússia, Dmitri Medvedev, não toma "qualquer decisão importante" sem consultar de forma "quase sempre obscura para o mundo exterior" o primeiro-ministro Vladimir Putin, que "governa nos bastidores" e encobrir as crises. O embaixador americano em Moscou, John Beyrle, preparava assim o diretor do FBI, Robert Mueller, para uma visita à Rússia.

Era novembro de 2009. Medvedev estava havia um ano e meio na chefia do Estado, mas, vista de fora, a dupla dirigente ainda correspondia ao modelo Batman e Robin (Putin e Medvedev, respectivamente). Os diplomatas americanos tinham recorrido a essa imagem dos quadrinhos um ano antes para sintetizar uma das três opiniões de seus contatos russos (as outras eram o suporte de Medvedev a Putin e a unanimidade de ambos).

"Não deve ter ilusões sobre seus interlocutores", advertia Beyrle ao chefe do FBI, referindo-se ao diretor do Serviço Federal de Segurança (SFS), Aleksandr Bortnikov; o diretor do Serviço de Espionagem (SIE), Mikhail Fradkov, e o ministro do Interior, Rashid Nurgaliev. Todos eles, indicava, representam os "siloviki" (denominação russa dos ministérios da Defesa, Interior e Segurança), "instituições que se sentem ameaçadas - ideológica e materialmente - pela política de esquecer o passado e recomeçar do zero nas relações bilaterais com os EUA", e que se parecem mais com a Ojrana (polícia secreta czarista) do que com instituições de segurança ocidentais.

Esses "protegidos de Putin", explicava o embaixador, "dominam a economia e os serviços de segurança" e "acreditam que a resposta para a maioria dos problemas é um Estado forte que exerça um controle político e econômico eficaz". Seus três interlocutores, continuou, "acumulam poder político, ... empregando a lei contra seus inimigos... e transformando os juizados em armas". Partidários de "apertar os tornozelos da oposição interna e seus supostos apoios externos, principalmente os EUA e seus aliados ocidentais", os siloviki controlam grande número de pessoal e recursos.

Apesar de suas semelhanças, "competem entre si pela influência" e protagonizam "conflitos opacos que às vezes saem à superfície". "Os analistas independentes acreditam que nos serviços de segurança haja pessoas ligadas ao crime organizado", escreveu Beyrle. Putin fez carreira como oficial do KGB (comitê de segurança do Estado da União Soviética), foi destinado à República Democrática Alemã e mais tarde chegou a dirigir o SFS.

Em um relatório baseado em especialistas do setor de petróleo, a embaixada americana adverte em novembro de 2008 sobre rumores segundo os quais a empresa suíça Gunvor é uma das fontes da "riqueza secreta de Putin". A Gunvor controla até 50% das exportações de petróleo russas e pertence a Gennady Timchenko, um colega de Putin na KGB.

Beyrle indicava que os siloviki se opunham aos "modernizadores", os setores que vinculam o futuro do país à integração na economia mundial, à transparência e à aplicação da lei, e que são a base de Medvedev, o "sócio menor" e um "firme defensor da modernização econômica, política e tecnológica".

Depois das "revoluções coloridas" na Geórgia (2003) e Ucrânia (2004), os serviços russos incrementaram suas atividades contra os EUA e outros países ocidentais, aos quais culpam de animar aqueles protestos. "O assédio contra todo o pessoal da embaixada disparou nos últimos meses em um nível não visto em muitos anos", afirmou Beyrle.

O embaixador citava batidas domiciliares, atividades contra o pessoal russo da sede e vigilância permanente aos diplomatas. Beyrle não esperava mudanças em médio prazo.

"A águia russa tem duas cabeças", explicava Mikhail Margelov, chefe da Comissão de Relações Exteriores do Conselho da Federação (câmara alta do Parlamento) a um representante americano em junho de 2008. O novo presidente "não é uma marionete e logo dominará a situação de modo inquestionável", afirmou Margelov, segundo um despacho confidencial. Na sua opinião, Medvedev era "um aluno que havia aprendido muito com seus professores" e supostamente com o "decano da faculdade", quer dizer, Putin.

A luta contra a corrupção indicaria a seriedade do presidente. Putin, alegava o senador russo, trabalhava duro para proteger o discípulo de seu próprio entorno. Essa ideia de Putin como protetor de Medvedev diante dos siloviki sem escrúpulos foi manifestada por outros contatos da embaixada.

A guerra com a Geórgia em agosto de 2008 foi a prova de fogo da dupla dirigente. Um influente jornalista russo contou aos americanos que, em um encontro em São Petersburgo em junho daquele ano, Medvedev propôs ao presidente Mikhail Saakashvili acertar "entre nós" os problemas dos secessionistas da Geórgia. Quando o georgiano atacou Tsjinvali, a capital da Ossétia do Sul, não houve fissuras na dupla russa, mas, segundo Beyrle, "Medvedev pestanejou" e evidenciou a necessidade de "um regente". Na opinião dele, a guerra mostrou que Putin havia sido "o homem em quem a maioria dos russos confia para proteger seus interesses nacionais".

