segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Der Spiegel: Na Líbia, prisioneiros e guardas carcerários trocam de lugar após revolução


A busca por justiça está levantando questões difíceis na nova Líbia sobre quem é culpado pelas atrocidades da era Gaddafi, tal como o massacre da prisão de Abu Salim. Um experimento único está ocorrendo em uma prisão, onde antigos presos confrontam seus torturadores

A busca pela justiça na nova Líbia está levantando questões difíceis sobre de quem é a culpa pelas atrocidades da era Kadafi; esta imagem mostra um um grafite na prisão de Abu Salim de um massacre infame em 1996 
Mohammed Gwaidar poderia acorrentar o homem na parede, pendurá-lo, enviar eletrochoques por seu corpo e bater nas solas dos pés até incharem como dois balões. De certa forma, seria justo, porque foi precisamente isso que o homem na cela seis da prisão de Hadba na capital da Líbia, Trípoli, fez com ele. Gwaidar, 48, ficou trancafiado por 11 anos por convicções religiosas e por tentar derrubar o governo. Hoje, a prisão abriga um ex-primeiro-ministro, 14 coronéis no serviço de inteligência e dezenas de agentes carcerários –e Hamsa, seu antigo torturador.

Mas Gwaidar não quer torturar o homem. Em vez disso, quer conversar com ele. Ele quer uma resposta para uma pergunta que o persegue por todos esses anos. Por que mais de 1.200 pessoas tiveram que morrer no massacre de Abu Salim em 1996? Por que tantas outras tiveram que sofrer? Por que tanto ódio?

Eles conversaram pela primeira vez em fevereiro, o torturador e sua vítima, que hoje é diretor da prisão de Hadba. Hamsa foi preso por homens de Gwaidar enquanto se escondia com a família no oeste da Líbia, pobre demais para fugir para o exterior.

Sua primeira conversa é curta: “Você se lembra?”, pergunta Gwaidar. Hamsa balança a cabeça. Gwaidar mostra suas mãos ao prisioneiro, mas Hamsa olha para o chão. Gwaidar se ajoelha e dobra-se para frente, cruza as mãos atrás das costas e fica na ponta dos pés. “Foi isso que você fez comigo. Fiquei pendurado assim por 10 dias”, ele grita. Agora Hamsa está olhando para os pulsos de Gwaidar, que têm uma marca fina, como se alguém tivesse tentado cortar suas mãos. “Eu sabia que você viria me pegar um dia”, diz ele. E depois começa a chorar.

Quando os prisioneiros se tornam os guardas
Um experimento único, sem regras, está ocorrendo na prisão de Hadba, onde os antigos prisioneiros hoje são os guardas da prisão e os antigos guardas são os prisioneiros. O que eles têm em comum é Abu Salim, a mais notória prisão para prisioneiros políticos de Trípoli, o epicentro do medo durante a ditadura de Muammar Gaddafi. Milhares foram torturados ali. E em 1996, cerca de 1.200 presos foram executados, como retribuição brutal pela revolta contra as condições desumanas da prisão.

Não apenas na prisão de Hadba, mas por todo o país, essa troca de papéis está ocorrendo em um vácuo legal e institucional. Os revolucionários prenderam mais de 7.000 pessoas, e muitas ainda estão em prisões secretas. Saif Al-Islam Gaddafi, que deve ser julgado na cidade de Zintan, no noroeste da Líbia em setembro, é o mais famoso dos presos. A maior parte, porém, eram meros operários na grande roda da ditadura: informantes, assassinos, torturadores e mercenários. Agora estão nas mãos daqueles que combateram e oprimiram. E surge a questão do que deve acontecer com eles. Alguns querem vingança, outros querem perdão e todos querem justiça. Mas como pode haver reconciliação em uma nação que sofreu tanto?

A prisão talvez seja o lugar para começar a procurar respostas. Os crimes monstruosos de Abu Salim são a ferida mais profunda na memória coletiva dos líbios. É o marco zero de Gaddafi, a epítome da brutalidade do regime e o início de seu fim.

Os sobreviventes e famílias das vítimas vinham protestando em Benghazi todo sábado desde 2007. Então, Fathi Terbil, advogado que representava as famílias das vítimas, foi preso em 15 de fevereiro de 2011. No dia seguinte, milhares foram às ruas para exigir sua libertação, marcando o início da revolução, que terminou quando os insurgentes encontraram o ex-ditador em um tubo de concreto e Mohammed Gwaidar tornou-se diretor da prisão.

