quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Der Spiegel: Munições de urânio podem ter aumentado casos de problemas congênitos em recém-nascidos no Iraque


À primeira vista é como se o velho estivesse bêbado. Ou, talvez, como se ele estivesse lendo textos sobre mitos gregos. Mas Askar Bin Said não lê nada – nem livros – e não há álcool em Basra. Na verdade, ele diz que viu as criaturas que está descrevendo com seus próprios olhos: "alguns tinham apenas um olho no meio da testa. Ou duas cabeças. Uma tinha uma cauda, como se fosse um cordeiro sem pele. Outra parecia ser uma criança perfeitamente normal, mas... tinha cara de macaco. E havia uma menina cujas pernas cresceram coladas, e era metade peixe, metade humana".

Os bebês que Askar Bin Said descreve foram trazidos até ele. Ele os lavou e os enrolou em mortalhas e, em seguida, os enterrou sob a terra seca – cheia de pedaços de plástico e tampas de lata – de seu próprio cemitério, que é de propriedade de sua família há cinco gerações. É um cemitério só para crianças.

Embora os corpos dos bebês sejam pequenos, o espaço entre os túmulos é tão pequeno que eles quase ficam uns em cima dos outros. Ao olharmos os túmulos temos a impressão que alguém virou carrinhos de mão de brinquedo cheios de cimento em cima deles e, depois, escreveu o nome e a data de morte dos bebês antes que o cimento endurecesse. Em muitos casos, não existe nem espaço para a data de nascimento. Mas isso realmente não importa, pois, na maioria dos casos, as duas datas são iguais.

Há vários milhares de sepulturas no cemitério, e de cinco a dez são preenchidas todos os dias. O grande número de túmulos é certamente notável, diz Bin Said. Mas, acrescenta ele, "realmente não há uma explicação" para o fato de existirem tantos recém-nascidos mortos e deformados em Basra.    

Outros, porém, têm uma ideia do motivo dessas mortes e deformidades. De acordo com um estudo publicado em setembro passado pelo Bulletin of Environmental Contamination and Toxicology (Boletim de Contaminação Ambiental e Toxicologia, em tradução livre), revista profissional cuja sede fica na cidade de Heidelberg, localizada no sudoeste da Alemanha, o número de defeitos congênitos aumentou sete vezes em Basra entre 1994 e 2003. De cada 1.000 bebês nascidos vivos, 23 tinham porblemas de nascença.  

Cânceres duplos e triplos    
Da mesma maneira, tem sido registrada uma alta incidência de mortes e deformidades em Fallujah, cidade que foi palco de disputas bastante hostis durante a guerra de 2003. Segundo o estudo de Heidelberg, a concentração de chumbo nos dentes de leite das crianças doentes de Basra era quase três vezes maior do que os valores detectados em áreas onde não houve nenhum conflito.

Nunca antes uma taxa tão elevada de defeitos do tubo neural ("espinha bífida") foi registrada em bebês como tem ocorrido em Basra – e a taxa continua subindo. O número de casos de hidrocefalia ("água no cérebro") entre recém-nascidos é seis vezes mais elevado em Basra do que nos Estados Unidos, conclui o estudo.

Desde 1991, Jawad al-Ali trabalha como especialista em câncer no Hospital Universitário Sadr (antigo Hospital Saddam), situado em um edifício de aparência sinistra em Basra. Ele se lembra do período posterior à primeira guerra do Golfo, na qual o Kuwait estava em disputa. "Não é apenas que o número de casos de câncer aumentou repentinamente. Nós também registramos casos de cânceres duplos e triplos, ou seja, pacientes com tumores em ambos os rins e no estômago. E havia também grupos de parentes, ou seja, famílias inteiras que foram afetadas". Ele está convencido de que essas ocorrências estão relacionadas à utilização de munições de urânio. "Há uma conexão entre câncer e radiação. Às vezes, leva 10 ou 20 anos antes que as consequências se manifestem".

O termo munição de urânio se refere aos projéteis cujas ligas ou núcleos são feitos com urânio "empobrecido", ou urânio fracamente radioativo, também conhecido como DU (do inglês "depleted uranium" ou urânio empobrecido). Quando os soldados alemães são enviados ao exterior, eles recebem a seguinte informação: "as munições de urânio são projéteis capazes de perfurar blindados e têm um núcleo de urânio empobrecido. Devido a sua alta densidade, esse núcleo proporciona ao projétil um impulso muito forte e lhe permite perfurar a blindagem de tanques de combate".

Quando o DU explode, ele produz um pó de urânio muito fino. Ao brincarem perto dos tanques destruídos, as crianças podem absorver esse pó através de sua pele, sua boca e suas vias aéreas. Um estudo de 2002, realizado pela Universidade de Bremen, no norte da Alemanha, descobriu que alterações cromossômicas ocorreram em veteranos da Guerra do Golfo que entraram em contato com munições de urânio.