Em Pequim, onde assistia aos Jogos Olímpicos, o primeiro-ministro deu o tom e posteriormente vigiou o acordo de cessar-fogo com a Geórgia negociado com a mediação do francês Nicolas Sarkozy. "Pálido e cansado", Medvedev foi aprendendo no caminho e seguindo as instruções de seu mentor. Depois a dupla se reequilibrou e Medvedev adotou um papel mais proeminente, segundo os despachos da embaixada. A partir do outono de 2008, a crise econômica mundial substitui a guerra com a Geórgia como medida da relação com os EUA.

A julgar pelas fontes, Putin resistiu a um papel secundário e rejeitou a ideia de criar com o vice-presidente americano, Joe Biden, uma nova comissão bilateral como a que codirigiram o chefe de governo Victor Chernomyrdin, e o vice-presidente americano Al Gore, sendo Boris Ieltsin o presidente da Rússia. Em outubro de 2008 o oligarca Vladimir Potanin, considerado próximo do primeiro-ministro, advertiu o embaixador de que Obama deveria ter "uma relação separada e uma agenda com Putin". "Potanin disse de maneira contundente que, deixando de lado as sutilezas diplomáticas, Putin ainda era o poder real na Rússia e o novo presidente tem de tratar com ele diretamente para que as relações melhorem", escreveu a embaixada em Moscou. Citando fontes russas, Beyrle afirmava que é "muito importante que Putin não se sinta marginalizado quando o governo Obama fizer seus primeiros contatos com a direção russa".

Às vezes são os aliados da Rússia que instruem sobre a dupla do Kremlin. A embaixada dos EUA em Astana cita um assessor de política externa do presidente do Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev, segundo o qual Medvedev teria se apresentado como o "representante de uma nova geração ... não envenenado pela história de antiamericanismo durante a Guerra Fria ... e disposto a trabalhar com Washington ... mas irritado" por sua política de instalar uma defesa antimísseis e ampliar a Otan.

O presidente do Azerbaijão, Iljam Aliev, por sua vez, qualifica Medvedev como "um intelectual moderno de uma nova geração", mas cercado de gente que não controla e subordinado a Putin. "Não se podem ferver duas cabeças em uma mesma panela", afirmou o azerbaijano, segundo um relatório confidencial da embaixada em Baku.

Washington esteve atento às opiniões dos europeus. Em 2008, Merkel não queria se reunir com Putin para não lhe dar destaque, mas em dezembro de 2009 os americanos informavam confidencialmente de Berlim que o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha "está se preparando" para o possível retorno de Putin à presidência em 2012, o que era "muito provável". Os franceses acreditavam que Medvedev adotava cada vez com maior frequência posições opostas a Putin e era mais aberto ao Ocidente, à modernização e às questões jurídicas, segundo afirmou em setembro de 2009 um documento secreto da embaixada em Paris.

A atitude francesa pode se resumir no lema "apoiar Medvedev e tolerar Putin", advertia naquele mesmo mês um diplomata americano. O presidente francês "também tentou se aproximar e cultivar" Medvedev acima de Putin, com a "esperança de reforçar os relativamente moderados em Moscou", disseram os americanos em março de 2009.

Em uma conversa com a secretária de Estado Hillary Clinton, o ministro das Relações Exteriores francês, Bernard Kouchner, considerou que Medvedev era um "sujeito normal, pelo menos melhor que Putin" e o elogiou por "ter tomado a sensata decisão de não instalar mísseis Iskander em Kaliningrado", segundo um documento secreto de fevereiro de 2009.

Medvedev admite a possibilidade de sanções ao Irã, mas a embaixada americana acreditava no outono de 2009 que a decisão nesse âmbito correspondia a Putin, porque as sanções teriam grande impacto na economia russa e nas empresas que controlam a exportação de armamentos e equipamento nuclear, que fazem parte das competências do primeiro-ministro.

Depois de uma conversa com Yuri Ushakov, conselheiro de Putin e ex-embaixador da Rússia em Washington, Beyrle opinava que era necessário manter Putin controlado, especialmente enquanto continuavam abertos os problemas do Irã e do tratado de desarmamento nuclear Start. Isto, indicou Beyrle, era "chave" para garantir que nenhum dos siloviki pusesse em risco essas prioridades para promover seus próprios interesses.

Medvedev também discorda de Putin em sua avaliação da história. Para o primeiro-ministro, a maior tragédia do século 20 foi a desintegração da União Soviética; para o presidente, a revolução bolchevique de 1917, segundo um documento secreto da embaixada em Moscou no qual é citada uma conversa de Medvedev com a chanceler alemã, Angela Merkel.

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