Apenas memórias
Cerca de 300 homens estiveram envolvidos no massacre de Abu Salim. Cerca de 100 deles foram presos e a maior parte está detida na prisão de Hadba. Vinte homens cujas vidas estão inextrincavelmente ligadas a Abu Salim agora são seus interrogadores. Alguns são prisioneiros, enquanto outros perderam irmãos e filhos ali. Juntos, eles gravaram confissões, permitiram que as vítimas confrontassem os perpetradores e reconstruíram o massacre.

Gwaidar mostra um fichário sobre a mesa, dizendo que seria melhor que nós víssemos por nós mesmos. De acordo com os registros, o ex-chefe da inteligência Abdullah Al-Senussi e primo de Gaddafi, Mansour Dhao, deram as ordens para o massacre. Senussi fugiu para a Mauritânia enquanto Dhao foi preso em Misrata. Estima-se que 1.270 dos 1.700 presos morreram, inclusive 120 que estavam doentes. Eles foram levados para os pátios da prisão. Por duas horas, os guardas atiraram na multidão do telhado. No dia seguinte, os corpos foram levados para uma vala em uma construção. Quatro anos depois, os mortos foram retirados da terra, e os agentes carcerários tentaram destruí-los com substâncias químicas e triturá-los com uma máquina de quebrar pedra. Eventualmente, queimaram os corpos e jogaram as cinzas no mar.

Não há mais evidências, apenas memórias, e há homens como Hamsa que, apesar de sentir remorso, não se sente culpado. “Eu queria estar morto”, diz Hamsa, descrevendo o momento que ficou diante de Gwaidar. Ele mesmo conta a história do primeiro encontro, após o diretor da prisão tirá-lo da sua cela.

O ex-torturador é um homem alto e magro, de 59 anos, que passou 20 anos trabalhando em Abu Salim. Apesar de hoje ser esguio, está claro que ele foi forte. Ele tem olheiras escuras e um sorriso que lembra o do ex-ditador iraquiano Saddam Hussein –estranhamente alegre e sombrio ao mesmo tempo.

“Eu não contei quantas pessoas matei”
Há três homens no escritório. Hamsa está sentado em uma poltrona, enquanto Gwaidar está no sofá a sua frente. Perto de Gwaidar está seu colega Mouad Khalil, 40, que tem um rosto suave de bebê e trabalhava como vendedor de móveis antes da revolução. Ele só quer que utilizemos seu apelido.

Por que Hamsa está ali? “Fui um dos guardas da prisão que participou nos incidentes em Abu Salim”, diz ele. “Também participei do fuzilamento, sob comando de Abdullah Al-Senussi e do diretor da prisão. Não contei quantas pessoas matei. Eles nos davam armas novas. Eu só atirava”, diz Hamsa com uma voz suave e monótona, de um homem que passou 16 anos justificando suas ações para si mesmo.

Se ele torturou os outros presos? Os olhos de Gwaidar se movem nervosamente de um lado para o outro. Ele tenta não olhar para Hamsa, e ainda assim não consegue evitar de olhar para seu rosto sorridente. “Sempre tentei ser legal”, diz Hamsa. “Não era um dos maus. Não me lembro de ter torturado ninguém. Se torturei, minhas desculpas”.

Gwaidar pega um copo de água, se afunda no sofá e tenta parecer desapegado. “Eu o perdoo”, diz subitamente.

“Mas você cometeu tortura! Você o torturou!” diz Khalil, incapaz de controlar sua fúria.

Pronto para perdoar
Uma das ironias da vida é que os que sofreram mais, muitas vezes, são os mais capazes do perdão. Khalil, contudo, não quer esquecer. Ele está cheio de ódio contra os homens que mataram dois de seus irmãos em Abu Salim. Ele teve que esconder seu ódio por tantos anos, porque era perigoso até mesmo mencionar o massacre.

“Sim, nós tratávamos mal os prisioneiros. A comida era horrível. Muitos tinham tuberculose, e nós batíamos neles”, diz Hamsa. Mas ele se recusa a admitir o que fez ao homem sentado no sofá.

“Ele era a máquina de tortura”, diz Gwaidar, como se Hamsa não estivesse na sala. “Seu único trabalho era torturar os prisioneiros. Lembramos de cada segundo, mas ele não, porque torturou tantas pessoas”.