O Ministério da Defesa da Alemanha alega que não é a radiação que constitui uma ameaça à saúde, mas a "toxicidade química do urânio".  

Vivendo em um lixão    
A Royal Society de Londres apresentou um dos estudos mais abrangentes sobre o assunto em 2002, mas só abordou a ameaça potencial para os soldados. O estudo concluiu que o risco de a radiação causar danos aos soldados é "muito baixo", assim como é baixo o risco de eles desenvolverem toxicidade renal crônica provocada pelo pó de urânio.

Isso pode tranquilizar os soldados, mas não Mohammed Haidar. Ele vive em Kibla, bairro de Basra que, assim como outros da cidade, se assemelha a um lixão. Kibla é um bairro cheio de lojas e barracos miseráveis e improvisados – entre os quais um líquido esverdeado brilhante flui através de esgotos a céu aberto e recipientes de plástico cheios de material em decomposição.

Haidar, que leciona matemática em uma escola, poderia se dar ao luxo de viver em um bairro melhor. Mas ele gasta todos os seus dinares no tratamento de sua filha Rukya. Sentada no colo de Haidar, a menina de três anos se parece com um boneco de ventríloquo. Ela é uma menininha adorável, com tranças e fitas no cabelo. Mas ela não consegue caminhar nem falar direito.

Quando Haidar vira sua filha, duas aberturas em suas costas ficam visíveis. Ela tem espinha bífida – o sinal externo visível da hidrocefalia –, além de ter um tubo de drenagem implantado em seu corpo para remover o excesso de fluidos cérebro-espinhais. Na Alemanha, casos parecidos com o dela são frequentemente tratados com cirurgia pré-natal, mas não em Basra. Na verdade, Haidar e sua esposa estão felizes só por Rukya estar viva. Ela é sua primeira e única filha. "Nós crescemos em Basra. Eu acredito que os Estados Unidos são responsáveis (pela doença de Rukya). Eles usaram DU. Minha filha não é um caso isolado", diz Haidar.

O termo "DU" parece ser tão difundido em Basra quanto os defeitos congênitos.

A munição de DU foi usada duas vezes em Basra: fora da cidade, durante a guerra de 1991, e dentro da própria cidade, em 2003, quando as tropas britânicas avançavam em direção ao aeroporto. A zona oeste de Basra é o distrito urbano com a maior incidência de leucemia entre crianças.

"Aqueles que eram crianças durante a primeira guerra são adultos hoje", diz Khairiya Abu Yassin, da agência ambiental da cidade. Ela estima que 200 toneladas de munições de urânio empobrecido foram usadas em Basra durante a guerra. O Ministério da Defesa britânico afirma que suas tropas utilizaram apenas cerca de duas toneladas de munições de urânio empobrecido durante a guerra. De qualquer maneira, restos de tanques destruídos com a ajuda de munição DU durante a guerra lotavam as ruas até 2008.    

Matéria-prima de propaganda    
Era impossível manter as crianças e os caçadores de ferro-velho longe dos destroços, diz Abu Yassin. "Nós instalamos placas que diziam: ‘Cuidado – Radiação’. Mas as pessoas não levam a sério ameaças que não agem como as balas disparadas de uma arma".

O DU é uma questão delicada e nem todo médico de Basra está disposto falar abertamente sobre seus efeitos. Os motivos da reticência têm a ver com o regime ditatorial de Saddam Hussein: a suposta ameaça radioativa proveniente dos restos de munições antiblindados forneceu uma popular matéria-prima de propaganda.

Nos Estados Unidos, até agora nenhum grande jornal publicou reportagens sobre as doenças genéticas em Fallujah. O britânico "The Guardian", por outro lado, criticou o silêncio do "Ocidente", chamando-o de falha moral, e citou o químico Chris Busby, que disse que a crise de saúde observada em Fallujah representa "a maior taxa de danos genéticos registrados em qualquer população já estudada". Busby é coautor de dois estudos sobre o assunto.

Ainda assim, é difícil de identificar precisamente a causa dos problemas. Anomalias da medula espinhal também podem ser desencadeadas pela deficiência de ácido fólico no início da gravidez, por exemplo. Além disso, muito poucas iraquianas podem pagar exames regulares durante a gestação. Como resultado, muitos embriões defeituosos são gestados até o nascimento, ao contrário do que normalmente acontece na Europa ou os EUA.

Wolfgang Hoffmann, epidemiologista da Universidade de Greifswald, no nordeste da Alemanha, tem colaborado com colegas cientistas em Basra há vários anos. "Os defeitos congênitos geralmente parecem muito perturbadores por foto", diz ele. "Mas eles sempre são casos isolados, e não são necessariamente úteis para identificar tendências".

Hoffmann cita a falta de dados abrangentes e questiona a confiabilidade epidemiológica dos relatórios. No entanto, ele acredita que os indícios do aumento das taxas de câncer em Basra devem ser levados muito a sério – em parte, porque os dados de Basra são mais confiáveis.

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