quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Viena, antro de espiões

Estátua do Arquiduque Charles da Áustria, Praça dos Heróis, em frente ao Palácio Hofburg, em Viena
Os mercados de Natal abriram em Viena, com seu cheiro de vinho quente com canela, e as escolas de dança já preparam a temporada de bailes: estão previstos 450 deles até a terça-feira de Carnaval. É a cidade dos sonhos dos turistas, com sua música alegre, festas, cafés iluminados na noite profunda da Europa Central. Mas existe uma outra, mais secreta, que os vienenses preferem esquecer, exceto quando uma notícia misteriosa lhes lembra de sua existência.

Como, por exemplo, a morte de Timothy Hampton, 47, cujo corpo foi descoberto na manhã do dia 20 de outubro de 2009, ao pé de uma escadaria da sede da ONU, onde ele trabalhava para a CTBTO, a Organização do Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares. Seu escritório ficava no 6º andar, e ele caiu do 17º. A polícia austríaca acredita se tratar de um suicídio. Mas esse cientista britânico, especialista em “assinatura” química de explosões atômicas, não parecia deprimido e não deixou carta de despedida. O último relatório que ele havia publicado um mês antes junto com três outros colegas revelava que a Coreia do Norte certamente havia mentido sobre o caráter pretensamente nuclear de um teste subterrâneo efetuado em maio de 2009.

Sua esposa Olena, uma russa contratada como inspetora da Agência Internacional da Energia Atômica (AIEA), acreditava tão pouco na hipótese de um suicídio que ela pediu em caráter particular por uma segunda autópsia ao departamento médico-legal do Instituto Ludwig Boltzmann de Graz. O caso foi arquivado em junho: não havia indícios de homicídio. Timothy Hampton foi colaborador de David Kelly, o cientista que contribuiu para semear a dúvida sobre a existência de armas biológicas de destruição em massa no Iraque – ele se suicidou, em maio de 2003, no auge da controvérsia.

É um dos mistérios de Viena, que desde a Guerra Fria tem sido constantemente um teatro de sombras para os espiões. Por exemplo, será que algum dia serão conhecidas as causas do “tiroteio” que no dia 22 de julho abalou um bairro chique de Viena, obrigando um helicóptero de resgate a pousar junto à catedral Saint-Étienne? Segundo a polícia, quatro empresários iranianos conversavam nos escritórios da Cerag Holding International, no número 14 da rua Weihburggasse, quando um deles atirou no peito de Baghaollah Vossough, um ex-professor universitário que morava em Viena desde 1979, antes de ferir os outros dois.

As vítimas tinham ligação com a Cerag. Mas esta estava registrada desde 2006 na Áustria como uma empresa de exportação e importação, que faz negócios sobretudo com a República Islâmica. Ela negociou com empresas, especialmente em Vorarlberg ou na Alemanha, cujos produtos podiam ser úteis ao programa nuclear iraniano, suspeito pelos ocidentais de ter objetivos militares. Surgia de repente o fantasma da “bomba dos mulás”, em meio a lojas de luxo e strudels de maçã.

Essa história rocambolesca logo sumiu da mídia, como se tivesse sido aspirada pelo torpor do verão, ou pelos esgotos caros a Harry Lime, o herói caído do “Terceiro Homem” encarnado em 1949 por Orson Welles. O filme de Carol Reed contribuiu tanto para construir a lenda vienense que ele está permanentemente em cartaz, e a secretaria de Turismo toma o cuidado de organizar, todo verão, excursões pelos esgotos.

Os vienenses se sentiram mais lisonjeados por seu aeroporto ter sido escolhido pelos russos e pelos americanos, no dia 8 de julho, para a maior troca de espiões já feita entre Ocidente e Oriente desde 1986: quatro agentes condenados por espionagem para os Estados Unidos contra dez russos; entre eles, a russa Anna Chapman, que recentemente posou para a capa de uma revista moscovita, usando lingerie sexy da marca Agent Provocateur.

Longe dos clichês, o historiador Siegfried Beer, fundador do Centro Austríaco de Estudos sobre Inteligência, Propaganda e Segurança, na Universidade de Graz, acredita que “cerca de 2.500 espiões, trabalhando para 70 a 80 países, estão ativos em Viena”. A presença de uma comunidade diplomática de 20 mil pessoas, incluindo famílias, facilita as coisas para eles, assim como diásporas engrossadas pelas guerras e conflitos políticos no Oriente.

A diplomacia do falecido chanceler social-democrata Bruno Kreisky, com boas conexões no Oriente Médio, fez da antiga capital dos Habsburgo sede de importantes organizações internacionais: as de países exportadores de petróleo (Opep), da Cooperação e da Segurança na Europa (OSCE), ou ainda do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Onudc). Sem esquecer da AIEA. A imprensa israelense revelou que o novo chefe dos serviços de inteligência turca, Hakan Fidan, conhecido pró-iraniano, esteve lá a serviço em 2009.

Esse pequeno mundo tem seus hábitos, que variam de acordo com a época e com os interesses. Nos tempos em que Simon Wiesenthal, o famoso caçador de nazistas, colaborava com os americanos e com o Mossad israelense (sob o codinome Teocrata), ele encontrava seus interlocutores no café Korb, na rua Tuchlauben. A CIA costuma se regalar no Schnattl, um restaurante na Josefstadt. Outro lugar apreciado: o café Schwarzenberg, próximo aos grandes hotéis do Ring, em especial do Palácio Coburg, onde costumam se hospedar russos e déspotas da Ásia Central. Quanto aos chineses, eles gostam de receber convidados em um restaurante do Extremo Oriente, perto da ONU, mais conhecido pela qualidade de seus equipamentos de escuta do que por sua cozinha.

O artigo 245 do Código Penal prevê três anos de prisão para espionagem, mas somente se ela tiver causado danos à Áustria. Ocupado após a guerra pelas tropas aliadas, o país preservou uma mentalidade pusilânime. A chegada de 200 mil refugiados húngaros em 1956, um ano após a partida dos últimos soldados soviéticos, e em seguida o aniquilamento da “primavera de Praga”, em 1968, marcaram as memórias: o inimigo acampou por tanto tempo perto da fronteira que não se deve irritá-lo dificultando-lhe o direito de se informar. Assim, a Rússia tem 116 diplomatas autorizados em Viena (sem contar a delegação na OSCE), contra 67 para os Estados Unidos, 40 para o Irã, e 30 para a França.

E quando um austríaco espiona para outros? O caso de Gustav Hochenbichler, número dois da polícia vienense até 1991 (e responsável pelos estrangeiros e visitas oficiais), é exemplar. Ao dissecar os arquivos da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, após a queda do Muro de Berlim, a CIA se deparou com as provas de que o “belo Gustav” havia colaborado com esse país, que usava a Áustria para a transferência ilegal de altas tecnologias para a Europa Oriental. Contentaram-se em aposentá-lo.

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