quarta-feira, 1 de setembro de 2010

ONU documenta banho de sangue no Congo


Mulheres e meninas foram estupradas. Homens foram massacrados. Refugiados foram assassinados com facões e paus. Um novo relatório da ONU descreve uma orgia de violência no Congo entre 1993 e 2003, documentando meticulosamente como a lei e a humanidade foram abandonadas. Ele também acusa Ruanda de atrocidades no Congo – algo que não foi bem recebido em Kigali.

O relatório tem mais de 500 páginas. É uma das investigações mais completas de crimes de guerra na história da ONU. Apesar de ainda não ter sido publicado, causou tensões diplomáticas sérias em Nova York, Congo e Ruanda.

Duas dúzias de inspetores examinaram meticulosamente os assassinatos em massa na República Democrática do Congo, entre 1993 e 2003. Eles avaliaram relatórios, assistiram vídeos e entrevistaram milhares de testemunhas. Eles conferiram tudo que foi considerado significativo. Uma prévia do relatório já vazou e documenta o horror.

Os investigadores descrevem como, por anos, grupos rebeldes patrocinados por Ruanda caçaram, torturaram e massacraram refugiados hutus no Congo, ou Zaire, como era chamado na época. Escolas, hospitais, campos de refugiados, crianças, mulheres, idosos – nada nem ninguém estava seguro das gangues assassinas dos dois lados. De forma alguma, os perseguidores de Ruanda eram os únicos a perpetrarem os crimes. O relatório descreve o enorme país como corrupto e podre, um lugar onde direitos humanos, justiça e valores humanitários perderam seu valor décadas atrás.

Conflitos étnicos pelo Congo

O declínio do país começou muito antes da Primeira Guerra do Congo de 1996 a 1998 e a derrubada e exílio do ex-ditador Mobutu Sese Seko, em 1997. No final de 1991, os congoleses da província rica em cobre de Katanga, no sul do país, começaram a perseguir, remover e matar pessoas que tinham migrado da região de Kasai. O conflito foi alimentado por Mobutu, que se sentiu ameaçado por muitos políticos de oposição de Kasai.

Comerciantes de Kasai tiveram o acesso negado aos mercados em Katanga, suas propriedades foram roubadas e eles foram perseguidos. No final do outono de 1992, cerca de metade dos moradores da cidade de Likasi, em Katanga, foram forçadas a sair, 60.000 pessoas no total. Migrantes de Kasai também foram expulsos da cidade mineira de Kolwezi, com a ajuda da polícia e autoridades locais.

As mesmas arbitrariedades ocorreram em outras províncias, algumas vezes promovidas pelos governadores. Conflitos entre grupos étnicos diferentes levaram à morte de mais de mil pessoas só em Katanga, algo que mal foi registrado na Europa ou nos EUA. Os conflitos logo se espalharam para a capital Kinshasa, onde Mobutu estava tentando com todas suas forças se segurar no poder. Migrantes de Kasai foram as principais vítimas, mas oponentes políticos também temeram por suas vidas.

Enquanto isso, em meados de 1990, no leste do país, rico em recursos, começou uma agitação contra os imigrantes tutsis de Ruanda e Burundi. Na província de Kivu do Norte, banyamasisi-tutsis já tinham sido vítimas de remoção forçada. Agora, a pressão estava crescendo contra os banyamasisi-tutsis em Kivu do Sul. Essa pressão aumentou porque, dois anos antes, milhões de refugiados de Ruanda, primariamente hutus, tinham fugido para o leste do Congo. Eram uma mistura de soldados e civis, assassinos e crianças, e todos tinham deixado Ruanda com medo dos tutsis vitoriosos e seu líder militar Paul Kagame buscarem vingança após o genocídio de 1994, quando 800.000 tutsis e hutus moderados foram assassinados por extremistas hutus em apenas 100 dias.

Assassinatos sistemáticos

Muitos se reorganizaram em campos de refugiados ao longo da fronteira e depois começaram a caçar os tutsis que vinham se estabelecendo no Congo por décadas. No final de setembro de 1996, os assassinatos sistemáticos de banyamasisi-tutsis começaram. O relatório da ONU os descreve em detalhes:

No dia 29 de setembro de 1996, em Lueba, 78 km ao sul de Ivira, unidades do grupo étnico bembe mataram 152 civis banyamulenge, inclusive muitas mulheres e crianças, com a ajuda do exército do Zaire. Algumas das vítimas foram mortas por golpes de facão, outras foram queimadas em suas casas. Houve estupro em massa de mulheres e meninas.

Neste momento, em Kivu do Norte, havia um inferno na Terra. Centenas de milhares de pessoas fugiam de suas casas. Milicianos tutsis e soldados de Ruanda invadiram campos de refugiados ao longo da estrada principal entre Goma e Rutshuru. Homens foram amarrados e mortos, mulheres violentadas, crianças surradas até a morte.