Hamsa sorri e diz: “Eram minhas ordens. O que eu podia fazer? Meu primo estava na prisão e eu estava sendo observado. Não tinha escolha”.

Que tipo de punição seria justa? “Não sei”, diz Hamsa. “Está nas mãos de Deus”.

Demonstração de lealdade
Depois de devolver Hamsa a sua cela, o diretor diz: “Queremos julgar todos que derramaram sangue. Agora precisamos julgar os assassinos. É importante para a reconciliação nacional”.

Mas quem é culpado? Gwaidar interrogou muitos dos assassinos de Abu Salim e todos disseram a mesma coisa: se não tivéssemos matado, teríamos sido mortos. Gwaidar diz que não sabe o que teria feito na posição deles. “Mas acredito que eles também fizeram aquilo para demonstrar sua lealdade. Ninguém deu uma desculpa, nem no segundo dia do massacre. E mesmo aqueles que tinham folga apareceram para participar. Hoje alguns choram quando falam a respeito, enquanto outros não demonstram emoção alguma”.

Por quê? Nenhum dos prisioneiros parece ter uma resposta. E talvez esta seja a pior coisa de todas, o fato de que talvez não haja uma explicação.

Onze anos perdidos
No dia anterior, Gwaidar voltou a Abu Salim. Era dia 29 de junho, aniversário do massacre, e pela primeira vez os líbios puderam publicamente homenagear os mortos, 16 anos após o dia fatídico em 1996.

Quando os rebeldes capturaram Trípoli há um ano, milhares de ex-presos e suas famílias fizeram uma peregrinação a Abu Salim. Gwaidar esperou até outubro. Após sua libertação, ele nunca falou sobre o massacre e a tortura que sofreu; ele reprimiu as memórias fundo em si mesmo.

Mas isso não ajudou, e agora ele está de volta. Ele passa pelas plantas que cresceram na porta, para entrar na prisão que tirou 11 anos de sua vida, de 1989 a 2000. Durante esses 11 anos, a filha dele nasceu, cresceu e foi para a escola, e ele nunca a viu. A mulher, Fadila, esperou por ele sem saber, na maior parte do tempo, se estava vivo.

Neste dia, ele leva Fadila à prisão com ele pela primeira vez. “Por tantos anos, tentei imaginar o que estavam fazendo com ele”, diz ela. Mas depois que ele foi solto, ela não ousou perguntar –e ele nada disse.

Gwaidar foi a Abu Salim várias vezes desde aquela primeira visita, mas todas as vezes é difícil. “Foi aqui que Hamsa me pendurou”, diz ele, apontando para um pátio coberto de detritos. “Fiquei ali pendurado por dias. Eu alucinei e falei comigo mesmo até perder a consciência. Então eles me trancaram em uma cela de menos de um metro quadrado. Fiquei lá por 25 dias. Foi um inferno”. Por seis meses, ele não conseguiu mexer as mãos.

Ele entra na cela onde ficou preso por sete anos, junto com 17 outros presos. Ele passa as mãos pela porta de metal e encontra um furo minúsculo. “Nós vimos Abdullah Al-Senussi por esse buraco, no dia do massacre”. Todo mundo nesta seção foi morto, exceto pelos homens desta cela. Foi a porta que os salvou. Ela emperrou quando os amotinados tentaram abrir com as chaves que roubaram dos guardas. Como resultado, os homens ficaram presos na cela e não puderam participar do motim. Por isso foram poupados da vingança sangrenta.

A vida não é normal
Para celebrar a data, os antigos prisioneiros montaram uma exibição em um dos pátios onde as mortes ocorreram. Algumas cartas que foram contrabandeadas para fora da prisão foram coladas às paredes e os objetos que os prisioneiros fizeram para tornar suas vidas mais suportáveis são apresentados.

Gwaidar anda de mesa em mesa como se estivesse em transe. Ele passa as mãos por uma bola de futebol, costurada com pedaços de tecido. Ele pega um gorro tricotado por um prisioneiro contra o frio do inverno, rosários feitos de caroços de azeitona, sapatos feitos de pedaços de carpete e borracha –tentativas desesperadas de preservar uma pequena parte de humanidade em um lugar desumano.

Na última mesa está um pedaço de pau, uma mangueira, um tubo de ferro e um cabo.  “Era com isso que batiam em nós, não apenas durante os interrogatórios, mas incessantemente. Toda vez que pegávamos nossa comida, enfrentávamos uma chuva de golpes”.