. Na noite do dia 29 de setembro e manhã do dia 30, unidades bembe mataram quase 100 civis banyamulenge perto da aldeia de Moboko. As vítimas eram sobreviventes do massacre de Lueba, ocorrido horas antes. Os milicianos disseram que iam levá-los de volta para Ruanda. Entretanto, enquanto as mulheres e crianças puderam deixar o país, os homens foram amarrados e jogados no lago Tanganica.

No dia 21 de outubro, um banyamulenge foi morto em Uvira e sua cabeça foi carregada em um bastão pela cidade. Os perpetradores fizeram e usaram um colar com seus testículos.

O chefe das forças armadas do Zaire acusou os banyamulenges, no dia 11 de outubro de 1996, de trabalharem com Ruanda para travar uma guerra contra o Zaire. O anúncio foi uma declaração oficial de caça aberta aos tutsis. Então, tutsis e banyamulenges, apoiados por soldados de Ruanda, começaram a avançar para o Congo, usando métodos igualmente brutais. Eles montaram bloqueios nas estradas e separaram os ruandeses e hutus de Burundi da multidão de refugiados. Centenas de hutus foram mortos ali mesmo, milhares de outros foram selecionados, aparentemente para serem enviados para Ruanda, mas foram assassinados ali perto.

No dia 22 de novembro de 1996, centenas de refugiados foram amontoados no campo de Chimanga, a 71 km a oeste de Bukavu. Uma vaca foi morta, teoricamente para que tivessem forças para a longa marcha de volta para Ruanda. Quando os hutus começaram a se inscrever, os guardas em torno do campo abriram fogo, matando cerca de 500 a 800 refugiados.

Na ponte de Ulindi, perto da cidade de Shabunda, os tutsis mataram 500 refugiados no dia 5 de fevereiro de 1997. O povo local teve que remover os corpos e restos da matança na ponte.

O relatório descreve sobriamente mais de 600 incidentes similares e para cada caso há testemunhas e provas. Os investigadores não se fiaram em boatos.

O relatório afirma que as pessoas foram “executadas às centenas, muitas vezes com armas pontiagudas”. Ele afirma que “a maioria das vítimas eram crianças, mulheres, idosos e doentes... que não impunham ameaça alguma às forças que os atacavam”. O relatório prossegue dizendo que “os ataques sistemáticos e amplos têm uma série de elementos agravantes, que provados diante de um tribunal, seriam classificados como crimes de genocídio”.

Não foram apenas os tutsis que colocaram de lado todos os padrões de humanidade em sua guerra de vingança contra os hutus no Congo. Os congoleses não se tratavam muito melhor. O relatório fornece evidências disso.

Quando os conflitos entre os povos hema e lendu escalaram na província de Ituri, em fevereiro de 2003, os hemas convidaram uma delegação lendu para conversas na aldeia de Sangi. O grupo lendu, que incluía mulheres, mal tinha chegado quando os hemas os atacaram com facões, facas e porretes. Alguns foram amarrados e assassinados na igreja local. Somente dois lendus sobreviveram. Os conflitos entre esses grupos étnicos também são detalhadamente documentados no relatório da ONU.

Ruanda ameaça retirar-se de missões da ONU

A versão oficial do relatório será divulgada em poucos dias, mas as primeiras reações às notícias da mídia, em Ruanda em particular, causaram grande inquietação. O governo de Kagame negou expressamente ter tomado parte em crimes que podem ser comparados a genocídios no Congo. Nos últimos meses, o governo até tentou impedir a publicação do relatório, ou ao menos mitigá-lo um pouco.

A ministra de relações exteriores, Louise Mushikiwabo, escreveu uma carta ao secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, na qual ameaçou terminar o envolvimento de Ruanda com a ONU e disse em particular que ia retirar tropas de paz de Ruanda de missões da ONU, por exemplo, na região de crise sudanesa em Darfur. E o porta voz do governo em Kigali disse que seria “imoral e inaceitável” para a ONU, “uma organização que não conseguiu impedir o genocídio em Ruanda”, agora acusar “o exército que impediu esse genocídio de cometer atrocidades na República Democrática do Congo”.

Ainda assim, Ruanda e sua história estão inextricavelmente ligadas com décadas de banho de sangue no Congo. Isso ficou novamente claro no início de agosto. Membros da milícia hutu de Ruanda, Fdlr, violentaram ao menos 179 mulheres perto de Walikale no Congo. As vítimas disseram que tinham sido estupradas entre duas e seis vezes cada uma. A violência tenebrosa continuou por vários dias.

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