Será possível viver normalmente depois dessas experiências? “Estaria mentindo se dissesse que minha vida é normal”, diz Gwaidar. “Por muitos anos, não me comuniquei com ninguém que não fosse da minha família. Eu suspeitava de todos, achavam que eram do serviço de inteligência”. Depois de sua soltura, Gwaidar pegou a família e se mudou para o mais longe possível dentro da Líbia, para Kufra, a 1.200 quilômetros de distância, no meio do deserto do Saara. Ele queria começar uma vida nova. Mas nunca conseguiu apagar as memórias.

“Ele é tão frio”
Poucos dias após a visita a Abu Salim, reencontramos Gwaidar em sua prisão. Ele está vestindo um uniforme de polícia bem passado, o mesmo que era usado por seus atormentadores, exceto que agora tem bordados o crescente e a estrela da revolução. Ele agora é coronel, mas não está totalmente claro quem são seus superiores. Oficialmente, o promotor militar está no comando, mas não oficialmente as milícias ainda detêm poder.

São nove da manhã, hora da ronda matinal. Ele desce o corredor até as celas, menos de 100 passos de seu escritório. Cada cela tem uma porta de metal pesada, com cadeado. Ele para na frente da cela seis e abre uma portinhola. Bom dia, diz ele, e chama Hamsa.

Está tudo bem? Como está a comida? Hamsa acena e se mexe em seu colchão. Ele compartilha a cela com seis outros presos, todos olhando apáticos para a porta. Gwaidar vem conversando com Hamsa há quase um ano. Ele traz comida, pergunta se precisa de alguma coisa e o questiona sobre sua família. Ele tentou descobrir mais sobre ele, buscando uma peça do quebra-cabeça que possa explicar por que alguém se torna um assassino sádico.

Mas Hamsa não dá explicações. “Ele é tão frio”, diz Gwaidar, que já desistiu. Não consegue mais aturar os sorrisos e desculpas de Hamsa. Ele perdoou Hamsa, diz ele, para ter paz de espírito, e porque acredita que é isso que Deus quer que ele faça, apesar de sua mãe dizer que não deveria, e sua mulher dizer que os prisioneiros deveriam ser torturados, não tão severamente, mas o suficiente para saberem como é.

Mas Gwaidar se recusa a ser arrastado de volta para o abismo do ódio. Nada é mais importante para ele do que garantir que os prisioneiros recebam a mesma comida que os guardas e que não haja tortura na prisão de Hadba. É impossível ter certeza, mas nenhum dos presos fala de abusos, mesmo quando os guardas estão distantes. De acordo com o grupo Human Rights Watch, é principalmente nas prisões em Zintan e Misrata onde a tortura ocorre.

Ameaçado e intimidado
Os julgamentos começarão logo, diz Gwaidar, para que tudo isso possa terminar e para que ele também possa finalmente encontrar a paz. Mas será possível fazer justiça na Líbia hoje, para vítimas quanto para perpetradores?

Alguns juízes foram corajosos durante a ditadura e outros desde então foram demitidos. A Líbia também tem um parlamento livremente eleito, chefiado por um membro antigo da oposição. As condições básicas não são ruins, mas ainda assim, após 42 anos de injustiça, há grande tentação de interpretar a lei de uma forma que favorece os vitoriosos.

Houve alguns julgamentos. Mercenários da Europa Oriental foram condenados a longas sentenças na prisão em Trípoli. Em Benghazi, os novos líderes do país abriram inquéritos contra possíveis assassinos e traidores, mas não é fácil, porque os advogados dos réus recebem ameaças.

Muitos dos critérios para julgamentos justos ainda não foram cumpridos, os juízes ainda não são imparciais, os prisioneiros muitas vezes não têm advogados e são ameaçados e intimidados, diz Hana Salah, que trabalha para o Human Rights Watch na Líbia. Por outro lado, diz ela, “Abu Salim é o maior trauma neste país. O primeiro passo para verdadeiramente lidar com a ditadura é a justiça. Isso significa que os perpetradores de Abu Salim devem ser condenados”.

E tem que acontecer o mais rápido possível, acrescenta Salah.

Isso porque o país continua profundamente dividido entre revolucionários e leais ao partido. Sem julgamentos, a Líbia poderia cair em um redemoinho de vingança que complicaria os esforços para estabilizar o país. Dezenas, talvez milhares de pessoas já foram mortas em atos de vingança.

Atos de vingança
Abu Salim paira sobre o país como uma maldição, e nem todos estão dispostos a perdoar e esquecer. Os dois irmãos mortos de Mouad Khalil, o vendedor de móveis, perduram no ódio dos vivos.

Um de seus parentes, um jovem quem mal saiu da adolescência, diz que matou 37 pessoas, a maior parte durante a luta pela libertação, mas também depois, em atos de vingança. Para ele, isso é justiça. “Matamos os que trabalhavam voluntariamente para Gaddafi. Os que foram forçados, deixamos viver”. Ele não quer ser identificado, porque sua família não sabe desses detalhes, diz ele. Nada disso pode ser confirmado, mas ele tem marcas de tiro no ombro e um fêmur fraturado. “Meu motivo foi que meus familiares foram mortos em Abu Salim”, diz ele. “Eu queria vingá-los”.

Mas agora ele não consegue tirar as imagens da cabeça, e passa horas sentado sozinho em uma praia, chorando.

“Se eu tivesse uma arma e o encontrasse na rua, eu mataria Mukhtar. Essa seria a punição correta”, diz Mouad Khalil. “O Alcorão afirma que aquele que mata deve ser morto”. Mas agora ele trabalha na prisão e deve seguir as regras. Os juízes devem decidir, diz ele, mas se a justiça for servida, no final Mukhtar teria que ser condenado à morte.

Mukhtar é um dos presos em Hadba; um homem de 50 anos com uma cabeça quadrada e um olhar simples, que ajudou a executar 120 prisioneiros em Abu Salim. “Estavam sentados assim”, diz Mukhtar se levantando da cadeira e sentando no chão, de pernas cruzadas, com as mãos atrás das costas. “Havia três fileiras de 10 pessoas cada. Eu passei por eles e atirei neles com minha pistola”. Ele se senta novamente na cadeira. “Não sei por que tínhamos que fazer isso. Foi só uma ordem”.

“Eles queriam matar”
Ele se aproxima de Khalil e sussurra em seu ouvido. Fale alto, diz Khalil. Após o massacre, diz Mukhtar, ele trabalhou para a inteligência, espionando as pessoas e protegendo Gaddafi. Ele deve ter sido considerado leal, porque depois foi enviado para Europa para agredir manifestantes anti-Gaddafi durante manifestações. Ele também fez parte do grupo que atacou o ministro de relações exteriores da Arábia Saudita no Cairo, diz Mukhtar, com um toque de orgulho na voz.

Quando Khalil sai da sala, Mukhtar diz: “Mouad me ajudou a encontrar um apartamento para minha família. De outra forma, teriam ficado na rua”.

Então Mukhtar é levado para sua cela e Khalil diz com raiva: “Eles são assim, essas sujeitos. Eles queriam matar”. Talvez tenha sido Mukhtar quem matou seus irmãos, diz ele. Ele tentou descobrir mais sobre eles, mas nenhum dos prisioneiros em Hadba se lembra dos dois, apesar de um antigo guarda ter dito que os irmãos de Khalil, Ali e Adil, viram um ao outro pela primeira vez em sete anos no dia do massacre. Talvez tenham morrido juntos, diz Khalil. Esse pensamento lhe dá algum conforto.

Por que ele encontrou um apartamento para a família de Mukhtar? “Ele tem cinco filhos e uma jovem esposa. Eles não sabem o que ele fez”, diz Khalil. Ele sabe como é o sofrimento da família toda.

“Guardem a carne para os irmãos”
Sua própria família só descobriu que os irmãos estavam mortos quatro anos após o massacre. “Até então, íamos à prisão a cada três meses para deixar comida e roupas para eles. Éramos pobres, mas minha mãe sempre dizia: não comam a carne. Guardem para seus irmãos”.

Hoje ele sabe que o diretor da prisão vendia a carne em uma loja. Ele cobre o rosto com as mãos e chora. “É tão horrível, pensar que toda nossa esperança era por nada”.

Todos os dias, quando ele chega em casa do trabalho na prisão, a mãe pergunta e ele. Você pegou outro? Quando ele diz que sim, ela dá uma risada louca.

Quando tudo acabar, diz o jovem que matou 37 pessoas, ele quer fazer terapia e frequentar uma faculdade. Mouad Khalil planeja voltar a vender mobília. Mohammed Gwaidar quer voltar ao seu trabalho antigo: membro da agência de inteligência doméstica, o mesmo lugar onde Mukhtar trabalhou. Há uma linha muito fina entre culpa e inocência.

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